segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Capítulo 24 - Tocaia dos Mortos

          TAOBARA FICOU FURIOSO QUANDO O EMISSÁRIO MANDADO POR ELE ATÉ A ALDEIA DOS MURAS lhe trouxe duas respostas de sentido opostos: Matepi estava viva, mas Muruuaca se recusou a devolvê-la, ignorando completamente o pedido do cacique guanavena, que queria resgatar a sobrinha e trazê-la de volta à tribo, como havia prometido a Nahpy. E, no entanto, a recusa do mura em atender-lhe o pedido era a comprovação da fragilidade da aliança entre os dois caciques. Taobara pensava que se o novo aliado quisesse fortalecer os laços entre ambos não poderia fazê-lo passar por este constrangimento. A resposta negativa colocou o guanavena em situação frágil diante dos comandados e, mais ainda, perante o pajé, a quem dera a palavra de que Matepi voltaria ao convívio de sua gente.
         - Muruuaca disse que Matepi continuará sendo esposa de cacique, contou Waripa depois de retornar da aldeia de Itacoatiara, para onde fora enviado com a missão de levar ao maioral dos muras a proposta de seu comandante.
         Para Taobara, ao ter-lhe negado o pedido, Muruuaca dera provas de que a aliança combinada entre eles não podia ser levada a serio e temeu o pior. Todos os índios do Canaçari estavam assustados com a notícia do massacre em Maquará se espalhando como grande cardume de peixes no igapó, semeando medo e levando muitos a abandonar as comunidades mais distantes e a se concentrar na ilha Saracá. Era difícil Taobara aceitar a sobrinha vivendo com os muras, embora Mauri, sua própria filha, cujo paradeiro atual era desconhecido, tenha vivido com essa gente e, e até com o seu consentimento, mas numa realidade diferente, pois o cacique decidiu entregar algumas mulheres ao inimigo numa estratégia pragmática. Só assim os guanavenas puderam escapar à vingança dos índios do grande rio Amarelo e manter a integridade tribal, sorte que não tiveram os caboquenas.
         Matepi fora raptada e, portanto, poderia ser devolvida sem problema, mesmo estando o cacique Muruuaca disposto a casar-se com ela, até por uma questão de boa vontade ao aliado. Nos pensamentos de Taobara habitava a certeza de dívida dos muras em relação aos caboquenas, pois este povo não interferiu quando os caboquenas foram dizimados, preferindo deixar sem resposta o ataque à aldeia Maquará. Essa atitude foi contrária aos acordos antigos e o maioral teve trabalho de conter a disposição do cacique bararuru em enfrentar os inimigos, até por questão de defesa e prevenção contra algo semelhante ao seu povo. Depois, o cacique havia prometido ao pajé recuperar a filha dele e até casá-la com seu filho e provável sucessor Pikiwaha, num arranjo político para fortalecer a família no comando da tribo.
         Quando a notícia foi levada a Nahpy, o pajé reagiu mostrando desapontamento com o irmão, pois se nunca aprovara a aproximação com os muras, agora tinha a certeza de que a aliança fora um erro estratégico promovido por Taobara, e este reconheceu a justeza de quem se opunha a ela, descobrindo da forma mais vil a impossibilidade de reconciliação com os inimigos imemoriais. O cacique tentou convencer o irmão da possibilidade de o mura rever a decisão, mas não encontrava argumentos capazes de contrapor os questionamentos do pajé e ficou sem palavras quando Nahpy o encarou nos olhos e o desafiou a ir, ele próprio, até em Itacoatiara, negociar com Muruuaca a devolução de Matepi.
         O cacique deu as costas a Nahpy e se retirou da oca onde contara ao irmão o destino da filha dele, sendo seguido pelos guerreiros mais próximos e isto foi motivo de novas preocupações, pois não tivera como retrucar às insinuações do pajé sobre a vontade de enfrentar os muras e nem de demonstrar aos bravos coragem em ir até a aldeia dos inimigos negociar pessoalmente o resgate da sobrinha. O cacique e sua tropa caminharam até a praia do Terceiro, aonde sempre iam na hora das confabulações. Ele deu ordem aos homens para ficarem de prontidão em pontos estratégicos e evitar a possível aproximação furtiva dos muras. Também mandou avisar Jauaraçu sobre as novas condições de guerra e que ficasse de prontidão com seus bravos, pois a qualquer momento teriam de participar de novas batalhas.
         A ilha Saracá se preparou para receber os índios dos arredores do Canaçari e também do Sanabani. Era mais fácil obter proteção no isolamento das águas e concentrando os bravos num único ponto, deixando vigias dispersos em locais escondidos, observando a movimentação do inimigo. Também armaram tocaias nas praias de frente ao Marupá, porque os muras bem podiam se deslocar através do Orowo e se posicionar quase de frente à ilha, podendo até realizar um ataque de surpresa, igual ao que terminou com a morte dos caboquenas e o fim de sua tribo. Os guerreiros passavam dias inteiros de tocaia nos galhos das árvores mais altas sob os barrancos, observando o emaranhado de ilhas formadas com a enchente do lago, a se estender até os confins do horizonte, na espera perturbadora de se depararem com as canoas dos muras vindo na direção da ilha Saracá.
         Mas os dias se passavam e os oponentes nunca vinham, permitindo aos aliados voltarem aos poucos às terras fora ilha, evitando, contudo, a todo custo, ultrapassar a foz do Orowo, tanto por medo dos muras quanto por receio de serem atacados por espíritos atormentados dos caboquenas. O ponto mais extremo aonde eles iam era na região do Marupá, de lagos e igapós abundantes em peixes e tracajás, sem se aventurar muito além do Puruzinho, local ermo e onde guanavenas e muras vagavam nas caçadas e os confrontos esporádicos poderiam desencadear reações temíveis aos aliados. Porém, este era o território tradicional dos índios do Canaçari, com muito alimento e assediado por tribos inimigas, as quais muitas vezes já o haviam invadido, mas sempre foram repelidas pela determinação dos bravos aliados em defendê-lo da cobiça alheia.
         Os índios necessitavam mais dos recursos do lago e dos igapós para manterem as tribos reunidas na ilha, por isso foram retornando aos poucos às terras distantes, se voltando mais ao Murucutu, de onde vinham os ventos que anunciavam a noite, mas também onde se podia pescar e caçar com tranqüilidade, sem temerem a espreita dos muras. Viveram tempos difíceis, com pouca comida e muitos temores, obrigando os guerreiros a ficarem de prontidão a qualquer momento e terem de lutar na defesa da aldeia, oferecendo a própria vida se assim fosse preciso.
         A ilha vivia em completo estado de alerta, principalmente quando os guerreiros saíam em esporádicas caçadas e precisavam entrar em terras não vigiadas, sob o risco de encontrarem com os inimigos avançados no território. Nestas ocasiões, eles se valiam dos conhecimentos de Yepá, integrado à nova tribo e essencial quando era preciso caminhar com ardil para não ser detectado pelos ouvidos da caça e nem dos muras. Também não podiam se demorar em perseguição aos animais em muitos dias e desguarnecer a ilha. O caboquena se valia da experiência de ter atravessado grandes distâncias sozinho, viajado por entre terras e rios desconhecidos, muitas vezes passando dias escondidos nos altos das árvores, espreitando as aldeias por onde seus caminhos cruzavam, e tudo ensinava a Aiauara e Pikiwaha, os companheiros de todas as ocasiões.
         Yepá estava vivendo na grande oca com a família de Nahpy, em rede armada no mesmo local antes destinado a Monawa, nas muitas ocasiões quando Tawacã veio visitar os pais. O caboquena assumira perante o pajé tomar o lugar do irmão morto na obrigação de proteger e cuidar da cunhada e das sobrinhas, por isso já era considerado parente de sangue, adaptando-se aos costumes de gente da ilha Saracá como muitas vezes se acostumou a viver em outras tantas tribos, sobrevivente que era de suas aventuras, por isso não encontrava dificuldade em sair para caçar ou pescar com os guanavenas, embora estes usassem técnicas diversas, ou nos momentos quando se embriagava com caxiri mastigando sementes de guaraná, que o deixava mais resistente aos efeitos da beberagem. Até o dia quando Aiauara, em instante de descontração de ambos, após descarregarem as cargas na praia, lhe falou de forma jocosa que ele estava cada vez mais parecido com um guanavena.
         - Agora tenho muito mais motivos de ser para sempre um caboquena, respondeu Yepá a Aiauara, que compreendeu as palavras do amigo, único representante de seu povo no mundo.
         Tawacã ainda não estava totalmente recuperada das febres, mas aos poucos Nahpy ia curando as feridas causadas pelo massacre dos caboquenas, do qual escapara por providência do destino ao sair da aldeia Maquará antes da chegada dos muras. Yepá procurava atender como podia aos pedidos da cunhada, mas seu comportamento perante as crianças já era de verdadeiro pai, cuidando para não lhes faltar nada o que comer e muitas vezes se aventurando sozinho nas perigosas trilhas do Marupá apenas no intuito de colher um cacho de pupunha, que imaginava estar maduro. Quando chegava na aldeia era sempre recepcionado pela criançada, pois o retorno de sua canoa era sinal certo de alimento farto e diversificado. O caboquena tinha a intuição natural de encontrar frutas de época, assim como as cutias, por isso era bom caçador e assim conquistara o respeito da gente com quem estava vivendo.
         As frutas mais maduras ele as dava a Tawacã e às sobrinhas e elas comiam com grande gana. Era preciso muita força para vencer as lembranças recentes da desgraça, principalmente com a pequena Samcaxiki já tendo se desmamado muito antes do que seria melhor à sua saúde. Tawacã recuperava aos poucos os brilhos da vida, mas lhe faltava acender a chama interna dos olhos que tanto necessitavam voltar a ver o mundo com alegria e disposição para cumprir a missão a qual estava destinada. Os dias passados no tédio da rede estavam arrancando de si o amor pelas filhas e havia ficado desleixada com as crianças, relegando à cunhada Tananta os deveres maternos, ou então à mãe, que embora já alcançando longa idade cuidava das netas como se fossem suas filhas menores, só não obtendo sucesso na tentativa de continuar amamentando Samcaxiki, pois seus seios vacilaram e não produziram o leite tão importante à caçula de Tawacã.
         Nahpy era a pessoa mais presente ao lado de Tawacã. O pajé colocava cataplasmas em sua fronte quando as febres a assaltavam em delírios e a defumava com grossas espirais de fumo para espantar os maus espíritos do corpo da filha, mas nem a força do tabaco era capaz de trazer serenidade a índia, ainda abalada com a visão macabra da aldeia Maquará destruída. No entanto, se era preciso colher ervas que abunda apenas nas margens do grande rio Amarelo, ou se um óleo só medrasse nas árvores mais distantes da ilha, então Yepá logo se prontificava em apanhá-los e o pajé agradecia, porque também sabia que somente ele era capaz de obter sucesso nesta empreita. O caboquena ia embora e dois ou três dias depois retornava, trazendo ingrediente necessário à cura da cunhada. Também vinha com enfiadas de pacus ou sardinhas, e muitas uma caça abatida nos intervalos das buscas. Então depositava tudo no trapiche, recomendando apenas para servirem a melhor parte à índia convalescente. Uma vez trouxe uma piranha preta e preparou ele mesmo a caldeirada e fez a cunhada e as sobrinhas tomarem, deixando Tawacã alguns dias em plena saúde, até um pesadelo a abater novamente e deixá-la prostrada dias na rede.
         A saúde de Tawacã ia de altos e baixos, mas agora, com a vazante escorrendo do lago, era maior a fartura de alimento e isto ajudava a índia a recuperar as forças, pois comia mais e os sintomas de sua doença tardavam a se manifestar. Ela saia de dentro da oca com maior freqüência e tomava sol nas manhãs, respirando o ar trazido com fúria de lá das bandas da Ponta Grossa, sentada num tronco colocado ali por Yepá e estrategicamente próximo às sombras das acapuranas. Seu temor se reduzia agora a embarcar em canoas, porque da última vez que ousou fazê-lo sentiu um pavor repentino que lhe trouxe as piores lembranças da vida e a deixou quase morta por muitos dias. Mas cada vez mais as praias se alargavam e ofereciam amplos espaços aos índios, onde as crianças corriam nas brincadeiras, imitando campos de batalhas nos quais lutariam quando estivessem maiores.
         Esta visão deixava em Tawacã uma aflição condoída. Ela sabia dos terrores da guerra desde menina, nas muitas vezes quando ajudou o pai nos tratamentos aos feridos em combate e por isso viu chagas abertas por profundas lanças, crânios partidos na força das massas e corpos atravessados de flechas que quando eram arrancadas levavam junto todo o sangue da pessoa. Ela não gostava desse tipo de brincadeira, mas as crianças tinham outra concepção sobre esses jogos e até Waiãpi tomava parte neles, empunhando um pedaço de pau e se fazendo passar pela guerreira a quem os inimigos tombavam somente pela força da coragem. Samcaxiki ficava no colo da mãe por não acompanhar a movimentação da meninada e ao seu lado estava sempre de prontidão Yepá, o bravo que prometera e estava cumprimento a promessa de zelar pela família do irmão morto.
         - Não me agrada as crianças se divertirem desse modo, comentou Tawacã ao cunhado.
         - O que gostamos é diferente do que vivemos, respondeu o guerreiro caboquena, a quem as vicissitudes não o abalavam tanto, tantas foram as mudanças e diversidades postas diante de si na instabilidade de sua existência.
         Tawacã sabia ser fácil mudar a realidade das tribos aliadas apenas costurando acordos de não-agressão com povos mais próximos e assim obter algum tempo de paz, mas seus argumentos estavam nublados pela implacável doença e ela não encontrava forças de levar adiante a conversa com o cunhado. Ela encontrava amparo na linha do horizonte, observando morros que se erguiam além do Murucutu, aos quais a distância dava coloração azulada. Quando estava na presença do pai, se deixava levar pela conversa intensa do pajé, escutando cada palavra como se fosse o ensinamento da vida, pois Nahpy usava todo recurso e conhecimento na intenção de restituir à filkha a saúde perdida e também por querer realizar o sonho pelo qual tanto batalhara, de tornar Tawacã a detentora do saber dos guanavenas. Mas numa noite, quando Nahpy reuniu as gentes em torno da fogueira para narrar a história da tribo, foi interrompido por Tawacã.
         - Eu vi as marcas dos pés sagrados cravados na pedra, quase em frente à foz do Orowo, falou Tawacã ao pai. O quê são essas marcas, grande pajé?
         Nahpy contou serem as pegadas do grande índio que perambulava entre diversas tribos falando de um deus poderoso, único e verdadeiro, que deveria ser adorado por todos os povos. Ele tinha juba e quando perseguido pelos ancestrais dos guanavenas, que não aceitaram sua pregação, conseguiu correr pelas águas e se esconder nas rochas surgidas com as grandes vazantes e ali deixou os pés gravados no momento de sair voando e escapar aos perseguidores.
         - Nunca mais retornou a estas terras, mas deixou a lembrança etérea e jamais nosso povo esqueceu sua visita, concluiu o pajé, enquanto as gentes do Canaçari escutavam assombradas a revelação fantástica de Nahpy.
         Aiauara costuma convidar Yepá para caçar, embora o caboquena se indispusesse em fazê-lo, pois se sentia melhor ao lado de Tawacã e das sobrinhas, mas não se recusava a seguir o novo parente. Estava no sangue o gosto pelas andanças na mata, com a pisada felina e a espreita solerte, embora ainda guardassem muita carne defumada e as piracenas estivessem passando quase na beira da praia. Aiauara usava o argumento de que pescar na piracena era prática de crianças e os guerreiros estavam obrigados a ir além da tranqüilidade da ilha e enfrentar noites insones em galhos de paus, na espera da presa se aproximar e ser abatida. Então Yepá comunicava Tawacã da partida, mas sem antes prometer a ela que sua ausência seria breve.
         A vazante chegara ao auge e não fora tão grande quanto da última vez, por isso os amigos decidiram seguir no rumo do Marupá, desafiando os temores do possível encontro com os muras. Havia se passado um ciclo completo das águas e os inimigos não realizaram o ataque à ilha Saracá como se esperava, embora dos muras nunca era prudente acreditar que a vingança não chegaria. A região estava no ápice da abundância e os bravos pescavam com facilidade os cardumes aprisionados na água rasa, depois faziam imensas fogueiras para defumar as carnes, até se sentirem fartos de pescados e se voltavam às brenhas das grandes extensões de campos, andando pelo emaranhado das florestas agora libertas da invasão do lago, que ofereciam diversidades de caças.
         Os índios seguiam esses caminhos naturais no encalço de enormes varas de porcos, afugentando-os e os atacando do alto das árvores com pesadas lanças, abatendo quantidade de presas superior ao que poderiam carregar, e as deixavam penduradas nos galhos altos das árvores, para serem recuperadas na volta. Estavam como alucinados pela facilidade da caçada que não se deram conta de estarem caminhando no rumo do rio Orowo, aonde chegaram com espanto ao se virem diante das águas nas quais todos agora temiam estar. Yepá sentiu seu coração pulsar com a força da lembrança daqueles dias, mas foi tomado pela determinação de retornar à terra dos ancestrais, mesmo contra a vontade de todos que o acompanhavam.
         - Me aguardem aqui, meus amigos, porque então eu vou sozinho, disse Yepá aos companheiros, enquanto se preparava para subir num buritizeiro, na intenção de arrancar as palmas e fabricar a balsa com a qual atravessaria o rio Orowo.
         Aiauara tentou demovê-lo da idéia, mas já era tarde. Yepá enfiou a peconha entre os dedos e subiu ágil o tronco ereto da enorme palmeira, derrubando com facilidade palmas suficiente para construir a embarcação. Os outros índios o viram descer com a mesma determinação de quando subira e isso infundiu neles a obrigação de seguir o amigo nessa aventura, por isso se distribuíram pelo buritizal e, em pouco tempo, as jangadas estavam cruzando o estreito leito do Orowo, vencido com facilidade pelas leves embarcações dos guerreiros indômitos.
         Na outra margem, os índios caminharam primeiro com passos vacilantes, assustando-se até mesmo com o canto dos pássaros, mas foram recuperando a coragem à medida que os passos os levavam mais perto da antiga aldeia dos caboquenas, até se virem diante do barranco onde no passado se localizara Maquará. Os bravos se aproximaram com cautela, mas não encontraram os espíritos dos mortos, os quais tanto temiam, mas apenas o mato tomando o espaço antes arrancado deles. Tudo estava como Yepá tinha visto pela última vez, mas as ossadas estavam reviradas e uma vegetação nova enterrava para sempre as lembranças terríveis do massacre. Na sombra da enorme samaumeira, que servia de ponto de referência à localização da aldeia, Yepá se juntou aos companheiros e não precisou esconder as lágrimas dos olhos, porque eles também os tinham banhados em maus presságios.
         - Não temos nada para ver aqui, disse Pikiwaha e todos concordaram com ele, mas Yepá ainda queria chorar seus mortos, pois não derramara lágrimas suficientes para aplacar os espíritos dos que morreram naquele lugar.
         - Sinto muito, meus amigos, mas os espíritos dos ancestrais me pedem para não esquecer nunca do local de minha aldeia, balbuciou o caboquena, caindo em seguida no chão e colocando na boca punhados de terra, como se quisesse devorar o território que antes pertencera à sua tribo.
         Os bravos esperaram Yepá cumprir o ritual com paciência diante da solenidade praticada pelo caboquena e este depois levantou-se e percorreu toda a área da antiga aldeia, tirando pedaços de carvão das ruínas e comendo-os, mastigando com aflição e tentando sentir os gostos de outrora. Misturava com as folhas novas e com esforço sobre-humano conseguiu engolir a mistura daquilo que um dia fora sua nação. Os outros guerreiros o viram com olhos esbugalhados e o peito arfante, mas não queriam se intrometer nas ações de Yepá. Sentiam ser aquele ato o ritual dos caboquenas, mas todos o acudiram com rapidez no momento em que o guerreiro suplicou por um gole de água.
         Aiauara foi o primeiro a trazer a cuia com a água do Orowo a Yepá e ele tomou de um único gole, como se as lembranças tivessem a ver com o sabor escuro do leito do rio porque este era o gosto de sua infância, nunca esquecida nem mesmo quando vagava por territórios tão distantes de onde nascera. O caboquena sentiu o frescor restaurar-lhe as forças como antigamente sempre o fizera, abriu o alforje e dele sacou as inseparáveis sementes de guaraná que usava como remédio para todas as dores e voltou a mastigar com força o conteúdo da boca e, com a sobra de água restante na cuia, engoliu tudo goela abaixo. Depois refez a antiga fisionomia e convocou os amigos a retornar à caçada.
         - Vamos embora, pois com tantas lágrimas os mortos se chateiam, comentou Yepá.
         O grupo embarcou nas jangadas de palmas de burutizeiro e cruzou o rio outra vez, mas agora com alívio de deixar para trás o lugar dos caboquenas, considerado por eles como amaldiçoado. Chegaram na outra margem e entraram na selva para recolher os catitus mortos durante a caçada e já não podiam com tanta carga quando se viram de novo no Marupá, então embarcaram em direção a ilha Saracá, enquanto o sol se deitava sobre as bandas do rio Orowo, deixando na escuridão as ruínas do Maquará, onde os macacos não percorriam e apenas os animais de rapina visitavam para continuar comendo as sobras do pouco que ainda restava da aldeia dizimada.
         Yepá contou a Tawacã a visita ao Maquará e ela continuou se assustando com cada palavra dita pelo guerreiro e endossada pelo irmão e o primo. Se Aiauara dava ênfase na narrativa, Pikiwaha a elevava ao espaço do fantástico, ficando a índia a acreditar que na aldeia onde dera a luz às duas filhas agora era habitada por monstros. Ela começou a ter febre, com dores fustigando-a para conquistar seu corpo e umas vertigens a acometeram como lembrança da tragédia recente. No entanto, Yepá fazia questão de lhe contar as sensações vividas no contato com a história da tragédia, representadas pelas árvores novas que medravam onde, até um ciclo de águas atrás prontificava a aldeia na qual nascera, mas agora sabia que lá não morreria.
         - Não me contem mais nada sobre isso! pediu Tawacã, entre soluços e falta de ar.
         - É preciso falar e viver tudo de novo, porque só assim nos libertamos de nossos espíritos maus, replicou Yepá, a quem a experiência de visitar o Maquará mortificado o reconciliou com seus temores.
         À noite, em meio à fogueira no centro taba, Nahpy pediu aos guerreiros que narrassem as aventuras no rio Orowo e todos os índios fizeram questão de explicar com detalhes os medos sentidos e as palpitações de espanto. Não era como visitar o cemitério, mas o campo de batalha em que havia se transformado. Os outros ouviam com temor e para eles os bravos pareciam tão irreais como eram os ancestrais, sempre envolvidos em histórias fantásticas de coragem exacerbada e desventuras heróicas, que as tremulações das chamas, junto ao crepitar do fogo, empreendiam mais assombro ainda.
         Depois os índios se recolheram à grande oca, cada um no enlaço da rede, ocupando os espaços familiares dentro do qual Tawacã e Yepá dormiam separados pelas duas crianças de Monawa. Logo os roncos soltos anunciaram que o sono se abatera sobre a imensa cabana, mas quatro olhos se mantinham fixos nas treliças da construção, porque não conseguiam apagar da lembrança as saudades do rio Orowo. Os olhos depois se cruzaram e puseram frente a frente Tawacã e Yepá e não foi preciso qualquer palavra ou sinal para eles saberem que tinham muito que conversar, por isso os dois se ergueram e a índia teve o cuidado de observar as filhas, mas estas dormiam tranqüilas, antes de seguir o guerreiro que se esgueirava entre tantas redes armadas, sem perturbar o sono de ninguém e abrindo o caminho seguro para a cunhada passar.
         Fora da oca, a noite se pintava com tantos pontos brilhantes que a lua não fazia falta alguma na iluminação do céu límpido dos tempos mais quentes da estação da vazante, sendo possível acompanhar toda a simetria das árvores na brancura das praias, com as areias refletindo tantas estrelas que punha em dúvida em qual lugar da terra estava o firmamento. Yepá caminhou com passos seguros, com os quais sempre se movia, fosse pelas frestas das selvas ou na tranqüilidade da aldeia, e Tawacã o seguia duas pisadas atrás, mas sem a fragilidades dos dias anteriores, porque tinha certeza de estar sendo conduzida até a cura definitiva das aflições.
         Chegaram até a beira do lago, enquanto atrás deles a aldeia dos guanavenas dormia protegida no isolamento da ilha e só então pararam e trocaram as primeiras palavras, mas estas foram logo postas de lado pelo furor com que seus corpos se uniram, selando o ato de amor que se anunciava entre eles desde quando se viram na aldeia do Maquará: ela grávida de Waiãpi e ele recém-chegado da primeira morte. Ficaram cobertos pela areia de tanto rolarem na praia, entrelaçados no desejo reprimido por tanto tempo a custa da doença de Tawacã, cujo remédio agora estava sendo dosado para alívio do espírito alquebrado de sofrimento e de recordações danosas, mas pronto a reviver das ruínas destruídas de suas lembranças.
         Repetiram o amor dentro da água tépida do lago, na mesma volúpia de quando se enterraram na areia e buscaram encontrar na ânsia a força de romper as barreiras postas entre os dois pelas circunstâncias adversas, que tanto retardaram a realização desse momento. No descanso foram até a areia e ficaram deitados no mormaço do chão contemplando as estrelas e identificando cada uma delas com um parente morto. Ambos miraram no mesmo instante em igual astro do céu, de luz vermelha cintilante, e embora no meio de incontáveis delas, identificaram-na como sendo a de Monawa, e desta vez não choraram, porque ficaram felizes ao descobrirem que o ente querido havia conquistado seu espaço no firmamento.

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