domingo, 12 de dezembro de 2010

Tocaia dos Mortos - Capítulo 2

Os guerreiros omáguas dominavam a margem esquerda do grande rio Amarelo e neste tempo faziam incursão, cada vez mais ousadas, dentro do lago Canaçari. Guanavenas, caboquenas e bararurus haviam acordado entre si que o lago seria compartilhado no interesse comum das três tribos da região. Havia necessidade de rechaçar esta invasão de inimigos poderosos, porque o Canaçari era território de pesca e principal fonte de alimento deles. Para tanto, o cacique Taobara, maioral dos guanavenas, convocou o conselho de guerra de sua gente e decidiram chamar as tribos aliadas e garantir a defesa da região.
         Taobara enviou emissários aos caciques amigos e estes deixaram a taba principal dos guanavenas, de frente para a imensidão do lago, e seguiram a pé até a comunidade do Estreito, no lado oposto da ilha. Esta localidade fora estabelecida como posto avançado de defesa da ilha Saracá, porque era ali onde o lar dos guanavenas se separava da terra firme por uma fina faixa de água. Lá, o grupo se separou em dois, com cada um singrando suas canoas em direções opostas: um deles tomou o rumo do rio Sanabani, margeando pela esquerda, porque assim estaria protegido dos ventos constantes, e foi em busca dos bararurus. O outro grupo subiu o rio Orowo, território dos caboquenas, em canoas impulsionadas por remos possantes e ventos a favor, que serviam melhor aos bravos remadores.
         Em seus destinos, os emissários comunicaram aos caciques a aflição de Taobara com as invasões dos omáguas, dentro do lago Canaçari. Os guerreiros aliados, reunidos nas tabas, se colocaram a favor da guerra com as lanças erguidas, os tacapes brandindo, os arcos e as flechas esperando a pontaria em direção ao inimigo. Depois dessa demonstração de força, foram todos para as canoas e com remadas profundas e apressadas seguiram em direção à ilha Saracá, morada dos guanavenas, de onde partiriam para expulsar os omáguas do território ancestral.
         O chefe dos bararurus, cacique Jauaraçu, foi o primeiro a chegar na ilha com muitas canoas, todas repletas de guerreiros, pintados e armados para os combates e prontos a se juntarem aos guanavenas. Depois chegou Uataçara, grande chefe dos caboquenas, com os bravos montados em suas conhecidas e velozes cembarcações. Eles empunhavam lanças afiadas e pesadas bordunas, em manifestação ruidosa de coragem e valentia. Estes desembarcaram na praia em frente à taba principal dos guanavenas e saíram correndo em direção aos outros guerreiros, exaltando os gritos de guerra, com as armas em riste. À frente ia seu maioral, que parou diante de Taobara e Jauaraçu.
         - Aqui estou, irmão Taobara e irmão Jauaraçu, declarou firme Uataçara, pronto para morrer em defesa da terra de nossos ancestrais e também de nossos filhos.
         Os dois caciques receberam com honras o recém-chegado, confraternizando a amizade que os levaria a combater e vencer guerreiros tão valentes, como eram os omáguas. Os outros índios também se saudaram, observados pelo povo guanavenas: velhos, mulheres e crianças, pois todos acorreram à praia esperando a chegada dos reforços, que ajudariam a expulsar o inimigo do território comum.
         Entre os caboquenas, liderados por Uataçara, veio um jovem que havia passado há pouco tempo pelos rituais de iniciação, tornando-se guerreiro. Era Monawa. Trazia o rosto pintado de vermelho e listras negras, uma borduna de boa lenha, um arco flexível e flechas com pontas afiadas. Seus olhos reluziam o espanto de quem vai para o primeiro combate, sem esconderem o temor da morte. Em seu peito tremia uma dúvida de coragem que era superada apenas pela gritaria de seus companheiros, mas seu punho agarrava a arma com uma força capaz de parti-la apenas com a pressão dos dedos. Era sua primeira visita à ilha Saracá, quando mantinha contato direto com o povo guanavena, por isso observava tudo com interessado espanto. Seus olhos perscrutavam o ambiente, como se ele estivesse na mais medonha selva e não em aldeia amiga, e foi assim que encontrou outros olhos no meio das pessoas que os observavam. Eram os de Tawacã, de toda graça e curiosidade. Seus olhares se encontraram por pouco tempo, mas o mistério desse encontro causou em ambos sensações diferentes.
         O jovem guerreiro se tornou cativo do olhar da cunhantã, cuja idade ainda não lhe dera as chances de ser mulher, embora seu corpo já despontasse para grande beleza. Enquanto dançava os passos da coragem, Monawa não tirou de sua mira a imagem de Tawacã e mesmo quando acompanhava os companheiros na evocação da força para vencerem o inimigo, era na bela guanavena onde pousava seu pensamento. Para Tawacã, foi como se olhasse o infinito, pois não distinguiu, no meio de tantos guerreiros de fortes músculos e bravura experimentada nos mais difíceis combates, aquele jovem pintado pela primeira vez para a luta e que seria, no futuro próximo, seu marido.
         De noite, em volta da fogueira crepitando no centro da taba, os caciques reuniram-se com os bravos para traçar os planos da luta. Taobara propôs que fossem na frente hábeis rastejadores para localizar o inimigo, quantificar seus guerreiros e medir suas forças. Os outros chefes concordaram e indicaram, entre seus bravos, os de melhor aptidão para a tarefa. Formaram-se vários grupos; uns com a missão de espreitar o inimigo, navegando sorrateiramente por igapós, e outros para caminhar nas matas em busca dos rastros dos omáguas, para conhecer suas defesas e descobrir suas fraquezas. Partiram de manhã em todas as direções para onde o lago levava, seguiram pelo labirinto de ilhas, esquivando-se em arquipélagos, devassando as margens opostas do Canaçari, pesquisando os furos do Marupá e entrincheirando-se por entre árvores, dia e noite, sem descanso, sem alimento, mas com força de espírito capaz de subjugar as inconveniências.
         Depois de quatro dias de buscas incessantes o inimigo fora localizado. Os omáguas se concentravam na foz do rio Puru, onde armaram uma paliçada e dali pretendiam estender o domínio sobre todo o lago, vencendo as três tribos e conquistando seus territórios. Esses índios não contavam ainda com toda a força de sua nação, mas mesmo assim tinham boas defesas e estavam preparados para longas batalhas. Estas informações foram levadas para o conselho de guerra das tribos e os caciques decidiram que era urgente atacar o inimigo, enquanto eles ainda não contavam com a plenitude de suas forças.
         Dicidiram partir para o ataque no dia seguinte. Então o pajé Nahpy passou a madrugada na cabana mágica, realizando seus rituais, invocando os antepassados para proteger os guerreiros dos perigos da luta, se aconselhando com os espíritos, bebendo caxiri e fumando seu cachimbo. Quando o dia estava por amanhecer, ainda em transe pela força da bebida, Nahpy saiu da cabana em compasso da dança de guerra, se dirigiu ao centro da taba, brandindo seu maracá para chamar os guerreiros, exortando em todos a coragem dos antepassados e aconselhando os bravos a se pintarem para a guerra.
         Os índios das três nações realizaram a pintura corporal, com cada grupo traçando as linhas com os símbolos de suas tribos. Quando todos estavam preparados para a luta, entoaram as canções da coragem e da honra, também dançaram para os espíritos dos ancestrais os passos da guerra, para não temer o inimigo e nem a morte. Também incorporaram a valentia dos grandes guerreiros. Depois, cada um se paramentou com suas armas: lanças, bordunas, arcos e flechas e embarcou nas canoas, ainda entoando os cantos mágicos que invocavam a proteção a sua vida.
         Enquanto os outros índios mantinham o pensamento voltado apenas no inimigo, Monawa estava fechado em seu próprio transe, porque nos dias em que passou aquartelado na ilha dos guanavenas, esperando os rastejadores voltarem com notícias sobre o inimigo, seus olhos não perderam nunca de vista os passos de Tawacã. Ele a observara muitas vezes quando a pequena índia ia à praia, para o primeiro banho; quando comia com as outras mulheres ou se dirigia aos roçados. Monawa era ainda um jovem guerreiro e não comentava seus sentimentos com ninguém, preferindo viver a reclusão de seu mundo, no qual cabiam apenas ele e a jovem guanavena. Quando embarcou na canoa com os outros guerreiros de sua tribo, para lutar contra os omáguas, olhou fixo na praia e encontrou Tawacã na areia, ao lado de sua mãe e irmãos, junto com as outras mulheres da tribo, e guardou em seu espírito aquela visão de sua amada, jurando a si mesmo voltar vivo dos combates para se casar com a filha do pajé Nahpy.
         Os guerreiros remaram as canoas até a costa do Marupá e lá se dividiram. Uataçara e Taobara, liderando seus homens, buscaram caminho entre os furos, para surpreender por trás os inimigos, porque entrando nos labirintos de ilhas do Marupá, se alcançava a foz do rio Puru pela retaguarda. Enquanto Jauaraçu, com os bravos bararurus, foram esgueirando-se nos igapós do Canaçari, com o objetivo de surpreender em plena fuga os ómaguas, quando estes, atacados pelas costas por guanavenas e caboquenas, buscassem o lago como única rota de escape.
         Ficou acertado entre os três caciques que o ataque seria realizado ao raiar do dia, por isso era necessário tomar posição e aguardar o momento certo. Jauaraçu liderou seus guerreiros até as proximidades da foz do rio Puru e ali esperou escurecer, dando ordem para metade de sua tropa, agora protegida pelas trevas, remar até a outra margem do rio e passar despercebida em frente à aldeia inimiga, que se preparava para mais uma noite iluminada pelas fogueiras acesas na taba.
         No outro lado, ainda nas luzes do dia, guanavenas e caboquenas deixaram as canoas na margem do Marupá e agora marchavam por terra, no silêncio das onças, entrincheirando-se entre árvores, rastejando entre as folhas, picados de carapanãs e feridos por espinhos. Mas estavam decididos, com Taobara e Uataçara à frente, mostrando os melhores caminhos, até avistarem os primeiros sinais do inimigo.
         Neste momento pararam e, quando anoiteceu, os guerreiros retomaram o movimento, se aproximando da aldeia furtivamente, com os passos medidos, usando cada árvore como trincheira, protegidos pelas folhagens e pelas sombras. Estavam agora preparados para o combate, esperando apenas a ordem de atacar. Uataçara chegou perto de Taobara, para acertar os últimos detalhes da guerra. Quis saber quando seria o momento, para que uma tribo não antecipasse o avanço e permitisse ao inimigo evitar o fator surpresa.
         - Qual será o sinal? quis saber o chefe dos caboquenas.
         - Assim que acordarem os papagaios, respondeu um resoluto Taobara.
         A noite foi longa. Os guerreiros tiveram de enfrentar seus medos, que se ampliavam ainda mais com as picadas dos insetos e faziam o suor escorrer pelo corpo, desmanchando a pintura protetora contra a morte. No entanto, a madrugada afinal cedeu sua escuridão à força invencível dos raios de sol e foi apenas surgir os primeiros tons vermelhos no céu para os papagaios começarem a palrar nas árvores. Era o sinal esperado para o ataque. Na penumbra da selva, um grito medonho de muitas bocas rasgou a tranqüilidade do orvalho, abafando a algazarra dos pássaros e fazendo gelar os corações dos ómaguas com o pressentimento repentino da morte.
         Os guerreiros avançaram contra o inimigo pego de surpresa, muitos ainda dormindo nas redes, outros chegando das pescarias noturnas, cansados pelo trabalho. As poucas mulheres da tribo começavam a preparar a mandioca para a primeira refeição dos ómáguas quando ouviram o grito de ataque e viram rasgar no ar as flechas, cujas pontas, untadas com a bosta dos oponentes, carregavam o veneno mortal das infecções incuráveis. Ainda na linha de defesa formada às pressas, sem esboçar qualquer reação, tombaram os primeiros omáguas atingidos pelas flechas de guanavenas e caboquenas. Estes avançaram aos gritos, com os arcos em pontaria e as bordunas trançadas no peito, para quando chegasse o momento da luta corpo a corpo.
         Os omáguas estavam desorganizados porque não esperavam pelo ataque das tribos da região. Desta forma, correram em busca de seus arcos e flechas para conter o avanço dos oponentes, mas não tiveram tempo de impedir que guanavenas e caboquenas, cada tribo entrando na taba por flancos opostos, invadissem a aldeia e tomassem as cabanas mais próximas da mata. Lá, os atacantes encontraram proteção e fustigaram os omáguas com flechas, tentando cercar a grande oca, onde buscaram refúgio mulheres e crianças, o que forçou a maior parte dos guerreiros a se dirigir ao local para dar proteção à sua gente.
         As duas tribos aliadas, em maior número, penetravam sem dificuldade na aldeia inimiga, tomando posições e enfrentando adversários ainda surpresos pelo ataque. Uataçara comandava seus guerreiros, mostrando coragem e disposição de luta. Os inimigos já estavam próximos um dos outros e então o maioral dos caboquenas largou seu arco no chão e empunhou a borduna para brigar corpo a corpo com os adversários. Logo seu grupo cercou uma cabana, que parecia ser a do pajé, e Uataçara foi o primeiro a entrar, com a arma no alto, pronta para desferir o golpe, mas foi atacado primeiro por um omágua, que empunhava uma lança. O inimigo mirou na direção do cacique e arremessou a arma contra seu corpo. No entanto, com um movimento rápido, Uataçara conseguiu se desvencilhar, mas não evitou que seu braço fosse atingido de raspão. Ao ver um fio de sangue escorrer pelo braço, o maioral caboquena ergueu sua borduna e investiu contra o inimigo. Foi um único golpe e o crânio do omágua se abriu em um ruído seco, tombando ao chão.
         Do outro lado da aldeia, os guanavenas abriam espaço atirando suas flechas e pondo em retirada os invasores, que abandonavam suas trincheiras e procuravam se esconder na oca principal, no centro da taba, concentrando todos os seus esforços na última tentativa de resistência. A luta final se anunciava rápida e seria realizada com bordunas e lanças, onde o mais forte sobrepujaria o mais fraco. Os omáguas recuaram até onde puderam, no limite da entrada da grande oca, mas se viram cercados. Neste momento saiu da cabana o maioral do omáguas, cacique Ubiqüera, e conclamou seus guerreiros a lutar até a morte em defesa do sangue de sua tribo e em honra dos seus ancestrais.
         Os índios invasores possuíam um vasto território na margem do grande rio Amarelo e eram respeitados como valorosos guerreiros, mas em menor número e pegos de surpresa, só restava aos omáguas morrer lutando, ou então furar o cerco dos oponentes e empreender a fuga pelo lago. Ubiqüera entoou um poderoso grito e seus bravos partiram para a luta, com lanças pontiagudas mirando os inimigos, que também aguardavam o momento final com as bordunas em posição mortal. Somente a valentia tinha lugar no campo de batalha.
         A luta logo se tornou feroz, com guerreiros se enfrentando cara a cara e lanças furando ventres e bordunas rachando cabeças. Taobara e Uataçara guerreavam com coragem, seguidos de igual exemplo por seus comandados. O cacique guanavena teve as costas rasgadas por uma lança, sem muita gravidade, e mesmo assim continuou lutando com determinação, sem dar chance para o inimigo reverter a situação de inferioridade. À frente de seus guerreiros, Taobara perseguia o adversário, encurralando-o dentro das cabanas, expulsando-o para o centro da taba, onde o combate era mortal.
         Os omáguas rompiam o cerco com dificuldade, escapando apenas uns poucos, que eram perseguidos e de novo retornavam para o centro da luta. Com os guerreiros já exaustos, os combates passaram a ser travados na força bruta dos braços, porque as lanças se partiram e as bordunas se perderam em tantos golpes. Taobara sangrava por vários ferimentos espalhados no corpo, mas empunhava ainda sua arma, com a qual combatia o inimigo. Quando lutava com um omágua, no centro da taba, o cacique guanavena viu o maioral dos invasores enfrentando um bravo caboquena, em quem não teve dificuldade em cravar no peito sua lança.
         Taobara investiu contra Ubiqüera e este, no momento de retirar a lança do peito do guerreiro que acabara de matar, teve sua arma partida ao meio, ficando em suas mãos apenas um pedaço de vara, com a qual não teria chance alguma de enfrentar a borduna do cacique guanavena. O omágua não se sentiu intimidade e esperou o ataque de Taobara, mas este, se vendo em grande vantagem, largou de lado sua arma e combateu o inimigo com as próprias mãos, de igual para igual. Os dois caciques se atracaram no meio da taba, com os corpos molhados de sangue e suor. O guanavena cruzou os braços sobre as costas de Ubiqüera e o ergueu do chão, fazendo-o tombar, mas sem dar chance para o adversário se soltar de seu abraço sólido. O cacique omágua também envolveu Taobara em um laço de músculos, retirando o ar dos pulmões do guanavena. Os dois ficaram no chão, cada um apertando o outro com mais força, como se fossem duas cobras sucuris a esmagar a presa, enquanto os guerreiros lutavam no centro da taba, agora vermelha pelo sangue dos bravos mortos.
         Alguns omáguas conseguiram chegar até a margem do lago e embarcaram nas canoas, partindo em fuga com uns restos de força para remar e escapar da morte, mas foram perseguidos por velozes remadores bararurus, que aguardavam este momento para entrar em combate. Exaustos e sem armas, alguns até feridos mortalmente, só restou aos omáguas a rendição, mesmo sabendo que tal atitude apenas prolongaria a agonia da morte. Os invasores então largaram os remos e se colocaram de pé nas canoas. Uns, impulsionados por intensa bravura, jogaram-se nas águas verdes do lago Canaçari e ali mesmo encontraram seus túmulos, morrendo sem se entregar ao inimigo.
         No centro da taba os combates havia cessado, apenas travavam sua luta Taobara e Ubiqüera, agarrados um ao outro num abraço do qual sairia apenas um vencedor. Os guerreiros cercaram os combatentes, gritando o nome de Taobara para este buscar as últimas forças a fim de sobrepujar o oponente. Então, revigorado pelo clamor de seus guerreiros, o cacique guanavena, quase sem ar para respirar, num esforço sobrehumano, contraiu os músculos dos braços nas costas do inimigo, esmagando contra seu corpo o corpo de Ubiqüera. Taobara e sentiu a tenaz de víbora do cacique omágua se afrouxar sobre seu peito. Apertou outra vez as costas de Ubiqüera, desta vez sem encontrar resistência do adversário, cujos braços moles se desgrudaram das costas de Taobara e este, se sentindo liberto, buscou todo o ar que fazia falta aos seus pulmões e começou a afrouxar também seu aperto, que desmaiara o cacique omágua, conseguindo assim sua rendição.
         Era o fim dos combates. Os guerreiros omáguas que escaparam com vida estavam aprisionados, pois nenhum conseguiu fugir, enquanto o cacique inimigo, vencido pelo abraço titânico de Taobara, permanecia deitado no chão da foz do rio Puru, envolvido numa crosta de poeira, suor e sangue. Ubiqüera não estava morto, apenas desmaiado. Ao recobrar os sentidos foi amarrado junto com os outros prisioneiros. Em seguida, os bravos vitoriosos recolheram os feridos aliados, embarcando-os nas canoas, junto com os corpos dos que tombaram em combate, para serem transportados até a aldeia dos guanavenas, pelas remadas rápidas dos descansados bararurus. O restante da tropa seguiu a pé pela floresta, arrastando os prisioneiros até onde estavam guardadas as canoas, mas margens do Marupá, e então obrigaram os vencidos a remar até a ilha Saracá. Na ilha, o povo aguardava para a grande festa de confraternização das tribos aliadas.
         Quando chegaram na ilha Saracá, os feridos foram recebidos por Nahpy, que de imediato começou o ritual de cura, ajudado pela sua filha Tawacã. A jovem índia, de tão ocupada no preparo das infusões, não reconheceu entre os feridos o jovem Monawa, o guerreiro caboquena que passara os quatro dias antes da batalha, enfeitiçado por seus encantos. A filha do pajé não dispensou tratamento diferenciado para nenhum dos guerreiros, não distinguindo entre eles aqueles que eram de sua tribo e os das outras, porque a todos levava sua atenção, procurando fazer da melhor maneira possível os curativos indicados por Nahpy. O pajé defumava os feridos, passava ervas nas chagas, enquanto entoava cantos para os espíritos protetores trazerem saúde aos bravos guerreiros e invocando a proteção do grande Paharamim sobre o território das tribos aliadas.
         Houve um momento de grande euforia quando desembarcaram na ilha Saracá os guerreiros vitoriosos, trazendo os prisioneiros amarrados para o ritual de humilhação. Mas antes da festa iniciar, foi permitido às famílias dos guerreiros mortos chorarem seus parentes. A cerimônia funerária foi realizada nas margens do Murucutu, no outro lado do lago, da qual participaram todas as gentes.
         Os prisioneiros omáguas estavam amarrados em grandes postes armados no centro da taba para as mulheres e as crianças realizarem a humilhação. As gentes das tribos vencedoras fizeram longa fila e todos passavam em frente dos vencidos, cuspindo-lhes no rosto, jogando-lhes lama, proferindo insultos e ofendendo-os, a eles e a seus parentes, porque ousaram invadir as terras sagradas dos guanavenas, caboquenas e bararurus. Os omáguas retribuíam também com insulto, mas como estavam amarrados não podiam impedir as velhas esfregarem areia em suas caras e as crianças investirem contra eles armados de paus, com os quais batiam forte, simulando um combate para o qual não tinham idade de lutar.
         Enquanto isso, os bravos traziam lenha para fazer fogueiras de grandes assados, amontoando no local de cerimônia feixes de gravetos e toras de madeira para arder durante dias. Guerreiros e anciões também estavam excitados pelas doses fartas de caxiri, servidas em cuias que passavam de mão em mão entre os vitoriosos. Também fumavam ervas mágicas e tossiam ao impacto da fumaça em seus peitos, explodindo em risos, em gargalhadas, em choros. Com olhos vermelhos e bocas secas, os guerreiros se vangloriavam de seus feitos na batalha, de como haviam matado vários inimigos e posto para correr os sobreviventes. Alguns até aproveitaram a ocasião para resolver cismas antigas, chamando desafetos para a briga e gerando confusão no terreiro.
         Na cabana onde Nahpy curava os feridos da guerra também imperava a agitação, com os ajudantes do pajé acendendo incenso para purificar o ambiente e atrair bons fluidos. Deitado em sua rede e com o peito aberto por uma lança, o jovem Monawa delirava em febres, suando como um rio e implorando para não ser levado ao reino da morte. Ao ouvir seus gemidos, Tawacã trouxe ao jovem guerreiro um emplastro de copaíba e aplicou em seu peito, massageando com suavidade em volta da ferida para ajudar a absorver o remédio. Monawa então despertou ao toque dos dedos da índia e se encontrou em um mundo de assombro, porque, embriagado pela dor da febre e diante da visão do rosto da jovem guanavena, não sabia se estava sonhando, se estava lúcido ou se havia morrido.
         O guerreiro caboquena balbuciou algumas palavras, mas não foram entendidas por Tawacã. Ele tentou erguer o peito para se aproximar mais perto dela, mas a dor lancinante impediu seu impulso e então só restou a Monawa agarrar o braço da pequena índia, fazendo com que ela sentisse o impacto de uma força descomunal que por pouco não partiu seus frágeis ossos de menina. Tawacã se assustou diante da investida do guerreiro e tentou soltar o braço, mas Monawa segurou com mais vigor ainda e a puxou para próximo de si, encostando a cabeça da guanavena junto a sua e dizendo na sua língua uma frase da qual a jovem filha de Nahpy só compreendeu as palavras minha esposa, porque estas eram comuns aos dois idiomas. Depois desse esforço tremendo, Monawa desmaiou, mas em seus lábios restaram um sorriso de quem havia cumprido uma promessa.
          Lá fora, no terreiro da aldeia, os guerreiros vitoriosos dançavam de alegria e festejavam a vitória diante do inimigo poderoso. Foi quando surgiram os três caciques vencedores, seguidos pelo conselho de anciãos, que estava reunido na cabana do grande chefe dos guanavenas para tratar dos novos acordos e reafirmar a paz entre as tribos aliadas. Uataçara trazia o braço ainda com a ferida sangrando, mas já não demonstrava dor, porque fora benzido por Nahpy. Taobara trazia nas costas a chaga da lança traiçoeira dos omáguas, mas sem correr perigo, porque recebera a infusão do grande pajé e aguardava a cura certa. No meio dos dois caciques feridos, estava Jauaraçu, que não participara diretamente da batalha, mas cuja atuação foi decisiva para a grande vitória dos aliados.
         Os caciques anunciaram aos guerreiros as decisões tomadas pelo conselho dos anciãos e foi uma salva de gritos, com todos festejando os novos tempos de paz e oferecendo as cuias de caxiri e os cachimbos de ervas mágicas. Então, uma parte dos guerreiros correu para acender as fogueiras, enquanto a outra foi em direção aos prisioneiros. Soltaram primeiro um e os outros omáguas começaram a gritar palavras incompreensíveis do seu idioma, mas que para os vitoriosos era claro que se tratavam de ameaças e juras de vingança. O prisioneiro solto protestava, batia os punhos fechados contra o próprio peito para mostrar sua bravura, tentava fugir correndo, mas era perseguido pela multidão e jogado no chão. Foi arrastado de volta para o centro da taba; se pôs de pé, ameaçando enfrentar seus oponentes, enquanto as gentes da aldeia gritavam insultos ao invasor derrotado. O omágua quis se defender brigando, mas uma borduna veio por trás e atingiu sua cabeça, jogando-o ao solo com o impacto seco e fazendo pedaços de seu cérebro pulsarem na poeira, para delírio dos vitoriosos.
         Soltaram outro prisioneiro e o ritual se repetiu. Um a um os derrotados foram mortos, sob o impacto das bordunas e aos gritos delirantes do povo; crianças corriam para juntar fragmentos de miolos, que colocavam na palma da mão, para sentir a pulsação quente dos vencidos, enquanto as mulheres, as mais velhas principalmente, gritavam honra à vingança por tantos parentes que tiveram o mesmo fim quando prisioneiros dos omáguas. O último a morrer foi Ubiqüera. Esperou sem desespero seu momento, sem protestar ou tentar uma fuga impossível, que apenas excitaria ainda mais seus inimigos. Não ameaçou ninguém nem jurou vingança e foi golpeado com a fronte erguida, mas não tombou ao primeiro golpe, sendo alvejado pelo segundo, agora mortal, quando cambaleava pelo terreiro.
         Em seguida, os guerreiros mortos foram esquartejados e jogados na fogueira para serem assados, enquanto a festa continuava na aldeia guanavena, com caxiri nas cuias e ervas mágicas nos cachimbos. Os vencedores estavam num transe comemorativo e não paravam de dançar agradecendo aos ancestrais por esta vitória. Invocavam os espíritos dos sábios para que a honra predominasse nos territórios sagrados, nas águas de lagos e rios, para nunca faltar caça e nem peixe, para a terra sempre oferecer em abundância a mandioca, as frutas de estação e as sementes das palmeiras com as quais saciavam a sede com seus vinhos.
         Agora seriam servidos os assados. Todas as gentes das tribos aliadas se colocaram em volta das fogueiras, desde velhos e crianças, observando pedaços de carne crepitando nas grelhas sobre o fogo. Na condição de cacique anfitrião, Taobara foi o primeiro a se servir; escolheu um pedaço farto, uma coxa, que teria sido do cacique Ubiqüera, espetou com uma pequena lança o naco e o retirou do fogo, levando-o até próximo do nariz para sentir o aroma. Então, ergueu o naco de carne pedindo permissão ao grande Paharamim para devorar o omágua.
         - Meu honrado inimigo, disse com solenidade, como tua carne para me fartar em tua bravura e em tua sabedoria.
         Em seguida abocanhou o pernil retirando um grande pedaço que mastigou sério. Depois ofereceu a coxa aos demais caciques, que também proferiram os mesmos gestos e as mesmas palavras e, enfim, se liberou para os demais guerreiros, depois para os velhos, em seguida às mulheres e, por último, às crianças. E todos se refestelaram com as carnes dos vencidos.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Tocaia dos mortos - Capítulo 1

         Faltavam alguns dias para Tawacã dar a luz ao primeiro filho quando seu cunhado Yepá apareceu na aldeia dos caboquenas, depois de quase dez ciclos de água desaparecido e dado como morto. No princípio, seus parentes o olhavam com a mesma admiração de quem vê um espírito, mas depois de ouvirem inúmeras vezes as histórias sobre um tempo de vivência forçada numa tribo de mulheres guerreiras, ele passou a ser visto mais como uma entidade mágica, recebendo o mesmo respeito dos valentes guerreiros e a reverência oferecida aos grandes pajés.
         Dias depois, deitada na rede, no descanso da primeira maternidade, Tawacã, ainda jovem mãe e somente há pouco tempo aceita no mundo dos adultos, ouvia de Yepá essas aventuras e ficava fascinada pelo bruxulear das fogueiras que conferia ao ambiente da oca uma atmosfera de encanto. Ele as contava no equilíbrio entre o entusiasmo e a veracidade, de quando fora capturado, junto com seu primo Benry, por essas guerreiras, que ele dizia serem índias de aldeia sem homens, onde eles eram aceitos apenas nas festas de acasalamento e, mesmo assim, depois de procriarem, eram sacrificados ou mandados embora, mas que nunca se soube de algum que tenha permanecido na companhia delas, por tanto tempo, como ficou o caboquena agora ressurgido.
         Ele e Benry desceram o rio Orowo, que recebia este nome em homenagem ao urubu-rei, e foram caçar nas margens do lago Saracá, onde também se encontrava a foz do rio Sanabani, nas extremas das terras dos caboquenas com as de seus aliados guanavenas e bararurus. Depois atravessaram o lago em direção ao Murucutu, adentrando-se com a canoa em igarapés desconhecidos. Foram pela mata em perseguição à caça, sem se darem conta que os labirintos da floresta os levavam para lugares perigosos. Mas como naqueles tempos sua tribo havia selado uma trégua ocasional com os índios da região, eles ousaram seguir adiante. Perseguiram bandos de jacus e varas de queixadas, até às margens do paraná de Itapiranga, afluente do grande rio Amarelo, local onde os homens de sua tribo evitavam caçar porque ali era a fronteira das terras de nações inimigas.
         Logo deram conta do perigo e retornaram ao seio da selva, chegando ao lago Canaçari, área explorada em conjunto pelas três tribos que selaram a paz na região. Ali permaneceram, aproveitando para pescar em águas piscosas. Na tranqüilidade das margens do lago construíram um pequeno tapiri para servir de abrigo, onde também pretendiam moquear os animais abatidos.
         Na primeira noite dormiram acobertados pelo lume das estrelas refletindo-se no Canaçari, acordando com as primeiras luzes do sol e, no entanto, embora tantas manhãs os guerreiros tivessem assistido, aquela guardava algo de especial no resplendor vermelho das águas e das nuvens. Comeram peixes, beijus de mandioca e foram até a floresta com intuito de recolher lenha para a fogueira e preparar a defumação da carga, tarefa que lhes tomaria metade do dia. Eles precisariam embarcar toda a carga na canoa, que ficara distante, em várias viagens de ida e volta, até toda a produção da caça e da pesca estar acomodada para seguir viagem até a aldeia Maquará, dos caboquenas, muito acima no rio Orowo.
         Quando o sol já iniciara seu caminho rumo ao poente, os bravos realizaram a primeira viagem, levando nas costas os quartos retalhados do veado abatido na última noite, alguns peixes e a fileira de jacus amarrados em uma vara. Neste trajeto, perderam o resto do dia, mas mesmo assim retornaram antes do anoitecer ao tapiri, para na manhã seguinte empreender outra viagem até a canoa. Dormiram no tapiri, embalados pela brisa suave do Canaçari e muito antes do sol nascer, quando a noite ainda dominava o mundo com seu negrume, foram surpreendidos pelo ataque de guerreiros inimigos que caíram sobre eles com a rapidez de felinos, imobilizando-os e não lhes deixando qualquer oportunidade de reação.
         Foram amarrados, pendurados pelos pés e mãos em varas, da mesma forma como eles transportavam os animais abatidos. Os inimigos levaram Yepá e Benry pela mata, na pavorosa escuridão da noite, sem eles entenderem o que seus captores falavam e quais seriam seus destinos. Quando chegaram às margens do paraná de Itapiranga foram jogados em grandes canoas, nas quais seguiram viagem ao desconhecido, impulsionadas por vigorosas remadas. O dia começou a clarear; então Yepá percebeu a aproximação do grande rio Amarelo, o mais poderoso de todos os cursos de água. Na claridade do sol tomou consciência de seu destino trágico, porque os inimigos que aprisionaram a ele e ao primo, de língua desconhecida, eram na realidade temíveis mulheres guerreiras, cuja lenda de bravura se espalhava pelas beiras dos rios, atemorizando até as tribos mais aguerridas.
         A narrativa de Yepá atraía a atenção de todos os presentes na oca. As labaredas afogueavam o rosto do guerreiro contador de histórias, deixando-o avermelhado tanto pelo reverberar das chamas quanto pelas lembranças de momentos terríveis. O jovem Wuré, usando da sua nova condição de guerreiro aprovado nos rituais de iniciação, tomou a palavra e perguntou a Yepá.
         - E nosso irmão Benry, o quê foi feito dele?
         Yepá fez uma pausa, puxou um trago de seu cachimbo e respondeu, sem sequer alterar as emoções, que Benry fora sacrificado logo na chegada da aldeia das guerreiras. No entanto, ele escapara de tão triste fim porque a rainha da tribo, de nome Mauara, ordenou que o levassem à cabana principal da taba, onde permaneceu recluso por vários dias, na condição de homem da bela cacique e reprodutor de todas as outras mulheres da aldeia. Durante muito tempo levou uma vida de regalias, sem trabalhar para comer ou arriscar a vida nos conflitos travados entre as índias e as tribos vizinhas. Nas muitas vezes em que essas guerras resultavam em prisioneiros, ele viu também muitos homens serem sacrificados, porque era costume nessa aldeia fazer correr o sangue dos machos para fertilizar a terra fêmea. Porém, gerar as filhas das mulheres guerreiras só bastava apenas um bom reprodutor, e este era Yepá.
         Quando ele narrara suas aventuras, Tawacã ouvia com atenção e respeito, lembrando de quando era criança em sua aldeia original, na tribo dos guanavenas. Ficava na ilha Saracá, margeada pelo lago Canaçari, de onde fora raptada há cerca de um ciclo de água por seu marido Monawa. Tawacã recordava das noites nas quais seu pai, o pajé Nahpy, principal da tribo dos guanavenas, contava à sua gente as lendas e tradições do povo. Era o mesmo clarão da fogueira iluminando o sábio guanavena, enquanto ele bebia na cuia o caxiri alucinógeno que o transportava para visões mágicas, tragando fundo o seu cachimbo e envolvendo todos na aura mítica da fumaça. Mas uma diferença fazia a distinção de costumes de uma tribo e outra: os caboquenas, filhos das matas fechadas, recolhiam-se na intimidade protetora da oca, enquanto os guanavenas, afeitos à vida ao ar livre, reuniam-se nas noites de lua cheia nas praias. Nessas ocasiões, protegidos no ventre acolhedor de sua ilha e ouvindo o reverberar do fogo na lenha, transmitiam às novas gerações as tradições dos ancestrais.
         Nahpy era o guardião dos segredos milenares dos guanavenas e sabedor das origens de seu povo. Conhecia também os poderes das plantas, palavras mágicas usadas para invocar espíritos e dominava os mistérios para transcender este mundo e penetrar nas brumas do desconhecido. Embora fosse pai de filhos homens, nenhum deles nascera com vocação à pajelança. Mas, sua esperança de manter na família os conhecimentos milenares de sua nação, transmitidos desde tempos imemoriais de pai para filho, residia na curiosidade inteligente de Tawacã.
         Nahpy sabia que iniciar sua filha Tawacã na arte dos pajés seria afrontar os veneráveis da tribo, no entanto, preparava os espíritos dos velhos do conselho, explicando ter a menina visão aguçada para os mistérios, vocação natural de aprender sobre a medicina da floresta e a pronúncia perfeita para entoar os cantos da benzedura. O mestre dos pajés via na filha somente virtudes da serenidade e do conhecimento, enquanto em seus filhos, de espíritos belicosos, predominava a vocação guerreira. Foi com o peito cheio de angústia que Nahpy ouviu seu primogênito Aiauara dizer que não seria ele o sucessor.
         - Meu espírito, pai, não contempla rezas e curas, porque o que mais quero é guerrear, disse Aiauara, com a cabeça baixa em respeito à autoridade paterna, mas convicto de estar tomando decisão irrevogável, embora tal desobediência implicasse em sofrimento ao grande pajé.
         - Não se trata de aceitar ou não o destino, respondeu com severidade Nahpy, porque tu, Aiauara, estarás para sempre do lado da vida e não da morte.
         No entanto, desde quando se preparava para os rituais de iniciação, junto com todos os garotos de sua idade, Aiauara já vivia a certeza de que grandes combates o aguardavam. Ele não tinha desprezo pela função de pajé. Sabia da importância de ser guardião do conhecimento milenar, de tomar assento no conselho dos veneráveis sem participar de guerras, de ser respeitado por todos, homens ou mulheres, crianças ou velhos, pelo fato de ter o poder da cura, de arrancar da floresta as infusões do bem-estar da tribo. Mas, Aiauara sabia que dentro de seu ser residia completa falta de aptidão para trabalhos de pajelança. Desde a pequena idade sentia o sangue em erupção quando assistia ao retorno dos guerreiros. Ficava extasiado ao ver os feridos das batalhas e outros trazendo nas pontas das lanças as cabeças dos inimigos mortos, mas, em todos o triunfo no rosto, a certeza da vitória conquistada com honra, nos quais até a tristeza pelos parentes mortos em combate não superava a glória na luta.
         O grande pajé não pode conter a vontade do filho mais velho e, assim, remediou a desilusão na esperança de ver a filha Tawacã, mais nova que Aiauara, assumindo o destino familiar de ser guardiã dos grandes mistérios dos guanavenas. Para isso, Nahpy reunia toda a tribo em volta da fogueira, nas noites de melhor lua, na calidez da praia, para repassar às novas gerações os conhecimentos herdados dos ancestrais. Neste momento, ao seu lado se sentava Tawacã. Ela escutava com a atenção redobrada, buscando entender cada sentido das palavras. Sem sequer ter sido informada do futuro, já predestinava em sua vida a obrigação de repetir muitas outras vezes aquelas histórias ao seu povo.
          A chama da fogueira iluminava o rosto de Nahpy e seu reflexo difuso conferia ao ato solene uma gravidade sobrenatural. Isso tornava a narrativa repleta de encantamento. Os guanavenas eram levados ao centro da história. Os olhos atentos dos meninos se dispunham a aprender o significado de cada gesto realizado pelo pajé, enquanto as meninas se fascinavam pela sonoridade das palavras. A fala pausada do Nahpy fazia as mulheres retornarem aos seus melhores tempos, quando adormeciam escutando as mesmas histórias; já os homens readquiriam a plenitude física, ao recordarem de quanto ímpeto essas narrativas lhes impuseram em outros tempos. No entanto, somente os anciãos, de ambos os sexos, tinham completo entendimento de depurar o significado real de cada narrativa, pois entendiam que, a cada geração, os conhecimentos ganhavam novo estilo, conferido pelo pajé encarregado de guardar à posteridade as tradições dos guanavenas.
         A tribo toda se calava num silêncio intenso e apenas se ouvia o crepitar da lenha sob a sanha do fogo. Nahpy levava à boca a cuia sagrada, tomava um gole do caxiri, se transportava aos limites da consciência, até retornar ao seu mundo ainda inebriado pela fumaça densa do cachimbo. Então começava a narrar a origem da tribo dos guanavenas.
         “No princípio não havia nada, somente água a dominar as vastidões. O lago Canaçari estendia seus limites até o infinito e predominava a escuridão eterna em sua superfície. Mas de repente, de dentro das trevas medonhas, o grande Paharamim segurou um punhado de estrelas e lançou em direção ao mundo, salpicando-as como fagulhas que se espalham no momento em que atiçamos a fogueira. Esses pequenos pontos de luz foram pipocando em todos os cantos, até iluminar o firmamento com pequenas faíscas. No entanto, o céu permaneceu assim ainda por muito tempo, sem nada a perturbar a calma infinita. No alto, resplandecia a luz das estrelas que as águas do lago refletiam, sem um vento para remexer o leito, sem correntezas para misturar o caldo lacustre do cauixi”.
         O maior de todos os pajés dos guanavenas encenava a narrativa com movimentos precisos, sabendo que as palavras, para serem convincentes, deveriam ser faladas em boa oratória e com a arte da representação eloqüente, sem excesso de pantomima para não desviar a atenção do povo, mas também sem desleixo que causasse nas pessoas a suspeita da dúvida. Nahpy sabia dosar as duas coisas, encantando a tribo com da história dos ancestrais. Bebeu outra dose de caxiri e tragou mais uma baforada de seu fumo, soltando de uma vez pela boca e pelo nariz, envolvendo os mais próximos numa névoa inebriante de sonhos. E continuou:
         “O grande Paharamim não ficou contente com o mundo em formação, então enviou um trovão dos confins do infinito, que ressoava pelo céu como a fúria de milhares de antas. Varreu o firmamento de lado a lado e fez trepidar a superfície do lago, criando os primeiros banzeiros para misturar as águas eternamente paradas. Fez cair sobre o mundo uma chuva de estrelas, que se soltavam do céu e iam se misturando umas às outras, formando uma nuvem de vaga-lumes a se precipitar no abismo da escuridão do grande lago. O clarão mergulhou nas profundezas escuras e atingiu o fundo lodoso. Essas fagulhas penetraram no interior da terra, rasgando-a profundamente para plantar a semente da vida em seu ventre. Porque a grandeza do lago não poderia existir mais sem a claridade da luz e sem a alegria da vida”.
         “Era o fim da noite eterna. Em seu lugar surgiu o primeiro arrebol, que riscou uma linha no meio do horizonte, separando os limites entre águas e céus. Depois tudo se transformou de vermelho da aurora para o dourado resplandecente, em tons cada vez mais claros, até ceder totalmente ao avanço inexorável do azul total. Esta cor pintou toda a abóbada celeste de uma manhã suprema. Depois de terminado o resplandecer do dia, o grande Paharamim mostrou seu rosto para o mundo, emergindo das águas e percorrendo a curvatura do firmamento. Lá do alto contemplou sua obra com orgulho, porque viu o azul dos céus e, lá embaixo, o contraste espetacular do lago, cujas águas refletiam o verde sereno que até hoje brilha e encanta os olhares. O grande Paharamim passou um bom tempo observando o mundo, extasiado por sua obra, mas depois desceu até às águas, levando consigo a luz do dia e trazendo de volta a noite estrelada. Só que prometeu retornar sempre, e assim o faz, porque na manhã seguinte emergiu de novo das águas, brilhante como nunca, na forma adorada de um sol”.
         “No céu e na superfície do lago estava consumado o trabalho do grande Paharamim, mas era no fundo das águas que outra obra divina começava a criar forma. As sementes estelares caídas no tempo da chuva incandescente faziam brotar a natureza viva em forma de poderosas formigas saracá. Elas se transformaram de brasas em seres vivos e começaram a erguer o formigueiro primordial das entranhas do lago, montando grão a grão o montículo que superou a linha da água e recebeu os primeiros raios do sol em sua areia. Surgiu a ilha Saracá, construída pela vontade ígnea das formigas, seus primeiros habitantes, que por muito tempo foram alargando sua superfície, expandindo novas massas de terras, criando praias sempre mais largas, revolvendo o fundo lodoso do lago para buscar nas profundezas tectônicas as areias mais finas e transparentes. O desejo dos primeiros seres era expor a alvura das areias ao calor do sol, o grande Paharamim, e assim se formaram as cores no mundo: no céu o azul luminoso, pintado de vermelho, amarelo e negro todos os dias; no lago, o verde suave e; na ilha, o branco imaculado das praias saracaenses.”
        Depois de ouvir a narrativa de Nahpy os guanavenas recolhiam-se à oca coletiva da tribo, onde todos dormiam em comunidade, cada família em seu espaço. A do grande pajé ocupava os fundos da cabana, com cinco redes de fibra. Na maior, armada no meio das outras quatro, dormiam ele e sua esposa Xirminja; no lado colado à parede de palha, os filhos homens, com Aiauara na borda e o mais novo, de nome Byrytyty, na rede ao lado da do casal; na parte voltada ao interior da cabana, as filhas, Tawacã mais afastada e sua irmã, Matepi. Nesta época, Tawacã estava com cerca de oito ciclos de água de idade, enquanto Matepi tinha três. Todos os filhos do pajé participavam da cerimônia da fogueira, quando Nahpy relatava as origens de sua tribo.
         Quando todos se recolheram para dormir, Tawacã se deixou levar pelo assombro da narrativa e sonhou que as formigas vieram reclamar a ilha Saracá, construída por elas e agora em poder dos guanavenas. No terror do pesadelo, a rainha das formigas disse para Tawacã embarcar com sua gente nas canoas e seguir viagem em busca de outras terras. A jovem índia buscava ajuda nos conselhos do pai, mas este disse ser justa a petição dos insetos. Então ela respondeu que não abandonaria sua terra natal e foi atacada pelas saracás carnívoras, ficando sem possibilidade de escapar. Acordou assustada, mas na escuridão da oca mal iluminada pela fogueira, encontrou os olhos de Matepi tão arregalados quanto os dela.
         - Irmã, estou sendo perseguida por pesadelos medonhos, disse a pequena Matepi, cujo enredo de seus sonhos se assemelhava ao de Tawacã. Esta, na condição de irmã mais velha, responsável por proteger e dar tranqüilidade à caçula, retomou o equilíbrio das emoções e, superando todo seu medo, afagou a pequena criança.
         - Vamos voltar a dormir, irmãzinha, porque papai há de nos proteger de todos os perigos. Então adormeceram na calma da oca, embaladas pelo crepitar macio da lenha no fogo.
         A família de Nahpy acordou, como sempre o fazia, assim como toda a tribo, nas primeiras luzes da aurora. Logo eles se dirigiram à praia, para o primeiro banho, para retirar do corpo o cheiro forte da fumaça das fogueiras acessas no interior da oca, que impregnavam até os sonhos das gentes, mas evitavam os ataques dos carapanãs sanguinários durante as melhores horas da madrugada. Os filhos do pajé se divertiam nas águas cálidas do lago, junto com todas as crianças guanavenas, enquanto Xirminja e outras mulheres da tribo preparavam os bolos de mandioca e os peixes moqueados da primeira refeição do dia, acompanhados de frutas e vinhos das palmeiras da selva. Quando estava tudo assado, os guanavenas banquetearam com fartura, porque a comida era abundante na ilha Saracá, onde os roçados ofereciam colheitas em todas as épocas do ano, a floresta fornecia as frutas de estação e no lago e em seu emaranhado de rios abundavam os peixes de piracema, tanto fazia estar na enchente como na vazante.
         As mulheres aproveitaram o sol ameno da manhã para realizar as tarefas domésticas, incumbência delas. Elas foram para os roçados cuidar das plantações de mandioca, colher os tubérculos maduros e retirar as ervas daninhas que enfraqueciam a terra. Xirminja também foi ao roçado, levando a pequena Tawacã para que aprendesse desde cedo os trabalhos femininos. A pequena Matepi e seu irmão Byrytyty foram para a casa dos macacos, onde reuniam as crianças menores, sem idade ainda para trabalhar na roça, e lá ficaram brincando. Nahpy não gostava de ver Tawacã realizando trabalhos domésticos, junto com as outras mulheres, porque tal atividade não condizia com o destino grande que o pajé sonhava para a filha mais velha. Aceitava como uma imposição das tradições, mas preparava o caminho para mudar esta regra ancestral e fazer de Tawacã, a filha mais amada, a primeira mulher a possuir o poder do conhecimento tribal.
         Reunidos em uma oca no centro da taba, Aiauara e os meninos de sua idade se preparavam para as guerras e as atividades de caça e pesca. Desde quando passaram a trilhar o caminho da puberdade deixaram de freqüentar a casa dos macacos, onde estiveram na primeira infância, e então começavam a seguir pelo conhecimento das coisas do mundo dos homens, com seus rituais de força, coragem e honra. Aprendiam a manejar a borduna, tanto para o ataque quanto para a defesa; também o arco e a flecha, de múltiplos usos, porque tanto tinham utilidades na caça e na pesca, como também na guerra; conheciam os segredos dos anzóis e das redes, úteis para capturar o peixe, alimento fundamental na dieta das famílias guanavenas; participavam de aulas práticas em canoas, para que mantivessem o rumo mesmo contra o vento e em correntezas contrárias para fortalecer a musculatura, porque um corpo de músculos vigorosos era importante para intimidar os inimigos e atrair os olhares das mulheres.
         Aiauara gostava de participar dessas atividades junto com seu primo Pajuari, de quem era amigo desde os primeiros tempos. Ambos faziam demonstração de força e valentia quando brincavam de briga. Eles rolavam pelo chão da oca em conflitos simulados, cada um procurando jogar o adversário ao chão, imobilizá-lo e assim sair vitorioso, mas os dois amigos tinham a agilidade da onça e não se deixavam dominar, agarravam-se com os músculos retesados, se soltavam, voltavam ao combate corpo a corpo, procurando o ponto fraco do oponente, e então davam a luta por terminada, sem vencedor nem vencido. Corriam para o rio, se jogando na água em alegria redobrada, acompanhados dos outros meninos. Mas não deixavam as competições e por isso nadavam com velocidade, mergulhavam para ver quem submergia mais tempo ou retornava à tona mais distante, brincavam de guerra dentro do rio, usando as águas como armas.
         Quando caminhavam de retorno para a taba, Pajuari segurou Aiauara pelo braço e confessou o segredo.
         - Meu primo, é minha honra combater guerreiro tão valoroso, disse entre sorrisos. E com o olhar seguro de quem sela para sempre um compromisso incontestável concluiu: E para aproximar ainda mais meu sangue do teu, meu primo, adianto aqui o meu desejo de fazer de tua irmã Tawacã minha esposa.
         Aiauara entendeu aquele compromisso de Pajuari como mais uma de suas brincadeira, por isso não deu a importância que este desejava para suas palavras, mas seguiram de volta para a cabana dos treinos. Por fim, naquele mesmo dia, quando encerraram as aulas de formação dos guerreiros, o jovem filho de Nahpy compreendeu que estava se transformando em homem de verdade. Quando a família se reuniu para a segunda refeição, Aiauara tocou no assunto com o grande pajé.
         - Meu pai, falou com gesto grave, quando o senhor vai tratar sobre o meu casamento.
         Nahpy se surpreendeu com o questionamento do filho, pois considerava o assunto ainda prematuro, uma vez que Aiauara não havia ainda sequer passado pelo ritual de iniciação dos guerreiros, mas mesmo assim se interessou pela aflição do filho e o interrogou.
         - Posso saber qual o motivo para tal angústia? perguntou o pajé, e completou: se ainda não és guerreiro formado e não podes assumir compromisso de família.
         - É porque, meu pai, minha irmã Tawacã já recebe propostas de casamento, disse Aiauara, com responsabilidade de irmão mais velho.
         Então o pajé se mostrou mais surpreso ainda, porque todos os planos que fazia para os filhos começavam a sair ao contrário: Aiauara a cada dia se mostrava mais convicto de não herdar o conhecimento dos ancestrais e se preparava com afinco para ser guerreiro. Tawacã indo ao roçado aprender trabalhos domésticos e já recebendo propostas de casamento.