quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Tocaia dos Mortos - Capitulo 3

         Depois da vitória contra os omáguas a paz voltou ao lago Canaçari. Taobara, Uataçara e Jauraçu, os três caciques vencedores, reafirmaram o pacto entre as tribos, jurando com o próprio sangue zelar para nenhum inimigo se apoderar de seus territórios. A trégua selada entre os maiorais de cada povo da região seria mantida e, se alguma nação fosse atacada, todos deveriam se juntar para combater o agressor, porque somente com as três tribos unidas seriam capazes de manter seus lagos e suas terras de caças, espremidas entre duas poderosas tribos, a dos omáguas e a dos muras. Essas duas nações, conhecidas em todo o vale do grande rio Amarelo pela bravura de seus guerreiros, tinham a fronteira de suas terras nas proximidades do lago Canaçari, por isso mesmo não ousavam penetrar nestas águas, para não atrair a inimizade das tribos da região contra seus interesses e, desta forma, forçá-los a uma aliança com adversários mais poderosos.
         Tanto os muras quanto os omáguas preferiam deixar em paz as três tribos do lago, porque assim não levariam estes a se aliar com oponentes verdadeiramente perigosos. Mesmo assim, eram comuns grupos de omáguas e de muras adentrarem nos lagos para conquistar partes do território da região do Canaçari, sabidamente farto em peixe e em caça. Por isso, com freqüência, guanavenas, caboquenas e bararurus tinham de juntar forças para expulsar os inimigos, mas nunca enfrentaram uma invasão em massa, que pusesse à prova suas capacidades de reagir contra dominadores de vastas extensões de terras na margem direita do grande rio Amarelo, por onde passavam todas as tribos, sejam em processo de conquista ou fugindo de outro povo mais beligerante.
         Mas quando os omáguas foram expulsos com relativa facilidade, passaram-se dias de festas na ilha Saracá, até que os feridos recobraram a saúde e foram então levados para suas aldeias, junto com os guerreiros vitoriosos. Monawa foi o único a partir triste para sua gente, pois descobrira que não poderia viver sem os cuidados de Tawacã e sem sua atenção tão importante para seu restabelecimento, pois ela ajudou a curar-lhes as feridas e acalmar suas febres, arrancando-os dos delírios quando estava à beira da loucura. Mas se Tawacã o salvou da insanidade, agora era o amor de Monawa por ela que o estava deixando louco. O guerreiro caboquena retornou ao seu povo, mas prometeu a si mesmo voltar para conquistar o coração de sua amada, por isso guardou na memória as feições da pequena índia para, quando fosse o momento de tomá-la nos braços, não confundi-la com outra. Ele se foi, submerso na algazarra dos outros guerreiros e investido da maturidade de quem participara de sua primeira batalha, matara o inimigo e sobrevivera para honrar seus ancestrais.
         Na primeira noite de lua cheia após a batalha, Nahpy reuniu o povo em volta da fogueira acesa na praia para relembrar as grandes façanhas dos guanavenas, suas lendas e tradições, porque era preciso repetir às novas gerações as histórias de glória dos ancestrais. O venerável pajé tomou um gole do caxiri e puxou fundo um trago de seu cachimbo, preenchido com ervas mágicas, para penetrar no mundo dos antepassados e chamar os espíritos para a grande narrativa da origem do mundo.
         “As formigas se espalharam por toda a ilha, se alimentando apenas do fogo extraído das profundezas da terra e depositando cada vez mais grãos de areia na superfície totalmente branca. A ilha era um enorme deserto, um ponto claro no meio do infinito verde do lago, porque mesmo que se subisse ao ponto mais alto da terra, não se avistava margens nenhuma. Então o grande Paharamim resolveu que as cores deveriam ser misturadas e, para isso, foi tingindo de verde a brancura das praias, plantando árvores determinadas a cobrir com sua matiz toda a extensão da ilha. Logo as florestas dominaram a paisagem com árvores imensas, de frutas soberbas, e as formigas conquistaram outra fonte de alimento, mas fácil de conseguir, abandonando assim o costume primordial de comer o fogo da terra.”
         “A exuberância da floresta despertou no grande Paharamim a necessidade de povoar a ilha com outros seres, por isso enviou para a terra pássaros de todas as espécies, dos mais coloridos aos mais emplumados, dos grandes e canoros aos pequenos, para colorir de vida o local e rivalizar com as formigas o domínio sobre o mundo. Eles chegaram numa manhã, com os primeiros raios do sol, num alarido que ecoou por toda a ilha, e logo estavam empoleirados nos galhos das árvores, saboreando as melhores frutas, rasgando o infinito azul dos ares com vôos rasantes, subindo bem alto para decifrar de cima os segredos da terra e depois descendo vertiginosamente para a praia. Era a alegria chegando para povoar tudo.”
         “Muitas manhãs despontaram sem nada de extraordinário acontecer, mas um dia as águas do lago começaram e fervilhar por todos os lados e esta ebulição se movia em direção das margens da ilha, espantando os pássaros que voaram para o alto dos céus, com o intuito de observar melhor o fenômeno. De cima, descobriram do que se tratava, então se atiraram com fome sobre as manchas escuras na superfície das águas e pegavam nos bicos os peixes que chegavam para povoar o lago em uma piracema monstruosa. Foram dias de prazeres alimentares tanto para os animais voadores quanto para aqueles que acompanhavam os grandes cardumes e agora espreitavam nas profundezas do lago, dividindo com os pássaros os pequenos peixes, sendo estes atacados por vorazes predadores que também se comiam mutuamente, num frenesi de devoração que resultava em morte certa para os animais distraídos.”
         Toda a tribo prestava atenção na narrativa de Nahpy, porque o pajé contava as histórias sobre as origens do mundo dos guanavenas e era necessário que todos as conhecessem, para passar de pai para filho e não deixar morrer as tradições e lendas da nação guanavena. Quando Nahpy sentia a boca seca de tanto soltar palavras, mergulhava os lábios na cuia de caxiri e sorvia a bebida alucinante para abrir sua mente ao fantástico, levando-o ao mundo espiritual onde as revelações se mostravam para os iniciados nos segredos orais. Para reforçar sua viagem ao mundo sobrenatural, o pajé fumava as ervas sagradas. Ele as queimava na ponta do cachimbo e uma tosse profunda saía do peito dele devido o impacto da chegada. Seus olhos se avermelhavam como se estivessem afogados em um lago de sangue. Então o pajé erguia a cabeça, mostrando a superioridade de seu semblante e retornava a narrativa.
         “O mundo estava se completando, mas faltavam os animais para habitar o chão da floresta. E não demorou muito tempo, porque alguns pássaros cresceram tanto e ficaram tão pesados devido a fartura de comida que perderam a capacidade de voar, passando assim a caminhar pela terra, não demorando para suas asas se transformaram em membros, com os quais podiam segurar as frutas, esquecendo para sempre a arte de planar no céu. Desses pássaros surgiram todos os animais da floresta: uns viraram onça, outros adquiriram a forma de macacos, alguns se vestiram de antas e vários surgiram depois como pacas, capivaras, veados. De repente o mundo foi tomado pelas mais diversas espécies de bicho, sendo habitado o leito do lago, os céus e as florestas.”
         “Quando toda a ilha Saracá estava habitada por animais, então chegaram nossos ancestrais, que viviam desde a origem do mundo vagando com suas canoas pela imensidão do lago Canaçari. Os primeiros guanavenas foram criados na mesma chuva de estrelas caída sobre o mundo e deu origem também às formigas, mas foram agrupados em grandes canoas e postos a navegar sem rumo pelas águas, até o grande Paharamim terminar seu trabalho de criação da ilha, terra que seria a moradia dos guanavenas, o povo primordial. Não foi necessário remar para atingir as praias, porque o próprio vento se encarregou de conduzir a frota errante até a ilha, deixando nossos antepassados admirados pela tepidez das águas rasas. Então desembarcaram de seu mundo flutuante e pela primeira vez pisaram no chão firme, saindo correndo pela praia, brincando como crianças na alegria das margens. Um deles colocou um punhado de areia nas mãos e deixou vazar entre os dedos, sorrindo para a chuva de grãos brilhantes sobre a luz resplandecente do sol, como se repetisse o gesto do criador quando fez cair na terra a chuva que deu origem à vida.”
         “Nesta noite os antepassados dormiram esgotados de felicidade na placidez da praia, acostumando o corpo ao aconchego do chão, cuja areia se moldava à anatomia do sono. Dormiram como nunca haviam feito, porque nas canoas abarrotadas de gente não tinha espaço para o descanso, como agora proporcionava a acalento da ilha, o farfalhar do vento no alto das copas das árvores, o burburinho dos bichos na mata, o suave bater do banzeiro nas margens. Foi um sono tão profundo que transportou o líder deles para um mundo onírico, no qual a tribo aprendera com o grande Paharamim a comer das frutas oferecidas pela floresta e a fazer vinho das bagas das palmeiras. Foi um sonho tão perfeito que, quando o dia surgiu, o índio sonhador foi contar para o resto de seu povo como o grande Sol havia lhe ensinado a assar o peixe com o fogo e extrair o veneno de uma raiz chamada mandioca e dela fazer todo tipo de comida.”
         “Os guanavenas se estabeleceram na ilha Saracá e viveram muito tempo como se estivessem no paraíso, porque nada lhes faltava, nem de caça nem de pesca. Eles comiam os frutos das árvores, morando em cabanas que aprenderam a construir com palhas. Ergueram várias aldeias na ilha para dar abrigo às tantas famílias que procriaram, livre das doenças e da luta pela sobrevivência, porque tudo era abundante e até as feras tinham seus espaços para caçar, sem disputar com os índios o alimento.”
         “Para agradecer a boa vida que desfrutavam na ilha, os guanavenas então passaram a fazer ritual em honra ao grande Paharamim e passaram a adorar o Sol, o criador que zelava pelo mundo e protegia os índios contra todos os males. Eles ficavam esperando o sol aparecer nas manhãs e o fitavam com devoção até quando o calor de seus raios impedia os olhos de continuar admirando o fulgor de deus. Depois saíam para suas tarefas e quando se inicia o crepúsculo voltavam para as beiras das praias e ali ficavam com os olhos siderados no grande Paharamim e assistiam ele mergulhar nas águas verdes do lago, mas mantendo a promessa sempre cumprida de retornar no outro dia, pelo outro lado da ilha.”
         “Mas um dia, Paharamim apareceu em sonho para o pajé da tribo e deu-lhe a ordem de escolher os melhores remadores dentre os guanavenas, para embarcarem nas canoas e saírem em busca de outros índios que vagavam perdidos pela imensidão do lago. Assim foi feito. Os guanavenas prepararam as embarcações e partiram em todas as direções para encontrar esses novos parentes, não tardando a encontrar outras canoas com gentes também vivendo à deriva nas águas, como já haviam vivido os ancestrais, e os convidraram para irem morar na ilha, porque lá havia espaço e comida farta para todas as bocas.”
         “Foi assim que os guanavenas trouxeram para morar com eles os caboquenas e os bararurus, e ofereceram aos novos habitantes terras para eles plantarem as mandiocas, ensinando-os a extrair o veneno das raízes para torná-las comestíveis. Mas logo a ilha foi ficando pequena para as três tribos viverem juntas, porque as caças se tornaram escassas e os peixes atormentados com tantos pescadores passaram a viver em águas mais distantes, dificultado a captura. Para resolver a situação, Paharamim apareceu novamente para o pajé e ordenou que fossem escolhidos os melhores remadores dentre os maiores das três tribos, que tomassem rumos diversos em busca de outras terras, porque a ilha se tornara incapaz de dar comida a tanta gente.”
         “Novamente as canoas seguiram caminhos diversos, sendo levadas pelos ventos e pela força dos banzeiros. Os remadores sumiram no horizonte durante dias e noites e os que ficaram na ilha, a espera, já não tinham mais esperança de seus retornos quando os gritos se espalharam por toda a ilha anunciando algo diferente no lago, porque os homens estavam retornando, trazendo a reboque milhares de ilhas amarradas umas as outras, já com árvores e animais. Depois os índios as foram arrumando em volta da ilha, sobrepondo-as cada vez mais distante até que as últimas, de tão longe ganharam a coloração azulada, se tornando terras firmes. Outras ilhas não puderam ser levadas para longe e foram largadas de qualquer jeito e também se arrumaram como quiseram, ficando por aí, dando origem a todos os arquipélagos conhecidos.”
         Nahpy terminou a história sobre a origem das terras dos guanavenas e como elas foram divididas entre seus parentes caboquenas e bararurus, reafirmando a necessidade de se manter a trégua entre as tribos da região. O pajé exortou os guerreiros a tudo fazer para manter a paz e somente combater em defesa dos territórios, quando a ameaça de outras nações pairasse sobre o domínio eterno dos guanavenas nas águas do lago Canaçari.
         Depois de finalizar a narrativa, Nahpy reuniu sua família e se dirigiu à grande oca coletiva, ocupando o espaço reservado para ele, sua mulher e os quatro filhos. Todos deitaram nas redes e logo o sono os acolheu, levando Xirminja para os braços de seu marido, onde foi recebida por carinhos largos. Aiauara sonhou com o dia no qual seria submetido ao ritual de passagem, sendo considerado um grande guerreiro, assim como seu tio Taobara. Nessa condição, participaria de combates e mataria os inimigos de seu povo, voltando para a aldeia com grandes honras. Tawacã teve um sonho estranho, pois se viu sendo levada amarrada no fundo de uma canoa por um guerreiro desconhecido, remando apressado para se afastar da ilha Saracá a grande velocidade, sem parar sequer quando terminaram as águas e mantendo as mesmas remadas vigorosas pelas brenhas da selva. A jovem índia queria olhar, mas não conseguia ver o rosto do guerreiro que a levava para longe de sua ilha, pois apenas as mãos do remador se deixavam visíveis, embora por elas fosse fácil conhecer seu tato. Byrytyty adormeceu tão profundamente que somente perturbou seu sono o medo ancestral das formigas, enquanto Matepi, a filha caçula de Nahpy, dormindo sob a proteção de seus pais, passou a noite toda sonhando com macaquinhos e passarinhos da floresta, por isso, durante a madrugada, soltava uns risos abafados, ouvidos somente pela diligência alerta de Xirminja.
         Mas nem todos os guerreiros foram dormir de imediato, porque Taobara convocou seus bravos de maior confiança para contestar as palavras do pajé, explicando não ser verdade que Paharamim determinou aos ancestrais viverem uma trégua secular com caboquenas e bararurus, até porque as duas tribos chegaram depois dos guanavenas ao mundo e, somente por isso, poderiam ser manipuladas e usadas em benefício da gente da ilha Saracá, única nação capaz de comandar os destinos dos povos da região. O cacique dizia que os guanavenas estavam destinados, por sua tradição e glória, a guerrear e vencer as tribos mais poderosas das margens do grande rio Amarelo.
         - Nosso povo é formado por valorosos guerreiros, proclamou Taobara, por isso temos de rever o acordo de paz com as tribos aliadas e preparar nossa expansão sobre os territórios de nossos inimigos.
         Os bravos guerreiros guanavenas saudaram as palavras do grande cacique, se mostrando dispostos a seguir os passos do chefe até a morte, porque confiavam na coragem de Taobara e também viram ele derrotar sozinho o maioral dos omáguas, numa luta de pura força que expulsou o inimigo do Canaçari, o lago sagrado do povo das águas verdes.