terça-feira, 30 de agosto de 2011

Capítulo 15 - Tocaia dos Mortos


          QUANDO MONAWA RETORNOU À ALDEIA NÃO ENCONTROU MAIS SEU IRMÃO YEPÁ, QUE HAVIA PARTIDO junto com mais alguns guerreiros em busca da Mudurucânia, onde deveria reencontrar seus amigos e propor uma aliança entre o povo mundurucu e os caboquenas. Levavam ordens explícitas de Meyki para convidar os guerreiros dessa tribo a visitar o rio Orowo, grande sortimento de comida e presentes a serem oferecidos como prova de confiança.
         Yepá era o líder da expedição, mas estava acompanhado de homens de confiança de Meyki, entre eles Pariti, o rastreador experiente que servira Uataçara e se mostrava agora um fiel seguidor das ordens do novo maioral caboquena. O grupo partiu com algumas canoas seguindo a correnteza rio do Orowo e de lá percorreram os labirintos do Marupá até atingir as margens do Canaçari, bem acima da foz do Puruzinho, evitando assim passar diante de alguma comunidade guanavena e revelar o segredo da expedição.
         A travessia do Canaçari foi penosa, porque ventos fortes e contrários retardaram o avanço das canoas e os valentes caboquenas tiveram de usar de muita força até vencer os banzeiros, numa viagem arriscada devido à altura das ondas. No final da tarde chegaram a outra margem do lago e procuraram uma praia onde montaram acampamento, mas não puderam fazer fogo porque este era um local de perambulação tanto de guanavenas quanto dos temíveis muras e um encontro com qualquer um dos dois grupos poria a expedição em risco. Caso fossem vistos pelos aliados, o segredo da missão estava perdido, se o encontro fosse com os inimigos, a morte seria certa.
         Os caboquenas se embrenharam no mato e passaram a noite pendurados nas altas árvores, escondidos dos olhos dos homens e das feras. Sua presença neste local seria breve, uma simples passagem aos perigos maiores que encontrariam quando cruzassem o grande rio Amarelo e penetrassem em território mura, a caminho da Munducânia.
         Estavam numa pequena faixa de terra, espremida entre o lago e o imenso rio, por isso, na manhã seguinte, Yepá e Pariti deixaram seus companheiros no acampamento e saíram caminhando em busca de um furo, por onde pudessem passar com as canoas até o rio. Percorreram uma manhã inteira, seguindo do lado onde o sol se punha, e quando a tarde já se anunciava com o canto dos periquitos inquietos finalmente viram a terra se abrir e a passagem procurada se mostrou aos olhos dos dois guerreiros.
          Yepá e Pariti se certificaram de ser esta mesmo a passagem que liga o rio ao lago e então retornaram ao acampamento com a novidade. Eles se juntaram ao restante dos companheiros e no mesmo momento decidiram seguir adiante, embarcando nas canoas e rumando até o furo. O grupo navegou pelas margens do lago e só procurou descanso quando a noite se tornou na escuridão impossível de ser vencida. Os caboquenas buscaram abrigo nas margens do lago, mas estavam próximos do grande rio Amarelo, distância superada com apenas alguns passos, e ali ficaram, tentanto observar o movimento das embarcações muras, mas apenas viram que nesta noite os inimigos não passaram pelo local.
         O dia amanheceu debaixo de forte chuva, mas os guerreiros caboquenas resolveram seguir adiante na missão. Eles montaram nas canoas e foram na direção do furo, mesmo sob a inclemência do clima. Para Yepá, a chuva serviria de camuflagem a eles, que remavam com vigor entre o igapó e as barrancas do lago, cruzando caminhos nunca navegados, porque seu território estava distante do grande rio Amarelo, até que Pariti deu o alarme e, finalmente, encontraram o local da passagem.
         - Tens certeza que é aqui a passagem? quis saber Yepá, preocupado pois já remavam há bastante tempo e a chuva escondia tudo a volta deles.
         - São aquelas castanheiras, respondeu Pariti, a da ponta é a maior de todas.
         Os caboquenas mudaram o rumo das embarcações e embicaram para a margem, procurando achar o caminho até o rio. Pariti deu um grito de felicidade quando viu um galho de ipê derrubado na água e comentou ser este o sinal da entrada do furo. Os índios ficaram mais ansiosos e remavam com força, rompendo o entrelaçado de galhos e cipós que impediam uma navegação mais rápida. As canoas atingiram o pequeno canal empurradas por varas e quando adentraram nas águas tranqüilas do furo a surpresa foi maior: somente com a correnteza era possível avançar pelo caminho.
         Aos caboquenas não foi difícil atingir as margens do grande rio Amarelo que estava iniciando a época da vazante e o lago derramava suas águas em direção ao rio. Yepá estava no comando da primeira canoa a chegar nas águas do rio e por um momento se deixou levar pela temeridade, ficando de pé na proa, gritando na chuva e desafiando os inimigos muras para a briga. Pariti também passou com sua canoa e se dirigiu até Yepá, advertindo-o dos perigos que todos agora estavam correndo, em pleno território inimigo.
         - Não tenhas medo dos muras, companheiro! o perigo é sermos capturados pelas mulheres guerreiras e a tua velhice te condenar a morte, brincou Yepá com o velho rastreador caboquena.
         A chuva torrencial dava tranqüilidade aos bravos que se sentirem protegidos dos olhos e das perseguições inimigas. Eles souberam aproveitar as condições favoráveis e cruzaram o rio, encobertos pelo temporal, que continuou caindo mesmo quando eles já navegavam cheios de cautelas pela perigosa margem direita, território onde estavam localizadas muitas aldeias dos muras.
         Quando a noite caiu, os guerreiros continuaram remando, pois precisavam aproveitar a escuridão e seguir viagem rio abaixo. A chuva tinha passado e necessitavam se esconder durante todo o dia, só seguindo o rumo das terras dos munducurus sob proteção das trevas. Os caboquenas tiveram a cautela de navegar pelo meio do rio e camuflaram as canoas com galhos para que na escuridão da noite suas embarcações fossem confundidas com árvores caídas boiando nas correntezas. Eles não pronunciavam qualquer som, cruzando algumas aldeias com tantos terrores que o alvoroço de seus corações abafava o crepitar das fogueiras acessas no centro das tabas inimigas.
          Os dias seguintes eram sempre da mesma forma. Aos primeiros raios da manhã, quando se desenhava os contornos nas margens, os guerreiros caboquenas buscavam o refúgio das ilhas no meio do rio, aproveitando para penetrar nos igapós e esconder suas presenças dos olhos inimigos. Continuavam sem acender fogo e por isso comiam os peixes moquedos, triturados com farinha e misturados à água, o chibé. Enquanto o sol brilhasse, ficavam quietos, dormindo no convés das canoas, enquanto outros vigiavam para evitar surpresa.
         Os caboquenas descansavam sob a sinfonia dos pássaros que buscavam essas ilhas como fonte de alimentação, por isso era sério o risco de serem descobertos por alguma turma de caçadores mura e assim ficavam atentos para notar a presença dos adversários e surpreendê-los com um ataque. Eles estavam escondidos e contavam com o fator surpresa, bastava apenas vigiarem das alturas, olhando o horizonte do rio da copa das árvores mais altas e detectar a aproximação dos barcos inimigos.
         Os caboquenas invocaram a proteção de Paharamim e por ele se sentiam protegidos, pois viram passar ao largo muitas canoas dos muras, algumas com números de guerreiros superior à tropa caboquena, mas sempre seguiam viagem, sem desconfiarem de que dentro do igapó se escondiam bravos de outras tribos, cruzando seus territórios. Yepá via-os passar sem esboçar qualquer reação, enquanto Pariti e os demais bravos açulavam o coração, amedrontados diante dos muras, mesmo quando estes cruzavam o rio por margens bem distantes.
         Foi assim durante muito tempo, o esconderijo de dia e a navegação silenciosa à noite, avançando em território dos muras até atingir o rio Mawé, por onde deveriam seguir até as entranhas da selva, no coração da Munduracânia. Os caboquenas confiavam na capacidade de Yepá em encontrar a foz desse rio desconhecido em plena madrugada e ele não os decepcionou. Quando estavam navegando sob o lume das estrelas, simplesmente receberam ordem de parar e remar até a margem, onde deveriam ficar até o raiar do dia.
         - Como podes saber que estamos próximos da foz desse rio? interrogou Pariti, fazendo um questionamento ao qual os outros guerreiros também gostariam de fazer, uma vez que na escuridão da noite não se podia distinguir sequer onde estava o nascente nem o poente.
         - Sinto o cheiro de suas águas, respondeu Yepá aos seus comandados e eles simplesmente obedeceram cheios de descréditos.
         Esperaram o dia nascer e sob a esplendorosa luz da manhã Yepá chamou Pariti para seguirem novamente sozinhos, em uma canoa menor, mais ágil e rápida, a buscar a boca do Mawé. Seria uma expedição perigosa, mas os dois guerreiros estavam determinados a cumpri-la mesmo pondo em risco as próprias vidas. Saíram do igapó remando próximo da costa da ilha onde mantinham esconderijo, mas logo tiveram de enfrentar o poderoso rio Amarelo e sua imensidão, expondo-se aos observadores muras. Seus corpos iam curvados e suas silhuetas quase se confundiam com as bordas da embarcação, tão dissimulados que vistos de longe seriam confundidos com um toco, e esta situação permitiu a eles se aproximarem da margem, só temendo estarem indo ao encontro dos inimigos, pois na posição como se encontravam não conseguiam observar direito as terras para onde estavam se encaminhando.
         Chegaram na margem sem serem percebidos, mas continuavam correndo tantos riscos como se estivessem em meio às batalhas mais cruentas, onde em cada curva do rio podiam encontrar as tropas inimigas ou um pescador solitário, mas estando em território estranho, qualquer surpresa seria desagradável. Yepá seguia na proa, enquanto Pariti remava na popa, assustando-se diante de qualquer gesto do companheiro a sua frente.
         Mudaram a tática de entrar nas terras dos muras sob o abrigo da noite e navegavam debaixo do sol, na tentativa de mais rápido achar a foz do rio Mawé e depois voltar e chamar os outros guerreiros. Demoraram alguns dias nesse intuito, mas o encontro com o rio foi inconfundível, diante das águas esverdeadas contrastando com a imensidão amarela do grande rio. Yepá sorriu em triunfo quando percebeu as primeiras nuanças de verde pintadas nas margens e logo ficou em êxtase quando a canoa penetrou no leito do Mawé, singrando as águas inesquecíveis por onde antes já tanto navegara o caboquena desgarrado.
         - Este é o rio que buscamos, disse Yepá ao companheiro, sem conter o júbilo de comprovar o que sempre contara e tantas suspeitas levantaram.
         - Eu sempre acreditei em ti, confessou Pariti, embora sua confiança em Yepá nem sempre fosse com a mesma intensidade como naquele momento.
         Retornaram na calada da noite, na certeza de atravessar as terras dos mura são e salvo e chegar ao destino que buscavam, mas antes era preciso voltar até a ilha onde se escondiam os outros caboquenas, gastando assim mais duas noites remando rio acima. O encontro com os companheiros foi comemorado com alegria surda e a confirmação de Pariti, de que realmente o rio Mawé estava a apenas algumas noites de viagem, infundiu no coração dos demais caboquenas a mesma satisfação daqueles que avistaram o verde de suas águas.
         A tropa saiu do grande rio Amarelo depois de duas noites se esgueirando pelos labirintos de ilhas e quando se encontraram dentro do Mawé remaram com maior intensidade, buscando se afastar o mais rápido possível do território mura. O sol surpreendeu os bravos remando fundo para vencer a correnteza contrária sem nada mais os assustar, nem a placidez das águas, diferente dos banzeiros aos quais eles estavam acostumados no vai-e-vém do rio Orowo e seus desafios à navegação.
         Os caboquenas não mais se esconderam do sol e seguiam viagem rio acima, ansiosos por encontrar os mundurucus, tão comentados nas palavras de Yepá, que também remava a frente de sua canoa, enquanto relembrava as histórias de seu tempo de vivência na Mundurucânia. Cada lembrança servia como açoites e empolgava as remadas, e Yepá tinha muitas delas para continuar a narrativa durante dias a fio.
         Os caboquenas avançavam pelo Mawé e se sentiam confiantes e protegidos, por isso navegavam durante o dia, reservando a noite ao descanso, quando acendiam fogueiras e assavam o pescado, contando e ouvindo histórias. Também estavam encantados com a beleza do lugar, por isso deixaram a pressa e passaram a se estender nas praias, se retardando em pescarias e caçadas, dormindo várias noites no mesmo lugar somente para acordar na beleza do sol nascente pintando as areias com cores diversas.
         Foram dias de tranqüilidade até o encontro com os primeiros habitantes do Mawé e, embora pacífico, a desconfiança se mostrou recíproca, mesmo com Yepá falando a mesma língua e explicando que estavam em paz, buscando encontrar o cacique da tribo e entregar-lhe os presentes oferecidos pelo maioral caboquena. Eram comunidades afastadas da aldeia principal da Munduracânia, muitos dias distantes da fronteira do território, onde os caboquenas se encontravam. No entanto, este primeiro contato infundiu confiança aos visitantes, que tomaram rumo do rio acima, remando com mais disposição de chegar logo em seu destino.
         Os caboquenas avançaram somente alguns dias e encontraram uma comitiva de mundurucus vinda ao encontro deles, pois já sabiam que estranhos penetraram em seus territórios a procura do grande chefe. Várias canoas com inúmeros guerreiros, todos armados para enfrentar qual inimigo fosse, mas também dispostos ao contato amigável, sempre em maioria e controle total da situação. Yepá se aproximou cauteloso e com gestos vagarosos, sabendo da pontaria certeira desses bravos, e prevenindo-se do receio mútuo não transformar em luta a intenção de amizade.
         Quando estavam próximos e já no alcance das armas, Yepá ficou de pé na proa de sua canoa, mostrando-se inteiro, numa afirmação de paz ao expor o corpo aos desconhecidos sabendo que estes não o atingiriam. Assim foi se aproximando, falando palavras na língua dos mundurucus e perguntando por seus antigos amigos, que vinha em paz e trazia alguns companheiros de sua tribo, mas também presentes a todos, inclusive ao maioral.
         Os mundurucus passaram a trocar palavras com Yepá, se entendendo através de gestos a remando em direção dos visitantes, mas agora com sorriso nos rostos e sem expressão feroz, embora a desconfiança ainda não permitisse abaixarem a guarda e nem descansarem os arcos. Um dos mundurucus imitou o gesto de Yepá e também se pôs de pé na proa de sua canoa, balançando os braços no alto a fim de se mostrar maior do que era, depois outros também se ergueram e somente os remadores ficaram sentados.
         - É Wai’A, gritou um mundurucu, quando reconheceu Yepá e o chamou pelo nome dado ao caboquena durante sua estadia entre esses índios.
         Logo todos os outros estavam chamando Yepá por seu nome mundurucu e quando as canoas se tocaram foram saudá-lo cheios de entusiasmos, reconhecendo um grande irmão de volta à tribo e trazendo outros de sua gente, confirmando de novo as histórias que contava aos novos amigos. Foi bem recebido e apresentou os outros caboquenas aos amigos e eles foram sendo reconhecidos e também receberam nomes novos, na língua local, cujos significados desconheciam, embora fosse usual serem apelidados por suas características físicas, por isso um se chamava macaco, outro cotia e Pariti, o mais velho entre os visitantes e experimentado no contato com a selva, foi nomeado de Onça Velha.
         A viagem pelo rio Mawé até a aldeia dos mundurucus foi de festa, com os guerreiros conversando tranqüilos, sem a tensão do primeiro encontro, na mais estreita confiança e com as armas dispostas no fundo das canoas. Os índios locais riam de forma como os caboquenas remavam, como se estivessem atravessando fortes banzeiros, mesmo com as águas do rio calmas, quebrando diante do avanço da tropa. As gargalhadas se sucediam quando um imitava um bicho ou uma palavra mal empregada por Yepá arrancava riso entre os mundurucus, ainda fascinados com o espetáculo da visita.
         De longe os caboquenas avistaram a aldeia principal da Mundurucânia e lhes pareceu maior do que nas narrativas de Yepá, se estendendo ao longo da praia e protegida por paliçada, algo estranho na concepção de índios acostumados a viver tendo como única defesa as areias das praias. Yepá explicou ser a fortificação para proteger contra ataques constantes dos inimigos e isto permitiu aos mundurucus conquistar cada vez mais territórios e agora serem donos da região do rio Mawé.
         Na entrada da aldeia outros guerreiros vieram escoltar os visitantes e levá-los diante de seu cacique, Araweté, e este apareceu cercado por homens bem armados e foi ao encontro dos caboquenas, paramentado com suntuosas penas que dignificavam ainda mais a presença do grande chefe. Yepá se dirigiu ao maioral com reverência respeitosa, dizendo vir em paz e sob o nome de Meyki, o cacique dos caboquenas, detentores das terras do rio Orowo e inimigos dos muras, com os quais já travaram muitas guerras.
         Araweté observava cada gesto do visitante e ao mesmo tempo cercava com os olhos os companheiros de Yepá, intrigado pelo fato de um estranho falar a sua língua. O caboquena continuou sua narrativa, mostrando os presentes oferecidos por seu cacique ao maioral mundurucu e explicando ser o motivo da visita uma missão de paz, cujo objetivo era apresentar os planos para uma possível aliança entre os dois povos, como era do interesse de Meyki, e a formação de um trato entre as tribos no combate aos inimigos comuns.
         O maioral recebeu os presentes e distribuiu aos seus guerreiros, oferecendo as mantas de peixes para as mulheres prepararem a comida e chamando a conversa seus conselheiros e Yepá. O caboquena levou consigo Pariti e os dois se reuniram com os mundurucus, quando contaram com mais detalhes os planos da aliança a ser firmada entre as duas tribos.
         Araweté escutou com atenção, inteirando-se de onde se encontrava o rio Orowo e se os muras eram inimigos de gerações dos caboquenas. Também queria saber quantos guerreiros poderia contar nas guerras e se estes eram preparados nas lutas, honrados na palavra e corajosos na briga. O cacique se mostrou impressionado quando Yepá lhe contou que apenas um lago separava as aldeias das duas tribos e que caboquenas havia tantos que muitas canoas não davam conta de transportá-los até a Mundurucânia.
         Para afiançar sua palavra, Yepá contou ao maioral suas andanças pelas terras das mulheres guerreiras, depois disse ser amigo dos saterês, tribo da região do rio Mawé, antes inimigos dos mundurucus, mas agora vivendo em relativa paz. Yepá disse ainda que cruzara muitas vezes o grande rio Amarelo até chegar de volta em sua aldeia, onde contou suas aventuras e elas despertaram em Meyki o desejo de propor a amizade entre as duas poderosas nações. Por isso, naquele momento, firmava o compromisso de serem amigos para sempre e convidava uma comitiva de mundurucus a visitar o rio Orowo, levando a resposta ao cacique caboquena.
         - Wai’A, tenho muito interesse em firmar aliança com teu povo, por isso, peço-te para descansar em minha aldeia e depois voltes à tua tribo, levando contigo minha palavra ao grande cacique Meyki, disse Araweté a Yepá, que recebeu entre sorriso o sinal positivo às suas propostas.
         Yepá saiu feliz da oca onde se reunira com os mundurucus por ter convencido o maioral a aderir à aliança e confiante em sua sagacidade de levar a confraternização aos dois povos. Chegou perto de onde se encontravam os outros caboquenas e confirmou a decisão de Araweté de aceitar o acordo, tanto que estava designando uma tropa para acompanhá-los de volta ao rio Orowo. Os guerreiros vibraram de felicidade com a notícia e, mais ainda, por poderem retornar à sua tribo em mais proteção, agora quando teriam de cruzar novamente o território dos muras e, se estes descobriram rastros da passagem dos caboquenas, ficariam atentos para evitar novas invasões.
         Os guerreiros passaram mais alguns dias na aldeia dos mundurucus, sob a hospitalidade de Araweté, ordenando tratamento especial aos visitantes e eles aproveitaram as belas praias do Mawé, descansaram e participaram das atividades cotidianas dos novos amigos. Yepá e Pariti foram levados às caçadas e retornaram com diversas queixadas, já outros caboquenas partiram em pescarias, encontrando lagos repletos de pirarucus e tucunarés que as canoas tiveram dificuldades em transportar.
         Quando chegou o dia de partirem de volta à sua aldeia, os caboquenas foram abastecidos com mantas de peixes e caças defumadas e receberam como presentes cocares e utensílios usados nas caçadas. Duas canoas com guerreiros mundurucus acompanhariam os visitantes até o rio Orowo para fazer o reconhecimento do terreno e contar o número de bravos caboquenas que formariam a tropa aliada. Eles deveriam trazer relato de como viviam os caboquenas e se eram preparados para a guerra contra uma nação de valorosos combatentes, dominadores das margens imensas do grande rio Amarelo por sua força e por suas armas.
         A Yepá ofereceram um presente especial, sabendo ele tratar-se de deferência dada apenas aos visitantes mais importantes, cujos poderes mágicos fortaleciam os homens com vigor na guerra e disposição no amor. O líder dos caboquenas agradeceu a Araweté o cesto cheio de bastões de guaraná e de sementes, deixando o cacique surpreso com seu conhecimento sobre as coisas dos mundurucus.
         - Como que tu conheces nossa fruta da vida? indagou o cacique ao audaz guerreiro caboquena.
         - Já vivi com teu povo, por isso me chamo Wai’A, respondeu Yepá.
         Ele pôs na boca duas sementes e mastigou-as até se dissolverem na saliva, absorvendo as qualidades fortificantes dos caroços. Depois ergueu o paneiro até os ombros e o ajeitou nas costas, dispensando a ajuda oferecida por outro índio, não querendo se separar da carga preciosa. Yepá sabia o valor dessas barras, feitas de sementes piladas e moldadas nestas formas, que seriam raladas na língua seca de piraruru até retornarem ao pó e este, misturado na água, tomado em jejum, todas as manhãs.
         - Basta raspar as barras na língua do peixe e recolher o pó, ensinou Yepá aos outros caboquenas, fazendo o trabalho diante dos olhos atentos deles. Depois o guerreiro bateu a língua óssea na mão e nela caíu o pó de guaraná, que num gesto, repassou-o da mão aos dedos e deu na boca dos companheiros, que aprovaram extasiados.
         Os índios misturaram a massa na saliva e sentiram o sabor da fruta diluindo na boca, então engoliram tudo e logo seus corpos ganharam nova disposição de aventuras. Encorajados pelo vigor das frutas eles tomaram os remos e foram nas canoas empreender a viagem de volta, mas sem antes deixarem de receber cada um algumas sementes, que puseram na boca, trituraram nos dentes e foram absorvendo-as lentamente.
         - Vamos, valentes caboquenas! gritou Yepá encorajando seus companheiros a seguir viagem. Com a ajuda dessas sementes vamos até o fim do mundo.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Capítulo 14 - Tocaia dos Mortos


         HAVIA PASSADO UM CICLO COMPLETO DE ÁGUA DESDE QUANDO MONAWA RAPTARA TAWACÃ E A LEVARA para viver em sua tribo. Agora era preciso viajar até a aldeia guanavena levando a pequena Waiãpi e apresentá-la aos parentes, confirmando o casamento pelo consentimento dos pais de jovem. Monawa preparou sua canoa com muitos presentes que levaria à tribo dos guanavenas, incluindo carnes defumadas para servir em banquete aos índios amigos. Era preciso conquistar-lhes novamente a confiança, perdida no ato do seqüestro, mas com inteira possibilidade de reconciliação, devido o fato estar consumado e, agora, o caboquena cumpria a parte definitiva do ritual, quando levava a moça de volta a sua gente e estes visem que ela estava sendo bem tratada.
         Tawacã apresentava sua melhor forma, com a criança tendo passado os dias críticos de vida e agora era somente saúde, tanto na mãe quanto na filha. O pai envaidecido esperava ansioso sua família embarcar na canoa e iniciar a viagem até a ilha Saracá, o berço da esposa, onde ela se criou e se tornou mulher por inteiro. Mãe e filha tomaram assento no banco da popa da canoa, a criança no colo, protegida dos ventos matinais que neste momento da manhã golpeavam as margens do rio Orowo, mas em breve se transformariam em ventania quando o sol ultrapassasse o meio do céu e as águas, agora tranqüilas, se enraiveceriam, dificultando a navegação.
         Era preciso avançar com rapidez para aproveitar as condições favoráveis, porque depois teriam de esperar os ventos se acalmarem antes de alcançar a foz do Orowo, evitando assim a navegação de risco, principalmente quando se viaja com criança e carregado com presentes. Monawa conhecia o perigo e remava fundo, seguindo a direção das águas correndo para onde as luzes do sol pintavam de vermelho o dia. No segundo dia de viagem a placidez do rio deixava a canoa fluir na direção certa e o pai zeloso remou com vontade até ver os contornos dos morros da ilha, quando pode driblar os ventos já velozes por entre os igapós da foz imensa.
         Ele contornou as árvores alagadas e surgiu no Estreito, e esta visão trouxe à Tawacã as lembranças dos tempos de criança, quando costumava atravessá-lo a nado, junto com os irmãos e parentes, entrando no mundo dos caboquenas, embora contrariando as recomendações de todos de não deixar a proteção da ilha. A jovem mãe estendeu os seios para Waiãpi, que acordou ao sentir os primeiros ares da terra de seus ancestrais, e a criança sugou o leite com vontade, aconchegada no colo da mãe e inteiramente entregue ao território de seu povo.
         - Waiãpi está se sentindo muito feliz em nossa terra, disse Tawacã ao marido, que remava com vigor para cruzar o Estreito e atingir o lago Saracá.
         - Eu também estou feliz por voltar ao local onde conheci a minha esposa, respondeu Monawa, sem tirar a força dos remos e ansioso por ter de enfrentar os ventos agora de frente, sem a proteção da ilha e sem igapó onde se esconder.
         O casal estava feliz voltando a encontrar os pais de Tawacã e ela procurava tranqüilizar o esposo, ainda temeroso de ser recebido com rancor por parte de Nahpy, que não aceitou seu casamento e ainda foi atrás do casal na tentativa frustrada de resgatar sua filha. A esposa dizia conhecer seu pai e por isso sabia que o coração dele perdoaria ao marido, ainda mais quando tivesse nos braços a pequena Waiãpi, sua neta.
         - Não te esqueças que minha mãe é caboquena, disse Tawacã e estas palavras apaziguaram os temores de Monawa, que remou mais rápido, já ansioso por encontrar sua nova família.
         Vencer os ventos e os banzeiros da parte da ilha voltada ao infinito foi tarefa árdua para Monawa, mas seu desejo de chegar e enfrentar logo o humor de Nahpy lhe dava forças de remar e seguir na direção da praia onde se encontrava a aldeia maior dos guanavenas. Era uma ponta de praia cuja língua de areia adentrava no lago e interrompia os banzeiros na entrada de um pequeno igarapé, cuja baía dava em um porto seguro às embarcações vindas dos mais distantes rios.
         Monawa chegou à beira da praia e logo os guanavenas vieram saudá-lo, uns fazendo festas e outros olhando com indiferença. Ainda estava marcada na lembrança de alguns o dia em que o caboquena se aproveitou do convite feito por eles para raptar uma de suas mulheres. Mas logo a visão da família desfez os rancores e os recém-chegados foram recebidos com abraços sinceros, até um grito romper no meio de todos e a voz de Xirminja chegar primeiro que seus passos ao encontro da filha, há muito afastada de seu convívio.
         - Minha filha querida, disse Xirminja a Tawacã, enquanto se abraçavam, deixando no meio delas a pequena Waiãpi esmaga pelo amor das duas mulheres.
         Em seguida chegou Nahpy acompanhado dos outros filhos. Aiauara trazia com orgulho sua esposa Tananta carregando o filho do casal, um menino forte que deixava antever o destino de guerreiro no futuro. A família de Nahpy se reuniu ao lado de Tawacã, seu esposo e a filha, e todos queriam pegar Waiãpi no colo, mas a mãe se recusava a entregar a criança, só o fezendo a Matepi, a irmã mais nova, a quem não via há bastante tempo e agora se mostrava imponente na puberdade, alcançando uma altura superior à da mãe e da irmã e a beleza maior do que a soma das duas.
         Byrytyty também havia crescido e estava quase chegando na idade de passar pelo ritual de guerreiro, não correspondendo mais à imagem que Tawacã trazia do irmão mais novo, uma criança sempre fraca e inspiradora de cuidados excessivos por parte da família. A jovem mãe depois foi ao encontro de Aiauara e de sua família, abraçando Tananta com afeto, assim como ao bebê. Repetiu o mesmo gesto com a mãe, como se retardasse, na intenção de ampliar a magnitude do ato, o abraço dado no pai.
         Tawacã olhou bem no fundo dos olhos do pajé e viu a candura intensa que a fez de repente esquecer o temor de não ser aceita novamente como a filha dileta, mas Nahpy a recebeu nos braços e seu gesto mostrou não haver mágoas no coração dele. O pajé entendeu ser este o destino da filha, mas sem perder a esperança de fazê-la sua sucessora, porque a vida estava no começo e o destino de todos ainda era traçado. Foi o abraço mais prolongado e o que mais lágrimas custaram ao pai e à filha, num reencontro para o qual Nahpy se preparara desde quando desistiu de procurar por ela nas brenhas do Marupá, mas mesmo assim seu sentimento paterno se deixou trair por gestos espontâneos, fizendo erguer a filha no colo, num procedimento tão inusual que arrancou risos do restante da tribo.
         A alegria de Nahpy contagiou toda a gente guanavena e a muitos passou despercebido quando o pajé segurou a pequena Waiãpi e a abraçou com tanto afeto que a criança chorou assustada: o amor do avô causou-lhe um calor repentino. Mas ninguém deixou de observar quando Nahpy se dirigiu até onde estava Monawa, e este era justamente o momento ao qual a aldeia inteira aguardava com aflição, pois todos queriam saber qual seria a atitude do pajé em relação ao genro que nos últimos tempos tanto amaldiçoara.
         - Seja bem-vindo à nossa aldeia, meu filho! disse Nahpy a Monawa.
         - Aceito tua bondade e a tua vontade, meu pai, respondeu o guerreiro caboquena, perplexo ainda pela remissão de suas culpas, que julgava serem difíceis de perdoar, mas agora se encontrava na certeza de ter sido aceito no seio da família de sua esposa.
         Os dois trocaram abraços fraternos e ambos descobriram quantas resistências tiveram de vencer até estarem agora em congratulações recíprocas, num encontro de inimigos em buscam da paz porque entenderam que a guerra seria impossível entre eles. Monawa sentiu as pernas fraquejarem, da mesma forma como as sentiu diante da ordem de seu maioral para avançar contra os muras, durante o período da guerra, mas assim como soube se comportar com bravura diante do inimigo, assim permaneceu defronte de Nahpy, por quem remara durante dois dias para mostrar ao sogro que sua filha estava bem casada e protegida por ele.
         - Eu sempre serei um marido honrado para sua filha, prometeu o caboquena diante do pajé e, estendendo a garantia também à família de Nahpy, abraçou Aiauara, em consideração ao guerreiro guanavena, ao lado de quem lutara sua primeira guerra.
         Para demonstrar que veio fazer parte da família da esposa, Monawa retornou à canoa e retirou os presentes: mantas de pirarucu, carnes de pacas moqueadas e tantas outras comidas, pois na festa de retorno de Tawacã não poderia faltar nada de comer. Para beber, o caboquena trouxe várias cabaças de caxiri, feito com intenção sincera de impressionar os novos parentes.
         Xirminja se encarregou de dar ordens aos preparativos da festa, mandando apanhar lenha e acender uma grande fogueira, pediu que limpassem o terreiro até o chão estar em condições de receber os convidados da noite de bonanças. A mãe de Tawacã não podia conter sua felicidade de estar novamente próxima da filha e queria uma festa como sabia merecer a jovem mãe.
         - Esta será tua festa de casamento, repetia Xirminja à filha, quase num êxtase, que sempre sonhara com uma comemoração assim quando Tawacã fosse se unir ao seu marido, mas o atrevimento de Monawa, ao raptar a jovem, impedira a realização de sua vontade e somente agora podia concretizar.
         Nahpy chamou Monawa para uma conversa e Aiauara os acompanhou, pois tratariam de assuntos de interesse dos homens. Foram à oca principal e Byrytyty os seguiu na intenção de tomar parte da reunião, se sentindo já na idade de participar das conversas sobre sua gente, mas apenas um olhar ríspido do pajé o fez vacilar quanto a sua intenção e o pequeno recuou, disfarçando seu desapontamento de ainda não ser aceito no universo dos adultos. Byrytyty voltou ao encontro de sua mãe e irmãs e das outras crianças, mas este era um mundo no qual não se encontrava e ficava deslocado, sem vontade de brincar ou obedecer às ordens das mulheres.
         Tawacã pediu para Matepi carregar a pequena Waiãpi enquanto ajudava as outras mulheres no preparo da comida, seguindo as ordens de Xirminja, que queria uma festa grande, igual a sua na volta à aldeia dos caboquenas, levada por Nahpy, na época um jovem guerreiro, mas predestinado a ser o pajé de sua tribo. Byrytyty, magoado pelo fato de não estar na oca com o pai, o cunhado e o irmão mais velho, descontava sua ira nos gravetos da fogueira, quebrando os galhos com a força concentrada em seus músculos.
         Na oca, os três se sentaram para conversar e Nahpy tomou a palavra, dizendo ao genro que se sentia feliz pela volta de sua filha, ainda mais trazendo consigo a neta Waiãpi, com boa saúde. O pajé comentou que Tawacã também estava bem tratada, mostrando assim a dedicação aplicada pelo marido no cuidado de sua família.
         - Tu tens te mostrado um bom marido e pai, disse Nahpy ao genro.
         - Procuro fazer o melhor, porque não iria tirar Tawacã da tua companhia, onde ela era feliz, e deixar-lhe faltar qualquer coisa, trazendo sofrimento a ela, respondeu o caboquena, orgulhoso do fato de seu esforço estar sendo reconhecido pela família da esposa.
         O pajé balançou a cabeça em reconhecimento e disse que o perdoava e o aceitava como membro de sua família e de agora em diante o caboquena trazia em seu sangue a linhagem dos ancestrais de Nahpy. Monawa se mostrou agradecido e falou sobre seu dever de lutar pelo bem das tribos aliadas, demonstrando sua intenção de estar sempre junto dos guerreiros quando fosse defender o território onde vivia seu povo e o de sua esposa.
         - Eu lutei ao lado dos guanavenas e sou testemunha da coragem com a qual brigam os guerreiros dessa tribo, disse Monawa, e olhando para Aiauara completou, principalmente meu irmão e cunhado, com o qual dividi a honra de empunharmos nossas armas contra o inimigo mura.
         Aiauara sorriu em agradecimento, respondendo que Monawa também se mostrara honrado na luta, portanto merecia estar casado com Tawacã e fazer parte de família de Nahpy, obedecendo às tradições dos guanavenas, o grande deus Paharamim e o respeito aos ancestrais, que brindaram o caboquena com uma filha saudável. Monawa, com um gesto, aceitou a imposição do cunhado e os dois jovens voltaram a trocar abraços, uma forma de demonstrar fraternidade existente entre eles.
         A conversa transcorreu por longo tempo, sendo preciso colocar mais lenha na fogueira acesa no centro da oca e Nahpy mais de uma vez teve de enrolar seu fumo e buscar na brasa a chama para acendê-lo. Monawa rodeava o assunto com elogios, ora ao cunhado, ora ao sogro, mas para falar o que queria só tomou coragem quando o pajé percebeu sua ansiedade e perguntou ao caboquena se esse sentia necessidade de dizer mais alguma coisa.
         - É que eu queria pedir tua permissão para criar minha filha conforme as tradições de minha tribo e colocar nela um nome de origem caboquena, pediu em súplica Monawa.
         - Isso é impossível de conceder, pois a tradição de minha tribo é matrilinear e por isso Waiãpi será sempre uma guanavena, retrucou o pajé, reticente em conceder mais um benefício ao genro, por quem desfizera o ódio e até o aceitara como parente, mas permitir esse privilégio estava acima de sua boa vontade.
         Aiauara questionou Nahpy pelo fato de que muitas das famílias intertribais decidirem entre eles pela criação dos filhos, entendendo ser apenas um capricho por parte do pai em não conceder ao cunhado a decisão sobre o futuro da filha.
         - Não questione minhas decisões. Eu sou teu pai, respondeu bravo o pajé.
         - Eu sou teu filho, mas também sou homem e sou pai, por isso apenas te peço para permitir ao nosso parente Monawa criar seus filhos conforme a tradição de sua tribo, implorou o guerreiro guanavena ao pai resoluto.
         - Os jovens ainda têm muito de aprender sobre a vida, vaticinou o pajé, dando o assunto e a reunião por encerrados.
         Os três saíram da oca e encontraram tudo preparado para a grande festa de casamento de Tawacã e Monawa e foi apenas vê-los caminhando em direção ao centro da aldeia e todos correram a cumprimentá-los, querendo saber sobre o acertado e o transcorrido na conversa particular dos novos parentes. O caboquena aconchegou-se ao lado da esposa e da filha, estava cansado pela longa conversa e insatisfeito com o resultado obtido ao ter de ceder mais do que conquistara, embora apenas o fato de estar entre os guanavenas já era considerado uma grande vitória. Tawacã percebeu o constrangimento do esposo e adivinhou seus pensamentos e os motivos para tal desânimo, mas o incentivou a permanecer firme, encostando os lábios no ouvido dele, como sempre fazia para encorajá-lo.
         - Deixe o tempo transformar as coisas e tudo se ajeitará, sussurrou Tawacã ao marido, colocando a filha entre os braços de ambos, num gesto de desafio à vontade paterna e deixando claro que a pequena Waiãpi seria guanavena, como determina a tradição de sua gente, mas também teria os costumes dos caboquenas, por ser dessa tribo seu pai e sua avó.
         A festa de casamento foi farta e se prolongou madrugada adentro, com comida variada e reforçada por carnes inesperadas trazidas por Taobara, que chegou neste mesmo dia da caçada com seus bravos e fez questão de presentear Tawacã com um cocar feito de penas de arara, igual ao usado pela prima Cayabi em sua festa de casamento. Cayabi também participou das comemorações, trazendo nos braços o primeiro filho do cacique, um saudável varão, motivo de orgulho de toda a tribo, que devotava a ele as honras de herdeiro da liderança dos guanavenas.
         Na manhã seguinte, logo após a primeira refeição do dia, Aiauara convidou o cunhado para uma pescaria no lago Purema, onde a fartura de peixes permitia à tribo dos guanavenas uma fonte segura de pescado todo o tempo, seja nas águas baixas seja nas altas. O lago era guarnecido por um labirinto de paranás e somente quem conhecia seus caminhos podia penetrar em seu interior, sempre abastecido de cardumes, vindos tanto do lago Canaçari quanto do grande rio Amarelo. Esse encontro de águas diversas tornava o local piscoso e importante aos guanavenas, por isso sempre foram às guerras quando o manancial de comida esteve ameaçado por tribos rivais.
         Aiauara estava acompanhado de Pikiwaha e trazia todos os apetrechos de pescaria, faltando apenas Monawa se juntar ao grupo, indo no meio da canoa, enquanto o cunhando remava na popa e o primo na proa. Era preciso remar rápido para aproveitar a calmaria matinal antes de alcançar a Ponta Grossa, porque com o sol acima dos morros a travessia do paraná de Itapiranga seria prejudicada pelos fortes ventos vindos do grande rio Amarelo e ninguém ousaria desafiar os banzeiros formados na saída das águas do Canaçari. Os amigos seguiram determinados e em pouco tempo estavam cruzando o paraná de Itapiranga, atingindo a boca do Purema quando o ar já se movimentava pelo céu como um bando de queixadas famintas.
         Tawacã ficou na aldeia tomando conta da filha e da lida diária das mulheres, procurando fazer seu trabalho como nos tempos de solteira, quando acompanhava a mãe até a roça para cuidar das plantações de mandioca, dedicando pouco tempo às brincadeiras com as outras crianças. Cayabi não desgrudava da prima, querendo saber como era a vida na aldeia dos caboquenas e como fora a experiência na fuga com Monawa, quando o casal teve de cruzar o Marupá em fuga, perseguido pela patrulha de Nahpy, o pai cujo desejo era recuperar a filha raptada.
         A jovem contava com satisfação as lembranças daqueles dias, recordando como tentara escapar da canoa, mas sem usar de toda a força nem de esperteza em empreender a fuga, mesmo sem conhecer o raptor e nem estar interessada em casar logo. As primas riram quando Tawacã contou que praticamente se deixara seqüestrar pelo guerreiro, facilitando as coisas, mesmo gritando por socorro e se debatendo em desespero de ser levada de sua aldeia querida.
         - Monawa estava tão desesperado que não conseguia me amarrar com firmeza e eu não fazia muito esforço de escapar, confidenciou à Cayabi, e ambas se olharam com cumplicidade, deixando soltas as gargalhadas.
         Xirminja se aproximou da filha querendo saber o motivo de tanta satisfação e ambas mudaram de assunto, dizendo conversarem sobre os tempos na casa das mulheres, mas a velha índia sabia que as recordações vividas em tal local não mereciam risos incontidos. Xirminja olhou as primas com a desconfiança natural de quem sabe estar se intrometendo na conversa alheia e por isso se afastou, deixando-as retomarem seus assuntos e ficou escutando as gargalhadas das duas.
         A vida na aldeia dos guanavenas transcorria com normalidade até Taobara chamar Monawa, logo quando este retornou da pescaria no Purema, para uma conversa em sua oca. O cacique guanavena queria saber notícias de seu amigo Meyki e como o mesmo estava preparando seus guerreiros, porque novas guerras se anunciavam por toda parte. Taobara fora informado sobre o aparecimento de Yepá e das conversas dele a respeito de uma terra onde os guerreiros eram poderosos e invencíveis e queria saber detalhes, se estreitar das novidades vindas das terras do rio Orowo.
         Monawa devia lealdade a Meyki e este o alertara de não falar nada sobre as aventuras de Yepá na Mundurucânia, informação sobre a qual o cacique caboquena queria manter segredo, ainda mais quando o índio já preparava uma viagem para encontrar seus amigos e fazê-los aliados. Monawa tergiversava sobre a história de seu irmão, afirmando que o mesmo passara tanto tempo vagando pela floresta que agora estava perturbado do espírito.
         - Não dê tanto crédito ao que lhe dizem a respeito de meu irmão, comentou o caboquena com Taobara, deixando o cacique mais desconfiado de que algo muito estranho ocorria na aldeia de Meyki, para ele próprio ordenar segredo sobre o assunto. O maioral guanavena raciocinava que o tratamento dispensado aos boatos da aldeia Maquará confirmavam os relatos de seus espiões, dizendo que o cacique caboquena pretendia romper a aliança das tribos e seguir sozinho na luta por mais território.
         Taobara não cometeu indelicadeza com Monawa e ainda o convidou a tomar parte em suas caçadas, quando a lua sumisse no céu, que transcorreria nos próximos dias. Depois o guerreiro caboquena saiu da oca do maioral e, então, Taobara chamou seus guerreiros mais próximos para confabular sobre as reticências de Monawa, afirmando ver muito claro Meyki alertando o caboquena para evitar conversas sobre o assunto e não denunciar sua intenção de buscar novos aliados e sair da esfera de domínio imposta pelo cacique dos guanavenas, desde quando Uataçara liderava os bravos do rio Orowo.
         Já havia passado duas luas cheias desde quando Monawa deixara sua aldeia, com a família, e se juntou aos seus parentes da tribo dos guanavenas. Neste período tinha saído para pescarias e caçadas, participara das reuniões dos bravos, fora convidado a se reunir com os anciãos e ouvira as histórias de Nahpy sobre a origem do povo do lago Canaçari contadas nas noites enluaradas, em volta da fogueira, na beira do lago. O caboquena estava integrado à gente de sua esposa, mas o desejo de retornar ao seu povo a cada dia se intensificava, ainda mais quando as perguntas de Taobara o deixavam sem respostas e as imposições de Nahpy o faziam se sentir cada vez mais submisso aos ditames do sogro.
         - Vamos retornar à nossa aldeia, disse o marido à esposa, quando ambos deitaram nas redes, depois de ouvirem os relatos de Nahpy.
         - Podemos ficar mais uns dias, pediu Tawacã. Talvez na próxima lua cheia, pois nossa filha está tão satisfeita no convívio com nossos parentes, argumentou.
         Monawa não costumava negar os pedidos da esposa, sempre cedendo aos seus desejos e fazendo suas vontades, mas agora era questão do caboquena se impor diante da situação porque estava há muito tempo fazendo só o que lhe mandavam. Estava farto do julgo de Nahpy e dos questionamentos de Taobara e até Aiauara se impunha diante dele como líder, dando-lhe ordens quando saíam para pescar ou caçar. Monawa precisava fugir dessa submissão na qual tinha se enredado e a única saída era o retorno à sua gente, onde era tratado como igual.
         - Não tenho mais vontade de permanecer nestas terras, preciso estar perto de minha gente, senão morro panema, comentou Monawa com a esposa.
         Tawacã sabia qual era a verdadeira razão por trás da vontade do marido de retornar à sua gente, pois assistia como seus parentes o tratavam e percebera muitas vezes o constrangimento dele quando fazia tarefas a mando de seu irmão Aiauara. A esposa vira em Monawa um fraco desde quando ele a raptara e só não morreram durante a fuga devido ela ter assumido o comando das tarefas, fazendo chás para curar a fatiga do futuro esposo e infundido-lhe coragem no momento de continuar a caminhada pelas matas tenazes do Marupá.
         No entanto, Tawacã tinha plenitude das ações e guardava só com ela o segredo do esposo fraquejando nestas situações, mas tampouco queria seus parentes percebendo o quanto a falta de vontade de Monawa o delimitava, embora suas obrigações de chefe de família fossem cumpridas com afinco. O caboquena já provara ser corajoso na guerra, quando lutara contra os muras, mas lhe faltava fibra de se impor diante das adversidades, e estes fatos deixavam Tawacã desconfiada se realmente seu esposo poderia ser respeitado por seus parentes. Um marido sem ímpeto era uma vergonha pela qual Tawacã não desejava passar.
         Ela queria sinceramente permanecer mais alguns dias com sua família, aproveitar a convivência com sua gente, mas as razões postas por Monawa, e até as por ele escondidas, eram motivos suficientes para acatar as ordens do esposo e retornar à aldeia dos caboquenas. A índia passou a noite inteira pensando na viagem de volta abraçada à filha, algumas vezes chegou a soluçar, mas quando o dia amanheceu, seu semblante não demonstrava nenhuma dúvida sobre a necessidade de ir embora, tanto que ela mesma deu as ordens para Monawa armar a canoa porque partiriam ainda nesta manhã rumo às terras dos caboquenas.
         Nahpy tentou mudar a decisão da filha, mas a negativa de Tawacã foi tão peremptória que o cacique percebeu não ter argumento de impedi-la de voltar com sua família à aldeia Maquará. Xirminja também pediu que ficassem mais alguns dias, mas nada fazia Tawacã mudar de idéia. O pajé procurou Monawa na beira do lago, quando este arrumava as bagagens da família na canoa e tentou convencê-lo fazer a filha nudar de idéia, mas a resposta que recebeu deixou-o atônito.
         - Estamos retornando a nossa aldeia não por decisão de Tawacã, mas porque sou eu quem quer voltar, disse Monawa.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Capítulo 13 - Tocaia dos mortos


   SEU NOME SERÁ WAIÃPI, DISSE TAWACÃ AO MARIDO, QUANDO ESTE CHEGOU DA CAÇADA, embora o desejo de Monawa fosse colocar um nome mais apropriado a uma menina caboquena.
         Os caçadores chegaram quase ao mesmo tempo na aldeia trazendo as caças e colocaram tudo no trapiche, mandando os meninos carregarem as peças defumadas para as mulheres iniciarem o preparo e amarrarem os dois jabutis ainda vivos, impedindo-lhes a fuga. Os bravos vindos acima do rio não perceberam, navegando com poderosas remadas para vencer a correnteza, a chegada de Yepá vindo da foz do Orowo, trazendo um grande carregamento em sua canoa solitária.
         Ele também atracou sua embarcação no trapiche, ao lado das outras canoas. Mesmo sendo sua intenção não mostrar a fartura de sua caçada, não poderia passar despercebido aos demais que Yepá obteve sucesso na empreita. No convés de sua canoa estavam depositados um veado macho, como poucos viram de igual tamanho, algumas pacas e também cotias e três queixadas, uma delas ainda sangrando e com a flecha certeira cravada entre os olhos.
         Era carne suficiente para alimentar a tribo durante vários dias, mesmo em período de festa, mas Yepá trazia uma prenda ainda mais valiosa, que mesmo todos os guerreiros da aldeia reunidos não conseguiram capturar: era um mutum, dos gigantes, que o cunhado prometera a Tawacã e a quem ofereceu quando a viu se aproximando com a pequena em seus braços.
         A guanavena recebeu o presente e o repassou à mãe de seu marido que prepararia o caldo do mutum com o qual se fortaleceria do revés do parto. Ela ficou admirando a quantidade de caça na canoa do cunhado, quase o mesmo resultado produzido pelos outros guerreiros reunidos, sendo que em qualidade, a de Yepá era muito superior, pois as presas capturadas pelo caçador solitário eram de raros sabores e de difícil abate. Não poderia passar despercebida à Tawacã a destreza de Yepá na arte da caça, da mesma forma como não passou ao restante da tribo.
         As armas eram as mesmas. Yepá levava consigo um arco com flechas, destinados aos animais grandes, uma zarabatana com setas envenenadas usadas na captura de pequenas presas e uma borduna com a qual dava cabo em definitivo caso o primeiro golpe não fosse suficiente para matar a caça. Os outros caboquenas também usavam os mesmos utensílios, mas com resultados diferentes: só conseguiram abater presas caçadas com freqüência e de fácil captura, que não cobravam grande destreza ou agilidade, somente sorte de topar na mata com jabutis lentos na fuga, incapazes de escapar diante de um grupo vasculhando as florestas.
         Monawa percebeu a inveja dos outros guerreiros em relação ao seu irmão e mais uma vez tentou amenizar esses sentimentos, pois temia a reação perigosa que viria a ser fatal caso os caboquenas enveredassem por imaginar que Yepá fazia esse tipo de coisa tentanto se mostrar superior, desfazendo-se dos outros bravos, dispensando-lhes a companhia e a amizade. O jovem pai, elevado em categoria pela nova posição na aldeia, abraçou o irmão e o aproximou ao restante do grupo.
         - Este é meu irmão e seu sangue é caboquena, bradou Monawa, impelindo aos demais a dar vivas ao caçador destemido.
         A reação dos guerreiros não resultou no entusiasmo esperado por Monawa, mas mesmo assim ele ficou feliz ao ver os arcos de flechas sendo erguidos ao alto, em saudação aos feitos de Yepá, e este se mostrou aceito por sua gente, da qual estava separado do convívio há muitos ciclos de águas.
         A festa foi realizada com todas as honras prestadas ao guerreiro que mostrara ser um grande caçador e para Tawacã, cuja filha era o orgulho da nação caboquena, a quem as homenagens eram alardeadas a cada posta de carne servida. Os índios evocavam aos ancestrais e Paharamim pela fartura desse dia e que se perpetuasse ao longo da vida da pequena Waiãpi e nada lhe faltasse no fortalecimento do corpo e na cura das doenças, antigas ceifadoras de crianças nos primeiros dias de existência.
         Os índios comiam com fartura, saboreando as carnes que não paravam de ser postas na fogueira, sempre crepitante devido à quantidade de gordura queimada na brasa. O fogo produzia uma revoada de claridade ao incendiar a noite na praia e a fumaça impregnava os sabores das caças, aumentando a fome de todos, fazendo-os comer com a gula de quem tem muito, com ossos cobertos de carnes sendo jogados na areia, e imediatamente eram devorados pelas formigas.
         A mãe de Monawa trouxe a Tawacã uma cuia com o caldo do mutum e somente o calor exalado do recipiente fumegante revigorou as forças da jovem índia. Ela entregou a criança à avó, segurando a cuia com ambas as mãos, sorvendo o líquido espesso e saboreando as carnes do animal, cuja vitalidade borbulhava na gordura do guisado. Tawacã tomou em pequenos goles, sentindo o alimento penetrar goela abaixo até o fundo de seu corpo e reacendendo dentro de si novas forças para alimentar a filha. De imediato seus seios responderam aos estímulos do caldo e fez brotar o leite viscoso com o qual inundaria de vida seu pequeno ser. Após saborear com prazer o restante da cuia, a guanavena retomou aos seus braços a pequena Waiãpi e lhe entregou o mamilo que não conseguia reter a explosão do jorro lacto e a criança mamou até adormecer, embalada pela cantoria de seus parentes e o afago de seus pais.
         Quando a lua minguante despontou no céu, vinda das terras dos guanavenas, Tawacã se recolheu à oca, acompanhada pela sogra e as crianças menores, afinal chegara o momento de repousar na rede e esperar uma boa noite de sono. Os guerreiros permaneceram em volta da fogueira, comendo o restante da festa e agora inebriados pelo efeito do caxiri, servido à farta. Então um deles perguntou a Yepá como tinha feito para sobreviver aos perigos das terras das mulheres guerreiras e o bravo contou mais outra vez suas aventuras por florestas distantes e rios tempestuosos, caçando com índios destribalizados que vagavam pelo mato em busca de caças fartas e saques às aldeias desprotegidas.
         Mas os bravos queriam mesmo era ouvir as histórias sobre os dias na aldeia das índias guerreiras, as mais fascinantes de todas até agora contadas, porque desmistificava a verdade de que nenhum homem sobrevivera ao encontro com essas mulheres ferozes.
         Então Yepá relembrou seus momentos de aflição quando foi capturado, junto com seu primo Benry, levado amarrado no fundo de uma canoa além do grande rio Amarelo para as terras das mulheres guerreiras. Ele contou que quando chegaram na aldeia foram jogados no fundo de um buraco onde outros bravos de tribos diversas aguardavam o momento do sacrifício. Ele e Benry tiveram de lutar contra um guerreiro mura, capturado há mais tempo e considerado o maioral da fossa, tanto por respeito à sua tribo quanto por sua força. Os primos venceram o inimigo e imediatamente assumiram o comando do local, habitado por índios de tribos menores e de territórios distantes, que sempre foram caçados pelas guerreiras em suas incursões de captura aos sacrifícios ritualísticos.
         Muitos dias se passaram no interior do buraco e eles eram sendo alimentados apenas com frutas jogadas pelas guerreiras, como se fossem animais de cria, esperando o dia da morte. E este dia chegou quando elas lançaram uma corda dentro da vala e mandaram que eles saíssem, um por um, até o alto do terreno, onde eram amarrados pelas mãos e pescoços. Foram levados ao centro da taba, enfileirados e açoitados, recebendo humilhantes castigos e desaforos e olhados com o desprezo natural de mulheres que não aceitavam submissão aos homens.
         Yepá contou que estavam todos de pé, recebendo cusparadas no rosto quando apareceu a chefe das amazonas: Mauara. Ela estava vestida com cocar de penas vistosas e uma tanga de couro de onça encobria seu sexo, mas as coxas vigorosas e as pernas esculpidas em músculos embelezavam o conjunto de quadris firmes. O dorso também era adornado de forças, formando braços de guerreiras capazes de empunhar a borduna com vigor igual aos dos mais valentes. Ela se aproximou dos prisioneiros e seus passos deslizavam na terra, como se planasse acima do solo.
         - Mauara trazia um colar de pedras brilhantes trançado no tornozelo, comentou Yepá aos outros índios, todos atentos a cada palavra saída de sua boca.
         Ele disse que essas pedras causavam um som estranho a cada passo da líder das mulheres, anunciando sua chegada, imediatamente reverenciada pelas outras guerreiras. Quando ela se aproximou dos prisioneiros as índias a cercaram, como se a protegessem dos olhos apavorados dos homens, que mesmo em seu instante de morte ficavam fascinados com a beleza feroz de cacique.
         Mauara passou por toda a fila de prisioneiros, observando-os com a curiosidade de quem vê pela primeira vez um exemplar do sexo oposto. Ela os olhava fixo e somente Yepá a encarou, e pode ver no brilho intenso que fluía do olhar da guerreira o mesmo medo que transbordava de seu coração de condenado à morte. A líder, por um momento, não pode disfarçar o transtorno de estar frente-a-frente com Yepá e deu um passo atrás, recuando diante do guerreiro caboquena que a desafiara nos olhos.
         - Neste momento eu me salvei, disse o bravo.
         Yepá explicou que Mauara percorreu o restante da fila, até o último dos condenados, depois retornou até ele e então o mandou pôr os braços a frente, neste instante, sacou uma lâmina atada em sua cintura e com ela cortou em um único golpe as cordas que prendiam suas mãos. Ela o segurou pela corda amarrada no pescoço e o arrastou até dentro de uma cabana, deixando para trás os outros índios e Benry, cada qual com a sua sentença.
         Yepá foi levado a uma cabana cujo chão era todo forrado com peles de onças de variadas cores e uma decoração primorosa, parecendo a ele ser um capricho feminino sutil. As paredes estavam adornadas com pedras coloridas, todas polidas para realçar o brilho, e inúmeros cocares feitos de penas de aves raras enfeitavam os cantos. No centro da oca, uma única rede feita de fibras muito suaves ficava atada aos mourões. Ali chegava a luz vinda da clarabóia posicionada no meio do teto, por onde os ventos passavam e derramavam novos ares no interior da cabana.
         O guerreiro caboquena foi deixado dentro da oca sem amarras ou grilhões. Nada impedia-lhe a fuga, mas sua intuição lhe dizia para ficar e aguardar seu destino, ainda mais quando gritos de desespero vieram da direção da taba e entraram com fúria na cabana. Entre os muitos grunhidos ele pode perceber o de Benry, apregoando às mulheres os piores insultos permitidos por seu idioma.
         Yepá passou muito tempo no interior da oca, protegido dos suplícios infligidos os outros prisioneiros, até o último lamento cheger até ele, mas em palavras desconhecidas, embora a forma como foram caladas não deixava dúvida de tratar-se da morte, porque falava a mesma linguagem do desespero. O caboquena ouviu nitidamente o som das carnes sendo retalhadas, acompanhado de rumores de festa, cujo ritmo das danças chegava até ele pela trepidação do solo. Ele deitou na rede e esperou sua sorte, até adormecer pensando no primo Benry, despedaçado e servido em banquete de guerreiras inimigas.
         O sono de Yepá não durou muito. Logo foi acordado por algumas guerreiras lhe servindo uma cuia com guisado, mas o caboquena reconheceu tratar-se de carne de bicho. Quando pôs na boca a comida oferecida pelas mulheres sentiu o sabor suave de capivara, então sorveu o caldo com gana, na certeza de não estar comendo o companheiro de caçadas. O guerreiro sentiu o vigor das forças retornarem ao seu corpo, trazido pela ingestão do caldo, de sabor inebriante devido aos temperos agora provados por Yepá.
         O cheiro forte da comida nunca tinha sido apresentado ao caboquena e ele aproveitou cada momento do guisado pensando estar diante de seus últimos dias, mas em seu espírito uma ponta de esperança iluminava o desejo de sair vivo dessa experiência. A tenra carne da capivara dissolvia em sua boca, triturada pelas dentadas meditativas do caboquena, comendo com intenção de não acabar nunca. Mas quando a comida chegou ao fim foram-lhe oferecidas frutas, licores de bacaba e suco de araçá e ele, deslumbrado pela mudança no tratamento, desta vez comeu e bebeu com mais serenidade.
         Quando se encontrou farto, Yepá olhou em sua volta e viu a chefe das índias guerreiras chegando ao interior da cabana. Mauara era ainda muito jovem e tinha assumido a liderança há pouco tempo, herdada de sua mãe. Ia passar por seu primeiro ritual de acasalamento e então geraria a menina guerreira que seria a nova chefe da tribo, como era tradição na nação das mulheres. Ela se aproximou do guerreiro, enquanto as outras deixaram a oca, levando consigo os restos da refeição de Yepá, até a última se retirar e a porta da oca ser trancada. Em seguida, os tambores ressoaram lá fora e os ritmos das danças se prolongaram até quando a luz retornou à clarabóia da cabana. Neste momento, Mauara e o caboquena já haviam se amado o suficiente para garantir até mais de uma geração de índias guerreiras.
          Yepá ficou preso na cabana tempo suficiente de engravidar Mauara e quando isto aconteceu o casal pode voltar a ver a luz do sol no céu imenso. Durante todo o tempo do acasalamento os dois foram iluminados apenas pela claridade vinda do buraco aberto no meio do teto. O caboquena então podia passear pela aldeia, comia com as guerreiras e procriava com elas, sempre vigiado para não tentar fugir da taba, mesmo porque deveria engravidar quantas mulheres estivessem em condições de conceber.
         Foram dias alegres na vida do caboquena, bem alimentado e bajulado por tantas índias que pouco tempo tinha de pensar em como voltar a sua aldeia, embora nunca houvesse sentido tanto prazer em estar vivo, mas desconfiava que quando estivesse emprenhado a última guerreira, sua vida não teria mais valor algum a elas, e deixava o tempo correr, na fartura do sexo e da comida servida na rede.
         Ele de vez em quando recebia a visita de Mauara e percebia seu ventre se avolumando com o passar da gravidez e a ela dedicava os maiores carinhos, as atenções no detalhe do amor e os suspiros prolongados de seu gozo. Seu sentimento o fazia sonhar com a possibilidade de poder viver ali para sempre, em seu reino de único macho, usufruindo todas as guerreiras e do amor da maior delas, a chefe. Mas seus dias caminhavam ao fim. As mulheres estavam ficando enjoadas pelos apuros da gravidez e voltavam seus rancores contra Yepá, deixando-o sem se alimentar com boas carnes e reduzindo seus amores apenas com Mauara.
         Um dia, a chefe das índias implorou entre lágrimas que ele abandonasse a aldeia, fugisse até o outro lado do grande rio Amarelo, onde encontraria a salvação. O caboquena buscou uma canoa na tentativa da empreita, mas não achou nenhuma e arriscou a fuga pela mata, se embrenhando na floresta por dias inteiros, correndo de uma perseguição implacável das guerreiras. Com muito esforço atravessou igarapés e venceu barrancos, sobreviveu comendo folhas e se escondendo em altos das árvores, onde se amarrava com cipós para não cair quando o sono o dominasse. Mas sempre sentia seus passos seguidos de perto, até cruzar a nado um rio extenso, de águas claras, com a certeza de estar bem afastado do grande rio Amarelo, e então pode descansar. Finalmente se sentiu a salvo do destino ao qual eram condenados todos os homens que tivessem contato com as mulheres guerreiras.
         Mas tampouco seus dias se tornaram melhores, andando sem destino em terra estranha e sem saber se caminhava em direção a perigos maiores aos já enfrentados. Por isso seus passos eram cautelosos, vagando com a sutileza das onças e o espanto das pacas, olhando cada árvore à frente como se atrás dela se escondesse um inimigo e perscrutando as infinitas possibilidades antes de seguir adiante. Yepá esgueirava-se por trilhas onde qualquer pessoa menos cautelosa andaria sem temores e quase sumia tendo se passar por lugares mais suspeitos.
         Esta vida de perigos constantes transformou seu semblante e os músculos, antes torneados, deram lugar a braços esquálidos; seus cabelos penteados com afinco, no tempo da bonança na aldeia de Mauara, agora eram emaranhados de carrapicho, trançados como corda, e seu rosto trazia marcas profundas feitas por cipós titicas ao segurarem seus passos durante a fuga. O caboquena sobreviveu às dificuldades impostas por seu destino quando caminhava na selva, melhorando a alimentação depois de descobrir novas frutas e raízes, foi se familiarizando com o terreno, descobrindo seus segredos, até conseguir ter boas lembranças do tempo de solidão na terra dos mundurucus.
         Yepá os encontrou pela primeira vez quando estava na beira do rio Mawé, na fronteira do território desses índios com o dos saterê. Eles pescavam na beira e passaram com suas canoas bem próximo de onde se escondia o caboquena, falando uma língua diferente, mas algo em sua sonoridade lembrava o idioma do fugitivo. Ele evitou a aproximação, mas vigiou por muitos dias as atividades dos munducurus, protegido pela cumplicidade da floresta. Observou o método de pesca dos estranhos e os viu tirarem os peixes da água com a ajuda de flechas, alcançando-os de surpresa enquanto nadavam. O caboquena desconhecia esta técnica e se impressionou com a agilidade e a pontaria deles.
         - Em uma batalha atingem tranqüilamente o adversário à longa distância, comentou Yepá para si próprio, e esta certeza o fez se esconder ainda mais na floresta, ficando longe da vista dos inimigos e da possibilidade de ser descoberto.
         Mas a curiosidade do caboquena o arrastava para perto dos desconhecidos, chegando à ousadia de visitar seu acampamento quando estavam ausentes e o que encontrou entre os pertences dos munducurus o deixou ainda mais assustado; eram lanças com afiadas pontas, capazes de penetrar fundo no couro de uma anta e derrubá-la com apenas um golpe, e lâminas de corte amoladas o suficiente para desfazer de sua pele uma paca, com a rapidez e eficiência. Eram armas poderosas, de caçadores ou guerreiros, e num primeiro impulso Yepá pensou em furtá-las, mas sua intuição precavida mostrou-lhe que este ato denunciaria sua presença, então deixou tudo intacto, na esperança de que o valor de seu comportamento facilitasse a amizade com os desconhecidos.
         O caboquena estava cada vez mais próximo dos munducurus e estes já o haviam percebido, mas evitavam caçá-lo por não se importarem com a presença de um inimigo solitário, que demonstrava estar mais precisando de ajuda que propriamente ser uma ameaça. E um gesto fez Yepá arrefecer sua desconfiança e tentar uma aproximação: uma cuia com peixe e bolo de mandioca no trapiche, numa demonstração tão clara de terem deixado para ele, uma oferenda. O caboquena apanhou a cuia e devorou o peixe como há muito não o fazia, depois deixou tudo em seu lugar, procurando apagar sua presença ali.
         Depois de repetirem várias vezes este gesto, Yepá compreendeu que os desconhecidos o aceitariam e assim apareceu. Os munducurus retornavam da pescaria e encontraram o caboquena no meio do caminho, estava em frangalhos, mas a altivez de sua presença causou um sentimento imediato de amizade e foi assim que deixaram Yepá fazer parte de seu grupo, ofereceram-lhe comida e remédios para curar as feridas e espantar os carapanãs que tanto o atormentavam nos momentos de fuga.
         Em poucos dias o caboquena estava recuperado e participava da pescaria com os novos amigos, mostrando interesse redobrado, procurando gravar em sua cabeça as palavras aprendidas e repetindo os mesmos gestos dos munducurus até se parecer um igual. Ao caboquena foi uma questão de sobrevivência ser aceito no grupo de índios e mais sorte teve quando foi levado à aldeia deles e lá passou um ciclo de água, aprendendo seu idioma e sua cultura, aumentando seu conhecimento com os modos de caça e de pesca dos agora parentes distantes.
         Yepá contava suas aventuras com os olhos brilhando de contentamento e arrastava a atenção de todos de sua tribo, que escutavam sem desprender a atenção dos fatos, até descobrirem um detalhe diferente da última vez que ouviram a história, mas o aventureiro não deixava falhas em sua narrativa, pois lembrava de tudo e contava como se estivesse marcada em sua memória cada palavra de sua vida. Passavam tempo escutando as aventuras de Yepá e a verossimilhança de sua fala era um atestado de verídico ao que contava.
         Monawa encheu uma cuia de caxiri e ofereceu primeiro ao irmão e depois aos outros guerreiros. As aventuras de Yepá eram motivos de orgulho a sua família e, já inebriado pelo caldo fermentado, pediu a palavra e saudou os feitos do parente.
         - Este é meu irmão, o aventureiro dos caboquenas, disse sem muita eloqüência, antes de abraçar Yepá e quase cair em seu colo.
         Yepá gostava dos afagos e do respeito com que sua gente ouvia a narrativa e deixava aumentar o orgulho, envaidecendo-se pelo fato de ter percorrido tantas terras enquanto seus parentes mal haviam deixado as margens do rio Orowo e percorrido pequenas distâncias além do grande rio Amarelo.
         Outro índio quis desmerecer as aventuras de Yepá e o contestou em desafio, afirmando ser tudo mentira e que ele deveria ter passado todo esse tempo em casa de parentes em outra aldeia.
         - Eu soube que tu estavas com os bararurus, lá pelas bandas do rio Itapani, declarou Zo’é, um índio conhecido por sua valentia nas guerras e disposição ao conflito quando o caxiri o convencia de que bravata amolecia a coragem dos outros bravos.
         - Quem te falou isso zombou da tua credulidade, rebateu Yepá, já pronto a iniciar uma discussão com o desafiante.
         Monawa se pôs entre os dois e evitou a luta de ambos, mas o clima ameno foi desfeito pela tentativa de imputar dúvidas ao que Yepá dizia, e ser mentiroso na aldeia era uma condição que desqualificava o homem perante toda a sociedade. Yepá não poderia deixar sua palavra perder valor diante de sua gente, então retrucou para todos ouvirem.
         - Se quiserem saber se falo a verdade, então convido todos a me seguirem até a terra da Mundurucânia, onde os apresentarei aos meus amigos, os guerreiros mais corajosos e de armas mais poderosas que já conheci, desafiou Yepá, olhando aos guerreiros e procurando adivinhar se a coragem deles fosse capaz de levá-los para além das terras onde se escondiam dos muras e das outras tribos mais aguerridas.
         O chefe dos caboquenas escutou o desafio de Yepá e logo determinou uma comitiva que iria acompanhar o aventureiro até estas terras para conversar sobre uma possível aliança. Meyki viu nesta política uma condição de escapar ao domínio dos guanavenas nas alianças feitas anteriormente e, se trouxessem os munducurus para o seu lado, poderia estabelecer uma nova relação com Taobara, que sempre impunha sua vontade por ter a maioria dos guerreiros. Meyki ainda não tivera oportunidade de guiar seus guerreiros em grandes lutas, estava no comando há pouco tempo e ávido por participar de guerras e conquistar de vez o respeito de sua gente. Mas havia a liderança política de Taobora sobre as tribos aliadas e o cacique caboquena estava pensando em reorganizar essas forças.
         A partida da comitiva passou a ser tratada em segredo entre os caboquenas, por isso Meyki chamou Monawa e mandou ele evitar falar sobre esse assunto com a esposa, Tawacã, para ela não levar essa informação à sua gente quando fosse visitar sua família e apresentar aos guanavenas a pequena Waiãpi.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Capítulo 12 - Tocaia dos Mortos


         TAWACÃ PASSAVA A MÃO SOBRE O VENTRE ENORME ENQUANTO FAZIA PEQUENAS CANOAS com troncos de inajá e as largava no rio Orowo, na esperança da correnteza e os ventos levarem notícias suas até a ilha Saracá. Estava vivendo com os caboquenas há quase um ciclo de água e a felicidade dos primeiros dias havia dado lugar a uma tristeza sorumbática, forçando ela a passar grandes momentos olhando o rio correr na direção do Canaçari, onde vivia sua gente. Há pouco tempo abandonara o trabalho na roça, porque sua barriga crescera tanto que a impedia de fazer qualquer tipo de esforço e suas pernas já não conseguiam mais sustê-la em pé. Durante o período de espera do nascimento do primeiro filho, seu temperamento mudou bastante. A jovem guanavena que chegou na tribo do marido repleta de sorriso e satisfação agora estava enredada dentro de uma solidão que nem os mimos de Monawa eram capazes de libertá-la.
         Seus pensamentos farfalhavam ao som das folhas nas copas das árvores, indo ao tempo de infância quando via seu pai massageando a barriga das grávidas para terem bom parto. Essas saudades chegavam com mais afinco quando sentia os pontapés da criança guardada em seu ventre ansiosa de vir à luz. Então ela mesma passava as mãos sobre a protuberância da pele, buscando os pontos sensíveis e encontrava alívio passageiro, perturbado apenas por outro chute e novas dores, agudas como lanças, que a traziam de volta ao mundo.
         Tawacã pensou muitas vezes em pedir para Monawa levá-la até a ilha Saracá, pois gostaria de parir na segurança dos cuidados do pajé guanavena, mas reconhecia ser esta idéia um desrespeito à hospitalidade da gente de seu marido, por isso esperava ansiosa pelas primeiras dores do parto. A futura mãe queria se livrar logo do peso em sua barriga e enfrentar rápido os perigos iminentes de dar a luz sozinha, no meio do mato. A mãe de Monawa ensinara a preparar o forro no chão com folhas de palmeiras para repousar a criança quando ela nascesse. Mostrou a Tawacã como proceder no momento de cortar o cordão umbilical e como se desfazer da placenta. A jovem índia se sentia preparada a enfrentar sua primeira missão de mãe, mas quando mais este dia se aproximava, mais se sentia insegura. Ela sabia que sua vida e de sua criança dependeria de sua força para enfrentar a dor e da lucidez com que teria de cumprir estas tarefas, mesmo depois de ter passado pela experiência alucinante de pôr no mundo um ser vivo.
         Voltou a lançar ao rio um olhar cumprido, até seus pensamentos ruidosos se confundirem com o rumor festivo vindo do centro da aldeia dos caboquenas a despertar Tawacã de seu torpor. Ela viu as crianças correndo em sua direção, todas anunciando algo e em tantas vozes sobrepostas que se tornavam inteligíveis. A maior delas chegou primeiro à sombra onde a guanavena repousava e disse assustada algo como se um espírito tivesse retornado do mundo dos mortos e agora estava em pé, no centro da taba, contando histórias fantásticas aos índios tão assustados e fascinados como somente aqueles, a quem a realidade vira um sonho, podem ficar.
         A jovem índia se levantou com dificuldade. A barriga imensa a impedia de realizar movimentos bruscos, mas uma vez em pé reuniu a pouca força que seu corpo arredondado poderia oferecer e correu pela praia, acompanhada de todas as crianças, e quase sem fôlego entrou na taba e, de imediato, distinguiu na multidão um guerreiro nunca visto nem imaginado. Era tão diferente de todos que bem poderia se passar por um enviado de Paharamim, tal era sua formosura, radiante como o sol a ponto de emanar uma luz ofuscante, mas ao mesmo tempo tão suave que atraía os olhares de todos: era Yepá, o irmão de Monawa que há dez ciclos de águas havia saído para caçar e nunca mais retornara.
         Enquanto os guerreiros queriam tocar no corpo do recém-chegado, as mulheres choravam de emoção ao ver que o pranto derramado em tempos passados serviu para resguardar Yepá dos perigos enfrentados em terras distantes. Ele tentava caminhar entre a multidão, mas eram tantos braços a turvar-lhe o caminho que, embora mais alto e mais forte, não conseguia se desvencilhar dos curiosos querendo ter certeza de se tratar de uma pessoa e não de um fantasma. Entre tantos abraços, o desaparecido se deixou envolver mais forte pelo de seu irmão e Monawa ainda teve de vencer a barreira formada por homens, mulheres e crianças para Yepá poder ser visto e tocado pelos dedos vacilantes de sua velha mãe, que recebia o filho desgarrado com as mesmas dores de quando o pôs no mundo.
         Quando a multidão enfim cedeu à curiosidade despertada pela volta de Yepá, Monawa pode levar até ele sua esposa a quem apresentou como se fosse um amuleto trazido das terras dos guanavenas.
         - Ela é filha do pajé Nahpy, disse Monawa, orgulhoso de sua jovem esposa prestes a lhe dar o primeiro filho.
         Yepá olhou Tawacã e o sorriso dele atravessou-a como uma lança. Mas outra sensação não sentiu a jovem porque novamente outras pessoas se puseram a querer ver o guerreiro e ouvir suas histórias, afastando Yepá de seus familiares. A multidão o arrastou para fora da oca e muitas mãos quiseram tocá-lo, supondo nesse momento algo de mágico no espírito do caboquena, que viajou por tantos rios, conheceu outras gentes e viveu com tribos desconhecidas. Os curiosos não queriam perder nenhuma palavra dita por Yepá e o atropelavam com perguntas sobre como eram as mulheres guerreiras, o que comiam e quais eram suas armas de guerra.
         Tawacã encontrou no sossego da oca sua rede e deitou com intenção de descansar até o dia do parto. Ficou ouvindo o burburinho vindo do pátio, com centenas de vozes questionando e somente uma se sobressaindo com respostas, explicando mais de uma vez como fora aprisionado pelas índias guerreiras, como teve de se submeter às vontades de sua maioral e ao restante da tribo e o que fez para escapar de um destino cruel, ao qual era submetido todo aquele capturado pelas mulheres hostis aos homens.
         Foi assim a noite toda e as fogueiras tiveram de ser reanimadas com lenha extra para prolongarem as conversas, até Tawacã ceder ao sono e adormecer com a voz do cunhado embalando seus sonhos. A jovem guanavena encontrou a melhor posição de descansar o ventre exuberante e sonhou com as aventuras de Yepá em terras distantes e, em seguida, se viu andando nas praias de sua ilha natal, amparada na caminhada pelas mãos do pajé Nahpy e de sua mãe Xirminja, e foi então que seu pai revelou à filha o segredo iminente de seu parto.
         - Tu darás a luz uma menina, vaticinou o pajé no sonho de Tawacã.
         A guanavena acordou assustada, sentindo a presença da família ao seu redor, mas encontrou-se sozinha na oca. Toda a tribo de seu marido estava escutando as aventuras do recém-chegado. Ela passou a mão sobre a barriga e sentiu dentro dela uma pequena forma de mulher e pensou que, embora Monawa desejasse um primogênito, este teria de aguardar mais um pouco até realizar o sonho de oferecer um guerreiro a sua tribo.
         Na manhã seguinte, a aldeia acordou em estado de letargia com as gentes dormindo quando deveriam estar pescando ou cuidando do roçado. As crianças deixaram de fazer suas tarefas matinais e as mulheres sequer tinham iniciado o preparo da primeira refeição, mas os homens não reclamaram dessa desatenção porque também estavam sorumbáticos, depois de passarem a madrugada inteira ouvindo as narrativas de Yepá sobre suas aventuras.
         Quando o sol se levantou no horizonte, Tawacã reuniu forças e saiu da rede, se dirigindo à praia para tomar o primeiro banho. No caminho, encontrou Yepá em volta da fogueira. A guanevena ficou surpresa com a vitalidade do guerreiro, mesmo depois de passar a noite em claro, falando sem parar e respondendo a todas as perguntas, enquanto o resto da tribo dormitava ainda sob o sol alto. Ele assava um peixe, tendo ao lado uma cuia com farinha de mandioca e seus apetrechos de caça. Quando Tawacã se aproximou, o guerreiro ergueu os olhos e repetiu o mesmo sorriso que encantara a jovem no momento de sua chegada.
         - Vou caçar, disse Yepá à cunhada, quero trazer um mutum e preparar um guisado para comeres depois do parto.
         Tawacã sorriu agradecida a boa vontade do cunhado, mas embora tentasse falar para ele não se preocupar, as palavras saídas de sua boca não correspondiam ao seu pensamento e ela quis saber como ele faria para encontrar o animal que buscava. O guerreiro disse conhecer os segredos de uma boa caçada. Vivera nas matas um bom tempo, quando buscava o caminho de volta a casa. Explicou ainda que teve de viver com outras tribos, com as quais aprendeu a imitar o canto de mutum e capturá-lo sem esforço. Yepá contou também como aprendeu a fazer tocaia e surpreender as maiores feras da floresta e como usar a pintura corporal para se dissimular nas matas e ficar invisível aos olhos dos predadores.
         As palavras de Yepá eram como feitiços, difíceis de serem desacreditadas. Então ele apanhou uma pedra de carvão na fogueira e amassou entre os dedos, até reduzir tudo a cinzas e passou no rosto, tornando negra sua pele. Ergueu os olhos e disparou um sorriso para Tawacã que ficou encantada com a alvura dos dentes do guerreiro, destacados ainda mais sobre o negro de seu rosto. Ele se levantou da posição de cócoras e se pôs de pé, com os músculos à mostra e aparentando uma disposição suficiente para conquistar o mundo.
         A guanavena percebeu ali um homem diferente. Todos os outros estavam dormindo depois de passar a madrugada escutando as histórias dele e ele, que passara o tempo todo respondendo às perguntas, estava acordado e disposto a sair e caçar, com os olhos atentos e o espírito pronto para embarcar em novas aventuras. A jovem índia não pode conter as palavras e, embora soubesse das muitas perguntas feitas ao cunhado, não pode controlar a vontade de fazer mais uma.
         - Qual o teu segredo para te manteres tão disposto, mesmo depois de passar a madrugada em claro? questionou Tawacã.
         - Meu segredo é isto, e se chama guaraná, revelou o guerreiro, tirando do alforje a tiracolo uns caroços redondos, duros como pedra, e entregou na mão da índia, que os recebeu assustada como se fossem a revelação de algo mágico.
         Tawacã segurou as sementes como se tivesse nas mãos um tesouro. Primeiro analisou o peso e constatou serem leves, depois verificou estarem envoltas em finas cascas, como embrulhadas para guardar sua energia, levou-as próximo ao nariz e não distinguiu cheiro nenhum e, sem vacilar um momento, pôs na boca quando Yepá pediu que as comesse. A filha do pajé pode enfim sentir o amargor das sementes depois de triturá-las com os dentes, mastigando até transformar tudo em uma pasta dentro da boca, mas não conseguiu engolir com facilidade, o que levou Yepá a oferecer uma cuia com água para ajudar na degustação. Ela bebeu a mistura e sentiu seu corpo invadido por uma força surpreendente, lhe despertando os sentidos e revigorando as pernas.
         - São enfeitiçadas? quis saber a jovem índia.
         - Não. São sementes de uma árvore que nasce nas terras de índios amigos, na Mundurucânia. Eles as usam para curar doenças e deixarem alertas aos panemas, explicou o guerreiro, ensinando a cunhada a comer uma semente a cada dia, para ter um parto tranqüilo e recobrar as forças rapidamente depois de dar a luz. Ele ofereceu um punhado do caroço a Tawacã, que o recebeu e depositou na cuia com a qual bebera a mistura. Ela se sentiu melhor e foi caminhando pela beira do rio, disposta a tomar um grande banho, com os pensamentos repletos de vitalidade e o corpo arejado por uma brisa nova de energia.
         A índia entrou no rio, mas foi como se somente seu corpo alcançasse as águas. Seu espírito mesmo divagou pelas altas das árvores levando o pensamento a acompanhar a leve brisa soprando nas copas. Era uma sensação estranha devido aos fatos dos últimos dias terem sido de extremo cansaço, mas agora ela sentia suas energias de volta e eram tantas que lhe deu vontade de sair nadando. Ela submergiu no rio, com a barriga atrapalhando a aerodinâmica do corpo, conseguiu realizar um bom mergulho, alcançando boa distância da margem. Então respirou profundamente, até o ar dos pulmões fazerem-na flutuar e ficou boiando sem sentir o peso do ventre, deixando-se levar pela correnteza rumo à sua ilha amada.
         Logo a índia ganhou distância da praia e Yepá se viu obrigado a resgatá-la do perigo iminente, assim montou em sua canoa e foi buscar a cunhada do meio das correntes traiçoeiras do rio Orowo, mas ela não conseguiu embarcar e pediu apenas para ser rebocada até a praia, agarrada na popa. O guerreiro remou de volta à praia, mas as mãos de Tawacã seguras no costado da canoa desviavam o olhar de Yepá e este não fez um percurso em linha reta, demorando nas remadas e vencendo a correnteza com menos destreza do que quando enfrentara condições piores de navegabilidade.
         Ele enfim a deixou na segurança da praia e outra a vez a alertou para comer uma semente de guaraná por dia e, sem desembarcar de novo, rumou ao meio do rio, cavalgando nas ondas com perícia de grande remador. Realizou uma manobra brusca e deu um giro de popa a proa, posicionando-se para descer o rio e utilizando agora o vento como aliado. Yepá só precisou de algumas remadas e alcançou as árvores do igapó, se virou em direção à praia e viu a cunhada próxima do rio, observando-o remar em busca da caça, sendo por impulso que ergueu o braço, espalmando a mão num gesto indecifrável.
         A índia lhe respondeu com o mesmo gesto, até o guerreiro desaparecer entre as árvores do igapó. Depois voltou bem próximo da fogueira, jogando mais lenha na frágua para reacender-lhe o fogo. Precisava tanto de calor quanto de dar início às tarefas diárias. Tawacã colocou os peixes na grelha para serem assados, depois amassou a pasta de mandioca e fez os bolos, que também iriam ao fogo, e quando estava quase pronta a comida os primeiros índios foram deixando a taba, atraídos pelo cheiro do alimento, chegando perto da fogueira. Comeram com fartura, como sempre fora na terra dos caboquenas. Então um deles se lembrou de outro parente que faltava.
         - Onde está nosso irmão Yepá? lembrou um deles.
         - Já saiu para caçar, respondeu Tawacã.
         - Ele é maluco, comentou Monawa, que de tão afastado do irmão não se lembrou de que o mesmo deveria estar com eles para a primeira refeição do dia.
         Monawa ficou desapontado pelo fato de Yepá sair para caçar sozinho, pois aos caboquena a caçada era uma atividade coletiva, feita com irmãos e amigos, com a força de todos ajudando a matar grandes presas. Mas ao mesmo tempo, ele justificou a atitude do irmão, explicando que o guerreiro passará tanto tempo longe de sua gente que não poderia ser considerado como um igual.
         - Meu irmão está esquecido de nossos costumes, falou aos outros caboquenas que também queriam estar junto de Yepá nesta primeira caçada.
         Os guerreiros então combinaram de fazer uma caçada entre eles, para comemorar a volta do parente desaparecido, prometendo trazer mais presas do que Yepá e realizar uma grande festa, com a qual dariam as boas vindas ao desgarrado, que já no segundo dia de sua estadia na tribo cometera a desfeita de caçar sozinho, sem convidar ninguém, como se fosse capaz de dispensar a ajuda do irmão e dos parentes.
         Monawa sentiu alguns índios aborrecidos com seu irmão e prometeu falar com ele quando chegasse da caçada, mas novamente amenizou seu ato como sendo natural de alguém acostumado a viver sozinho, sem contato com parentes e tendo de sobreviver por suas próprias habilidades. Pelas histórias que contara na véspera, os índios passaram a ver Yepá mais como um espírito do que uma pessoa de carne e osso. Foram tantas as aventuras, tantos os perigos vencidos, tantas honras conquistadas e tantos amigos feitos que seus atos facilmente alcançaram a natureza mística, como a dos heróis do universo caboquena.
         Os guerreiros foram caçar quando o sol já estava no centro do céu, seguindo rio acima, em busca das capivaras que nesta época invadiam as ocas de parentes em busca de algo de roer, tantos eram os bandos vagando na floresta. Também pretendiam caçar anta, cuja carne era apreciada pelos caboquenas e com a qual destinguiam os bons convidados, oferecendo aos afortunados um acepipe de valor, mostra da boa receptividade e da destreza do anfitrião.
         Tawacã ficou a ver os guerreiros se distanciando da aldeia, com a mesma contemplação duvidosa de quando viu Yepá partir em sua caçada solitária pela manhã. Todos prometeram a ela boas carnes para se recuperar do parto, mas precisariam retornar com urgência porque nesta mesma noite ela conheceu suas primeiras dores. A futura mãe as sentiu como cólicas vindas de suas profundezas em ruidosas ondas sísmicas, como se uma enxurrada estivesse contraindo seu útero com o objetivo de expulsar de dentro dele o ser gerado por todo esse tempo de gravidez.
         A primeira reação da jovem índia foi buscar as sementes oferecidas por Yepá, mas o ato de levantar da rede era demais ao seu corpo alquebrado pelo sobrepeso dos últimos dias. Então, ela só encontrou forças de virar a posição, buscando uma mais confortável. Esta medida não aliviou seus tormentos e uma nova saraivada de contrações a atingiu no mesmo instante em que retorcia as costas, elevando o ventre para cima, em busca de alívio, mas com o olhar fixo no teto da cabana.
         As contrações se tornaram mais freqüentes e a cada momento viam com intensidade redobrada, arrancando da índia o primeiro esgar de sofrimento, pois sua boca se contraiu e ela só teve forças de lançar um gemido silencioso. Seus olhos também se cerravam no intuito de ignorar com a cegueira momentânea a lancinante dor provocada pela dilatação de seus ossos. Ela percebeu que o momento do parto chegara e nada era possível fazer para adiar o encontro da guanavena com seu destino.
         Tawacã reuniu todas as suas vontades e se pôs de pé, agarrando-se ao punho da rede para a vertigem não derrubá-la através dos rodopios da tonteira. Ela saiu tateando na escuridão da oca, tropeçando entre as redes, até chegar onde dormia a mãe de Monawa, e esta não se surpreendeu ao ver a nora entrando em trabalho de parto, por isso guiou-a até a saída da cabana. A jovem índia pariu nas margens do rio Orowo, como nasciam os caboquenas deste tempos  imemoriais.
         O contato com a brisa fresca da madrugada trouxe novas forças à Tawacã e ela inspirou como se estivesse sedenta de ar, tentando vencer a sufocação de suas dores que estavam roubando um pouco de sua vida. A guanavena colocou na boca uma semente de guaraná, das oferecidas por Yepá, e saiu em passos apressados até a beira do rio, aonde vinha preparando o local do parto. Ela mordia as sementes com força, tentando compensar com a fúria das dentadas as contrações do útero, cada vez mais impossíveis de suportar devido à intensidade como se manifestavam.
         A jovem caminhou até a acapuraneira escolhida como local do parto e onde havia acumulado palmas e folhas, fazendo a cama na qual daria ao mundo seu filho. A futura mãe terminou de limpar um espaço entre duas raízes da árvore e começou a tecer ali o berço onde receberia seu primogênito, no acolhedor colchão feito de folhas, sobre o qual Tawacã se pôs de cócoras, esperando alívio no parto, contraindo o rosto ao sabor dos espasmos e olhando as estrelas acima de sua ilha amada, na direção da foz do rio Orowo.
         As estrelas ganhavam formas diferentes no céu conforme as dores se intensificavam no útero e ela, prostrada de cócoras sobre as raízes, aguardava o momento de se tornar mãe. Nos últimos tempos vinha se preparando para a ocasião com afinco de quem espera deixar uma grande geração às tribos de seu pai e de seu marido. Os espasmos foram acelerando o ritmo, dando-lhe a certeza de em breve uma criatura ser expulsa de seu ventre, repetindo assim o gesto eterno de toda a natureza.
         Tawacã continuava a fitar as estrelas, buscando nelas força de superar a atrocidade imposta por sua condição de fêmea, geradora de vida e de homens. De repente seus olhos se cerraram com tanta força que a escuridão da noite se transformou nas trevas tenebrosas do desmaio, mas seu corpo se manteve teso, dobrado sobre as pernas e equilibrado em cima das raízes. Então foi quando sentiu os primeiros fluidos sendo expelidos por seu corpo e a dor se tornou tão intensa que a índia arrancou um galho de uma árvore próxima e o pôs na boca, mordendo com ferocidade a densa madeira até seus dentes cravarem-se no lenho.
         Foi um parto sem gemido. A cabeça da criança surgiu abrupta das entranhas dela e com apenas uma contração ela a depositou inteira no chão, sobre o berço de folha entre as raízes da acapuraneira, banhada por sangue e com a placenta ainda a lhe fornecer o ar da vida. A mãe se deixou embalar pelo torpor do alívio e seu corpo adormeceu por um rápido momento, levando seu espírito a uma viagem até a ilha Saracá, para anunciar ao pajé Nahpy que tudo transcorrera normalmente e sua filha havia cumprido o destino da maternidade, com a vida por inteiro e a sensação de ter-se igualado às mulheres mais respeitadas das tribos: era mãe.
         Mas a índia foi despertada de seu sonho pelo som sufocado vindo da criatura deitada no chão, um gemido abafado que somente ouvidos de mães eram capazes de detectá-lo. Os ganidos de sua criança fizeram Tawacã recuperar a consciência totalmente e buscar embaixo de si o corpo ensangüentado do filho, segurando-o com os carinhos de suas mãos banhadas pelo suor das dores. A jovem levou até seu colo a criança e a examinou com a atenção proporcionada pelas luzes das estrelas. Primeiro apalpou todos os ossos e os sentiu fortes, repuxou a pele e ela se mostrou firme, passou a mão sobre o ventre da criança e seu tato certificou a delicadeza daquela barriga que só poderia de alimentar de leite e segurou entre os dedos a tibieza do cordão umbilical, levando-o até boca, e cortou com uma única mordida a linha ligando seu filho ao resto de seu corpo.
         A criança só conseguiu saltar o forte choro quando mergulhada nas águas do rio Orowo e os sons de sua boca a anunciaram à aldeia dos caboquenas. As índias foram as primeiras a acorrer até a praia e saudar a criança que traria orgulho à família de Monawa. E quando chegaram no local onde se banhava Tawacã, encontraram-na abraçada à criança e demonstrando tanto carinho que outras mães se emocionaram ao ver a jovem acalentando o filho, enquanto este soltava os pulmões num choro que aos poucos foi atraindo o restante da tribo.
         As velhas também entraram na água para ajudar a jovem mãe terminar seu banho e preparar a criança em sua primeira mamada e não foi difícil fazer a pequena boca alcançar as tetas da índia, entumecidas pela avidez de amamentar e já lançando jatos de leite, explodindo de seios tão fartos, que muito bem poderiam alimentar não apenas sua prole, como também a de outras mães, cujo organismo não produzisse o líquido necessário para fortalecer a cria.
         Tawacã ajeitou a criança às suas tetas e esta, ao segurar o mamilo, de imediato silenciou o choro e somente se ouvia o chuchar de sua boca nos peitos da mãe, orgulhosa ao contemplar o ato resplandecendo de um amor que a fazia se sentir doando um pouco de si àquela nova vida. A jovem parturiente foi caminhando em direção à praia, disposta a mostrar à tribo a recém-nascida, que já demonstrava força e saúde pela forma como sugava o leite de seu seio.
         - Mame o quanto quiser, sussurrou a mãe à criança, enquanto dava os últimos passos dentro da água antes de atingir a areia.
         Ao chegar à praia, os membros da tribo foram ao seu encontro dela e deram as boas vindas ao filho de Tawacã e Monawa, cujo destino seria de glórias porque seu sangue trazia a amálgama de duas famílias respeitadas pela coragem dos homens, a beleza e a saúde das mulheres, a alegria das crianças e a sabedoria de seus anciãos.
         Tawacã retirou a criança de seu seio e a ergueu aos olhos da tribo, deixando os parentes surpresos quando identificaram o sexo da criança.
         - É uma menina, gritaram quase em uníssono as mulheres da tribo.