domingo, 24 de julho de 2011

Capítulo 10 - Tocaia dos Mortos

          OS PREPARATIVOS DO CASAMENTO DE CAYABY ENVOLVERAM TODA A TRIBO DOS GUANAVENAS. Primeiro foi preciso Taobara devolver a antiga esposa à família dela e isto desfez acertos e compromissos de alianças entre parentes e aliados, ocasionando reviravolta na política da aldeia. Os familiares da esposa devolvida se recusaram a aceitá-la de volta. Eles consideraram um insulto a decisão do cacique de trocá-la por uma índia jovem e bonita. Mas Taobara estava encantada demais com a jovem do Estreito e ameaçou até com guerra caso não fosse aceita sua proposta. Para evitar um briga fratricida entre os guanavenas, Nahpy intercedeu na questão prometendo conseguir outro marido à esposa ultrajada.
         Depois de vencida esta primeira batalha, foi feito o convite formal aos caciques das tribos aliadas, com emissários de Taobara rumando até a aldeia dos caboquenas e dos bararurus, a fim de levar a notícia das núpcias entre o maioral dos guanavenas e sua jovem prometida. Seria necessário realizar novas alianças e fortalecer as antigas, porque o cacique, renovado em forças pela jovem esposa, passara a sonhar com as mesmas grandezas de antes da guerra contra os muras. Taobara pensava em realizar conquistas para cobrir de triunfo seu espírito e vestir de riquezas seu novo amor.
         Para isso queria uma grande festa, com vários dias de comemorações e abundância de comida, como era costume na ilha Saracá, onde a fartura medrava em frutas, peixes e tartarugas. Mandou seus principais auxiliares saírem em busca dos acepipes, enquanto as mulheres tratavam de fermentar mandioca para o preparo do caxiri. Os dias que antecederam ao casamento eram de correrias, com índios subindo os rios em busca das melhores áreas de pesca, canoas se abalroavam no tumulto de desembarque de pescados, caças, tracajás, frutas e tantas outras prendas oferecidas pelos maiorais aliados. Chegavam comitivas com presentes e chefes das famílias dispersas na imensidão do lago para saudar o chefe guerreiro e prometer fidelidade aos seus objetivos. Todos queriam abraçar Taobara e ver a futura esposa, cuja notícia de beleza já havia rompido os limites do território guanavena e era conhecida até nas aldeias inimigas.
         Em pouco tempo a ilha Saracá estava tomada por convidados vindos de todas as partes. Chagavam em pequenas canoas, alguns com presentes humildes, mas também desembarcavam em grandes comitivas, com várias naves e muitos remadores. A quantidade de louvores era tanta que apenas com muitos braços poderiam fazer chegar ao destino: aos pés de Taobara. O cacique guanavena recebia a todos com o orgulho impávido, convocando os aliados para novas aventuras e conquistas e falando com os de sua tribo como um pai prometendo ao filho uma herança infinita.
         - Obrigado por terem vindo, repetia com cortesia a tantos que o foram abraçar, e a todos tinha uma palavra especial, uma conversa íntima, uma confidência amigável ou um compromisso por firmar.
         Quando lhe perguntavam pela esposa, Taobara informava que ela estava sendo preparada para a cerimônia, mas em breve estaria ao seu lado, recebendo os convidados. Então oferecia aos recém-chegados a bonança das comidas e o alívio do caxiri para recuperar das longas remadas. Era dono de um sorriso fácil, embevecido pelo prestígio conquistado diante dos chefes e de seus guerreiros, porque se coragem fosse a medida para calcular o valor de um homem, Taobara a tinha em demasia.
         Do outro lado da ilha, no Estreito, Cayabi se preparava para a cerimônia de casamento tomando banho em infusão de ervas, preparada pelas mulheres sob o comando atento do pajé, ao qual nenhum detalhe escapava. No entanto, algumas das mulheres não tinham fácil entendimento do por que das folhas do caimbé precisarem ser fervidas em potes feitos do barro trazido das cabeceiras do rio Itapani, que produzia uma cerâmica tão resistente quanto o seixo. E também que o tempo de fervura do caldo devesse ser do amanhecer até o nascer do outro dia, sempre em fogueira na qual queimasse a lenha da paracutaca. Mas Tawacã, agora aceita entre as mulheres e ativa participante dos afazeres da tribo, penetrava nesses mistérios e explicava que o barro branco do Itapani era finíssimo e assim produzia uma cerâmica capaz de resistir ao enorme calor da fornalha.
         - Mas a lenha da paracutaca é porque a temos em abundância, explicava a filha do pajé às mulheres, impressionadas com a sabedoria da índia mal saída da reclusão.
         Tawacã aprendia cada passo do preparo das infusões e não se preocupava em perguntar ao pajé sobre cada detalhe, se a quantidade de uma erva a mais poderia prejudicar a eficiência da sopa, ou se se acrescentasse mais algumas sementes modificaria o resultado. Ela estava ali para isso mesmo: deveria aprender com o pai os segredos da cultura de sua gente, e Nahpy explicava sem se incomodar com a interrupção de seu ritual.
         - Passe-me as cascas do cajueiro, pedia o pajé à aprendiz e a filha corria a atender a ordem.
         Buscava nos paneiros, remexendo entre folhas secas e sementes e revirando potes de óleos e banhas, então encontrava e levava para Nahpy. Estas coisas atiçavam sua curiosidade e ela queria saber qual efeito causaria na prima lavar-se com a infusão dessas cascas, cujo caldo vermelho assemelhava-se ao sangue diluído.
         - Cayabi não é virgem, dizia o pajé, explicando as propriedades apertativas de seu banho, que deveria fornecer à nubente vitalidade para conceber e criar os filhos e fechar seu espírito contra os malefícios da inveja.
         A mãe de Cayabi e as outras mulheres ajudaram na lavagem da jovem índia, cuidando para o caldo escorrer de seus cabelos aos pés, passando pelas costas e seios, alagando os quadris e coxas. Mas outras porções estavam sendo preparadas pelo pajé e sua filha. Era preciso ainda fazer o perfume com o qual Cayabi iria deitar-se em sua noite de esposa. A loção deveria ter um cheiro marcante para ficar na memória do marido durante muito tempo e assim evitar o interesse de Taobara em outra mulher. Era uma porção contra a infidelidade e sua fórmula era o segredo mais guardado de Nahpy.
         O pajé preparava a essência com cuidado meticuloso. Se a mistura não obedecesse às medidas exatas das porções seu efeito seria imprevisível, podendo desfazer um casamento e comprometer a política de aliança que estava sendo selada. Nahpy misturava os óleos em pequenas cabaças, depois colocava o resultado em uma cuia maior, sempre mexendo em voltas coordenadas, para o sentido do redemoinho não sofrer alterações. Então deixava descansar o balanço, olhando o produto até ter certeza da mistura estar homogênea, depois levava ao nariz e aspirava uma lufada da emanação saída do recipiente. Conhecia cada eflúvio e distinguia um mais forte, que deveria ser neutralizado por outro elemento.
         - Precisamos de mais flores de murici, colhidas do pé agora, disse Nahpy à Tawacã, e ela de imediato se lembrou dessas árvores na praia do Estreito e logo se prontificou em buscá-las.
         Enquanto o pajé esperava a filha voltar com as flores foi se ocupar de outras tarefas, indo ver como Cayabi estava tomando seu banho de núpcias e checando a firmeza das flores na guirlanda que adornaria seu pescoço. Depois borrifou óleo de copaíba sobre cada pena do cocar da noiva, ressaltando assim seu brilho, fez uma benzedura em seus amuletos para lhe garantir ainda mais sorte, defumou com rolos de fumo as pedras brilhantes que seriam seus dotes na união e então percebeu que muito tempo já se passara e Tawacã não retornara com as flores do murici. Foi quando mandou um curumim verificar o atraso da filha, porque sem esses elementos o perfume da noiva estaria perdido.
         O moleque não precisou ir muito longe para saber notícia de Tawacã. Outros que tomavam banho no lago viram quando um índio saiu de dentro da mata e raptara a filha do pajé, no instante em que ela descia da árvore onde fora buscar as flores maduras. Foi tudo muito rápido e a jovem não teve tempo nem jeito de desvencilhar-se do agressor, que a segurou pela cintura, colocou-a sobre os ombros, embarcou na canoa deixada na beira do lago e atravessou a pequena faixa de água que separa a ilha das terras dos caboquenas, sumindo na mata.
         Durante a travessia a jovem ainda tentara se salvar jogando-se na água, mas o índio fora mais rápido e a colocou de novo a bordo puxando-a pelos cabelos. Ela pedia ajuda, se contorcia no fundo da canoa, gritava para os meninos salvarem-na das mãos do estranho e eles ainda tentaram socorrê-la, acompanhando a canoa a nado, mas as remadas vigorosas do guerreiro em pouco tempo colocaram os dois na outra margem. Então o índio pôs outra vez Tawacã sobre os ombros e embrenhou-se na floresta, de onde os meninos recuaram por se tratar de terras estranhas e retornaram a ilha com a notícia do rapto de filha do pajé.
         Nahpy se encheu de ira ao saber do seqüestro da filha e deixou os banhos e as loções por terminar e os preparativos do casamento sem rumo. O pajé foi até o local do rapto e lá só encontrou diante de si a floresta imensa do outro lado do lago, mas mesmo assim embarcou numa canoa, acompanhado da molecada e de algumas mulheres, todos formando uma esquadra de curiosos, cruzou o estreito e, na outra margem, encontrou pegadas que desapareciam na mata.
         O pajé sabia que não podia entrar no território dos caboquenas acompanhando de mulheres e meninos, ainda mais com todos falando ao mesmo tempo, então pediu para voltarem à ilha e, assim, preservar os rastros do fugitivo. Ele embarcou em sua canoa, rumando até a aldeia dos guanavenas, numa viagem difícil, contra os ventos e os banzeiros. A distância foi logo vencida, pois Nahpy empregara toda sua determinação para chegar na praia do Terceiro, onde encontrou as tribos confraternizando entre as fogueiras, comendo a fartura de peixes e bichos de cascos, embriagando-se de caxiri e saudando o poderoso cacique que se casaria com a mais bela índia da tribo.
         - Viva a cunhã-poranga, gritavam exaltados os índios.
         - Viva Taobara, respondiam eles mesmos.
         - Viva Nahpy, saudou um índio solitário que viu o pajé descer da canoa acompanhado de seu séquito confuso.
         A multidão então se voltou para Nahpy, neste momento já esperado por todos, porque seria ele a trazer a noiva, e se formou o corre-corre em sua volta, com gente perguntando em línguas diferentes onde estava Cayabi? O que tinha acontecido? E outras que ele sequer escutou. Outros índios vieram abraçá-lo, um agradecendo a cura de um ferimento de guerra e outro a solução de dores no corpo, mas todos igualmente embriagados, atrapalhando seu caminho, dificultando seus passos, impedindo que chagasse onde queria estar. Nahpy no início foi receptivo, passando a mão sobre as pessoas, enquanto cruzava a multidão tentando distinguir onde estaria o cacique, mas não suportando a angústia distribuiu alguns empurrões até reconhecer entre as pessoas o rosto de Warypa, um dos homens de confiança de seu irmão.
         - Onde está Taobara?
         O guerreiro estava sob o efeito alucinógeno do caxiri, mas mesmo assim entendeu a urgência daquela pergunta e afastou os que queriam tocar no pajé, levando-o com rapidez até onde se encontrava o cacique. Taobara estava sentado à sombra de uma paracutaca, ao redor dos maiorais aliados, provando da melhor comida e das maiores honras, sendo saudado por valorosos guerreiros e admirado pelas mulheres, que o sabiam corajoso na luta e abençoado no amor. O cacique viu Nahpy chegar e se levantou com um único pulo. Ao perceber a anormalidade da situação pensou que algo comprometera seu casamento.
         O pajé contou a situação e os guerreiros se entreolharam com espanto, Eles estavam todos ali e foram dando conta de que os convidados bararurus estavam presentes, assim como os anfitriões guanavenas e os aliados caboquenas. Conferiram os nomes pelos amigos ao lado, reconhecendo-se, sem esquecer de ninguém, sabendo ali estar fulano e sicrano, até que passaram a contar os das outras tribos, até se darem conta da falta de um ou outro, mas que logo apareciam dentre a multidão. Somente um não se encontrava na festa e mesmo que gritassem seu nome ele não aparecia.
         - Foi Monawa, comentou Meyki, o maioral dos caboquenas.
         Os outros índios não se exaltaram, e até reconheciam o direito do bravo raptar sua esposa, seja ela filha de quem fosse, e não reagiram com indignação como esperava o pajé, que queria formar um grupo de rastreadores e perseguir o fugitivo. Taobara, aliviado ao saber que o problema não era com ele, tentou convencer o irmão a esperar até outro dia, quando poderiam ir à aldeia dos caboquenas e resgatar sua filha. Inclusive recebeu a promessa de Meyki de que em breve Tawacã estaria com ele, mas o desejo do pai era não perder tempo, por isso insistiu para o cacique indicar uns guerreiros e iniciar a busca, enquanto os rastros estavam frescos.
         Aiauara estava deitado com Tananta em uma rede mais afastado da praia quando soube do rapto da irmã e logo foi ao encontro do pajé. Mas também não se interessou em caçar o guerreiro caboquena, porque também ele reconhecia como estratégica uma aliança de sangue com a gente da tribo de sua mãe, pois acalentava o sonho de aumentar seu prestígio entre os bravos, agora que estava casado e prestes a se tornar pai. Também pediu a Nahpy para desistir da busca e assim evitar ofender a família de Monawa, promovendo uma caçada a fim tomar-lhe dos braços a mulher escolhida para esposa.
         Nahpy estava irredutível e não aceitava outra alternativa que não fosse a perseguição, por isso o cacique reuniu os maiorais aliados e ali escolheram alguns homens, entre os menos aptos, para seguirem o pajé até as margens do Estreito e iniciarem a busca ao casal, mas mesmo assim o pai desesperado ainda teve de esperar os bravos terminarem se comer mais um pedaço de peixe, ou uma pata de tracajá, ou mesmo mais um bolo de mandioca ou um gole de caxiri, e assim iam retardaram a marcha. Sempre faltava mais alguma coisa a ser colocada nas canoas ou era preciso conservar o fogo para o tabaco ou uma arma de ponta menos aguda a fim de não ferir de morte Monawa, caso esse reagisse à ação dos guerreiros.
         O pajé colocou o grupo sob o comando de Aiauara, mas este não demonstrou pressa, indo se despedir da esposa como quem vai ali um momentinho e volta logo. Nahpy se impacientava diante da demora na transmissão das ordens feitas pelos maiorais, de entrarem nas matas e perscrutar cada trilha em busca de Monawa. Meyki conhecia muito bem seu território e indicou qual seria o melhor rumo do fugitivo, por isso ordenou seus guerreiros seguir pela beira, margeando os igapós. Se o fugitivo quisesse chegar à aldeia dos caboquenas, por ali seguiria.
         Indignado com o tempo perdido no preparo da expedição, Nahpy empurrou os homens até as canoas, mandando-os remar com força a fim de chegar logo ao local do rapto e começar as buscas. Foi então que Taobara se lembrou de uma última recomendação, atrasando ainda mais a partida do grupo.
         - Vou mandar buscar a noiva para iniciarmos o casamento, disse Taobara ao pajé. Espero que esteja tudo em ordem com os preparativos.
         - Não esperem por nós, porque só voltaremos com minha filha, prometeu o pajé.
         Taobara quis dizer outra coisa, mas foi impedido pelo gesto de Nahpy, que pulou da proa da canoa onde estava, caindo ainda dentro da água, no raso. Ele correu até a beira do lago onde estava o cacique e gritou diretamente em seu rosto.
         - Minha filha acaba de ser raptada e tu estás preocupado somente com o teu casamento, vociferou Nahpy. É isso que é importante?
         - É o meu casamento, respondeu o cacique lacônico, sabendo que estava se livrando de um problema maior: aceitar a preparação de Tawacã para pajé, determinação de seu irmão contra a qual sempre se opôs.
         - Seu miserável, gritou Nahpy, deixando a praia em direção ao Estreito.
         O grupo de Nahpy não conseguia se entender sobre onde ir quando chegou na beira do lago, já em território caboquena. Os rastros de Monawa se misturaram com os das outras pessoas que estiveram no local e agora era uma amálgama de marcas de pés impressos na lama seguindo em todas as direções, inclusive as dos rastreadores. Warypa, que fazia parte da expedição a mando de Taobara e por conhecer melhor o território, foi quem soube distinguir o rumo do fugitivo ao identificar entre tantas pistas a sola mais funda no chão, que só podia ser de Monawa, por estar carregando Tawacã nos braços.
         Quando entraram na selva os rastros foram ficando mais nítidos, com galhos quebrados por onde passou o casal em fuga, uma vez que Tawacã ainda se debatia contra seu raptor. Mais o grupo não avançava com rapidez, retardado pelo efeito do caxiri que tornava as pernas dos guerreiros sem firmeza para caminhar com convicção. Eles avançavam aos tombos, muitas vezes parando e discutindo sobre qual direção seguir e procurando evidências mais definidas, embora se perdessem todos se um galho estalasse no meio do mato, ou um deles ouvisse a revoada de pássaros distantes, vinda de lados diferentes de onde estavam indo, sem se importar se esses sons fossem delírios causados pela bebida.
         O pajé também não conseguia pôr ordem na turba de bravos, que caminhava com tanta algazarra quanto uma vara de queixadas, e facilmente se denunciaria caso chegassem perto de Monawa. Nahpy gritava com os homens, puxava Aiauara pelo braço exigindo um empenho maior na busca da irmã, mas o jovem guerreiro estava com seu pensamento ainda deitado na rede de Tananta e seus olhos ainda viam a enorme barriga da esposa em ponto de parir seu filho, por isso se descuidava na perscrutação das pistas e sua atenção desvairada seguia aonde iam todos. Nahpy queria o grupo mais célere, mas era impossível fazer ir mais rápido seus trôpegos rastreadores e, no desespero do pai em recuperar a filha, cujo destino já traçara, o pajé se distanciou dos demais guerreiros, pedindo somente a companhia de Warypa e do filho. Sozinhos, eles seguiram em velocidade na direção que levava os passos de Monawa.
         Os três desgarrados do grupo caminhavam com mais rapidez, sentindo a distância entre eles e o fugitivo diminuir. As pisadas mostravam ter passado pouco tempo entre a impressão e a observação e Nahpy incentivava para irem mais rápidos, mas Warypa pedia moderação na busca, porque sabia das artimanhas de um guerreiro caboquena para despistar seus perseguidores, ainda mais com Monawa levando um sobrepeso em suas costas e suas marcas ficando menos profundas.
         - Este guerreiro é ladino, disse Warypa ao pajé. Veja que o fundo de sua pisada já acumulou água e secou, isto quer dizer que ele já passou por aqui muito antes de raptar tua filha, explicou o guerreiro.
         O pajé se mostrou apreensivo ao perceber que poderiam estar seguindo pistas falsas e deixou Warypa reencontrar o rastro do fugitivo sem querer apressá-lo. O rastreador procurou atento no chão, depois levantou os olhos até as árvores, seguindo a direção de cipós emaranhados, abriu as narinas em busca do ar expirado pelo fugitivo e por Tawacã e, de súbito, encontrou algo. Warypa percebeu um caminho mal trilhado, possivelmente de cutia, notou as folhas no chão levemente desarrumadas e então sorriu, não de felicidade por ter achado o caminho seguido por Monawa, mas ao constatar que mesmo sendo o seqüestrador sagaz em sua fuga, ele, Warypa, o rastreador de confiança dos caciques, era capaz de encontrá-lo.
         Waripa mostrou a direção a seguir e os três se puseram em passo acelerado, pois estavam muito perto do fugitivo, no caminho da beira do lago. Esta nova pista significava que Monawa estava encurralado entre o Canaçari e seus perseguidores, embora Aiauara tivesse a impressão de estar caminhando em direção a alguma surpresa desagradável, por isso pediu cautela à esperança de seu pai. Até agora tinham encontrado enormes dificuldades em seguir o caboquena e parecia improvável o ardiloso fugitivo deixar-se capturar tão facilmente.
         Os três chegaram numa praia e aí os pés de Monawa desenharam nitidamente as marcas na areia, até trás de uma árvore, de onde uma linha bem riscada indicava que ali houvera uma canoa, empurrada para dentro da água do lago e nela seguiram o caboquena e a filha do pajé. Nahpy caminhou até a beira e dali ficou olhando a imensidão do Canaçari a sua frente, de onde o sol nascia, levou os olhos a sua direita e só encontrou o espaço imenso no qual corria o rio Orowo, e sua outra margem onde se desenha o emaranhado de lagos e furos do Marupá, contemplou absorto o Estreito e sua passagem para o Sanabani e então se deixou cair na areia, na certeza de nada mais poder fazer e nem seguir ninguém.
         - Eles têm agora todas essas águas para se esconder, afirmou Warypa ao pajé, que apenas sacudia a cabeça em desolação.
         Aiauara segurou o pai pelo braço e o ajudou a erguer-se, sentido o corpo de Nahpy mais pesado do que nunca. Sua frustração caía-lhe sobre os ombros como toras de buritizeiros, incapacitando-o de adotar a postura com a qual sempre se exibia, de um homem seguro de seus atos e notável por sua sabedoria. O pajé aceitou a ajuda do filho e levantou o corpo alquebrado, colocou seu braço sobre os ombros de Aiauara e seguiu caminhando, com passos incertos, o olhar vago perdido nas árvores, o aspecto de defunto que era como se sentia, um morto, cujo espírito havia sido levado para longe de si, deixando apenas carne e ossos onde deveria habitar a chama da vida.
         Depois encontraram o resto do grupo, ainda bebendo a sobra de caxiri no fundo da cabaça, na mesma algazarra de festa com que os três os haviam deixado para seguir o raptor de Tawacã. Eles pouco se importaram com o desfecho da caçada. Nahpy pediu que todos retornassem ao casamento e os índios receberam a ordem com júbilo, embarcando nas canoas com determinação que não tiveram na tentativa de capturar Monawa, mas o pajé não se importava com a falta de interesse por sua dor: esta deveria ser só dele. Tawacã era sua filha e o destino dela havia sido traçado por ele, por isso não era justo impor seu sofrimento aos demais, ainda sabendo que raptar a noiva engrandecia o guerreiro perante seus pares, mostrando determinação e valentia para enfrentar a fúria dos parentes ou do possível pretendente que ficou sem sua prometida. O próprio pajé havia tomado Xirminja à força dos caboquenas, enfrentando rivalidades do noivo descartado por muito tempo, mas soube ser reconhecido pelos parentes da mulher, assim como agora, no fundo de seu desgosto, desejava para Monawa ser honrado e merecer o perdão de Nahpy.
         A festa de casamento transcorreu sem outro contratempo e em breve todos haviam esquecido do rapto de Tawacã, ficando no onirismo do caxiri e na abundância de comida. Os tambores tocaram forte por toda a noite, mesmo depois de terem se retirado da cerimônia Taobara e a esposa. E Cayabi se mostrara na plenitude da beleza, embora o banho tenha sido interrompido ao meio e o perfume nupcial conservasse ainda forte o cheiro do âmbar, uma vez que não chegaram nunca às flores de murici por causa da desgraça de Tawacã. Mesmo assim sua cabeça fora enfeitada com penas raras e a pintura de seu corpo recebeu a profilaxia do vermelho tirado do urucum.
         O cacique se embriagou de vaidade, por estar casado com a mais bela das guanavenas, cujo cheiro entorpecia tanto quando o caxiri, mas ao contrário do efeito da bebida, não deixava sonolência, e sim uma excitação que somente os feitiços do pajé eram capazes de proporcionar. Taobara se despediu dos convidados quando a lua ainda não tinha percorrido nem metade do céu, mas era compreensível sua aflição em se deitar com a noiva e esta também se encontrava enfadada com tantas saudações de viva o cacique e viva Cayabi. De toda aquela multidão, ela era a única a manter seu pensamento em onde estaria, neste momento, sua prima Tawacã.
         Taobara se deitou com a esposa para os primeiros amores, desfrutando da beleza juvenil, dos suspiros de Cayabi, de seus abraços confortáveis, de seu peito imponente, da rigidez das coxas. A jovem índia descobriu um guerreiro merecedor de honrarias e glórias, cujos músculos retesados suportavam suas unhas assim como já resistira às lanças do inimigo, e o calor de seu hálito queimava tanto quanto a lenha no crepitar da fogueira. Foram amores repetidos durante o resto da madrugada, mas ao amanhecer, extenuado ainda pelos exageros da carne, não passou despercebido o desconforto de sua esposa, parecendo embarcar em outro mundo nos intervalos da paixão.
         - O que tanto te aflige? quis saber Taobara de sua esposa.
         - É que de uma forma ou de outra, Tawacã acabou se casando primeiro do que eu.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Capítulo 9 - Tocaia dos Mortos

OS LONGOS CABELOS DE TAWACÃ FORAM CORTADOS ATÉ RESTAR UMA CARECA LISA, raspada com o fio amolado do cipó titica. Xirminja recolheu depois as madeixas e as guardou em um cesto de fibra de arumã para serem usadas na cerimônia de despedida da filha, quando ela saísse da casa das mulheres. Depois teceu a guirlanda com as flores recolhidas por Aiauara e enfeitou a filha, fazendo ressaltar a beleza de mulher que em breve estaria aflorando. Tawacã iria permanecer um ciclo de água reclusa na cabana com as meninas que aguardavam a menarca. Todas ficariam protegidas dos olhos dos homens enquanto seus corpos se transformavam de frágeis meninas em mulheres adultas, aptas a casar e ter filhos. Neste período, as jovens seriam alimentadas por suas mães, elos de ligação delas com o mundo, durante o tempo que ficassem recolhidas na redoma de palha intrincadamente trançadas para não permitir a espiadela dos afoitos, mas também sem frestas por onde pudesse renovar o ar ou entrar os raios de sol.
         Quando a cabeça de Tawacã ficou totalmente encoberta pela rama de flores foi então levada ao centro da taba dos guanavenas. Ela viu as meninas com quem teria de conviver durante um período de sua vida. Algumas já conhecidas da mesma aldeia, mas outras vieram de comunidades guanavenas afastadas. Viu sua prima Cayabi, moradora da aldeia próxima ao Estreito, na parte da ilha onde o sol se punha. Reconheceu a prima embora a tiara de flores encobrisse toda a cabeça dela, com pétalas sobre o rosto, escondendo a forma dos olhos, o flanco desprotegido por onde escapa os desejos femininos e assalta a vontade dos homens. A jovem índia do Estreito se vestia com uma coroa de muitas flores, recobertas de sementes e penduricalhos cujo efeito encobria toda sua face, mais do que nas outras meninas, as quais as guirlandas apenas protegiam a cabeça calva dos olhos vorazes dos guerreiros.
         Tawacã ficou espantada com a vestimenta da prima, pois a conhecia de muito tempo e não compreendia tanto pudor por parte da família dela em proteger seu rosto dos olhos estranhos.
         Não pode ter ficado assim tão feia! Pensou Tawacã consigo mesma, mas logo sua atenção foi desviada até a voz grave de seu pai, posicionado no centro do círculo formado pelas jovens guanavenas. Elas escutaram as palavras que o pajé maior da tribo dirigiria a elas. Nahpy explicou o porquê das jovens estarem sendo recolhidas na cabana, onde se tornariam mulheres na plenitude da forma, esposas prendadas nas artes da casa e mães venturosas na criação dos filhos.
         - Assim tem sido o destino das mulheres, afirmou Nahpy, desde quando o tempo é tempo e ocorreu a separação do corpo feminino das entranhas de um poderoso deus guerreiro, que em seguida concedeu às elas a honra do parto.
         O pajé depois ungiu o corpo de cada jovem com as águas perfumadas de uma cabaça, cuja essência era uma mistura de flores silvestres com o âmbar de pau-rosa e resinas de andiroba. Tawacã por algum motivo sentiu um ardor quando as gotas do líquido atingiram seu corpo, numa sensação que ela sentiu como se um rio de fogo corresse em sua pele, no mesmo caminho por onde passaram as águas que escorriam no corpo.
         As jovens depois tiveram de dançar em busca do transe, com os tambores cada vez entoando notas mais rápidas. Primeiro Tawacã viu o céu girar em redemoinho de nuvens até ficar escuro, mesmo com o sol brilhando em todo o esplendor. Seus olhos foram perdendo o foco e passou a mirar todas as coisas sem precisão, com tudo ficando disforme e translúcido. O som dos tambores entrava em sua cabeça e ocupava seu pensamento, então sua razão apagou e o ritmo da dança comandou seu corpo até a última batida dos instrumentos, que pararam de chofre, ao mesmo tempo, deixando apenas a reverberação do ruído entoar em todo o ar, até ao infinito, onde acompanhou os pensamentos de Tawacã.
         Foram momentos de torpor, nos quais a jovem índia girava o corpo num gozo cujo segredo desconhecia, mas sustentado no silêncio dos tambores e no murmúrio dos pés das jovens dançando no centro da taba. Depois de um tempo, as garotas voltaram ao mundo, deixando para trás a satisfação conhecida naquele momento, mas que faria parte de suas vidas, agora e quando deixassem a casa das mulheres e conhecessem seus maridos.
         Após a cerimônia, Tawacã e as outras índias foram levadas à casa das mulheres. Era uma cabana feita de madeiras vigorosas, toda coberta de palha até o chão e com apenas uma pequena abertura por onde se esgueiraram as jovens, seguidas por suas mães. Em seu interior havia espaço para muitas redes e Tawacã armou a sua ao lado da de sua prima Cayabi. Então elas começaram a retirar o adorno de suas cabeças, cuidando de preservar o enfeite, e foram arrumando as flores no piso de madeira da casa. Quando Cayabi retirou sua coroa e deixou o rosto à mostra todas as outras se surpreenderam com a beleza incomum da jovem do Estreito.
         Tanta beleza assim só poderia garantir um grande marido, pensou Tawacã, vendo a prima prestes a se transformar em mulher formosa. Haviam escapado ao dote dos muras, assim como todas ali dentro porque não tinham atingido a puberdade naquela época, mas agora estavam destinadas a dar aos guerreiros guanavenas uma geração de homens e mulheres, todos saudáveis e honrados, permitindo assim que a cultura e a tradição de seu povo sobrevivessem perante toda a eternidade.
         As mulheres experientes contaram às jovens como estas deveriam passar o tempo de reclusão na cabana, aprendendo a fiar as palhas com tranças elaboradas, traçando bordados e desenhos que faziam das cestarias dos guanavenas peça cobiçada nas trocas com outras tribos. Cada peça de fibra teria de resistir ao mais duro trabalho, carregando ouriços sem deformar ou romper. As cestas também conservavam uma beleza plástica típica da cultura da aldeia, com muitos desenhos representando a elaboração de Paharamim na construção do mundo, por isso as linhas eram harmoniosas, como por si só pode ser a criação.
         Quando estava anoitecendo, as mães levaram frutas para as meninas e estas comeram a farta. Nelas, as danças da revelação havia despertado não apenas o apetite por algo desconhecido, mas uma fome animal de quem desgasta o corpo em busca de respostas que apenas o tempo poderia dar.
         - Mãe, por que a dança da revelação nos abre um apetite grande, mas que em nada lembra a fome? A pergunta de Tawacã para Xirminja serviu para todas as meninas e elas ficaram esperando uma resposta, que as mães tiveram dificuldade de explicar, por envolver o relacionamento entre o homem e a mulher.
         - Quando vocês tiverem seus maridos vão descobrir o prazer de deitar com eles, sentirão o peso do corpo deles sobre os seus e saberão que o gozo deve ser compartilhado para os seus filhos serem saudáveis, explicou Xirminja, recebendo a confirmação das outras mulheres, embora, na realidade, cada uma delas tinha uma experiência diferente com relação ao ato sexual.
         As mães se foram, deixando as meninas trancadas na cabana inviolável. Fecharam a pequena abertura com pesadas tábuas para não serem removidas com facilidade, amarraram a porta contra mourões ainda mais fortes e se sentiram seguras de deixar suas filhas sob a proteção de apenas uma mulher, que armou sua rede na boca da entrada e se plantou como a sentinela daquela noite. De agora em diante sempre haveria uma vigia nas proximidades, tanto para evitar possíveis fugas das meninas, como arrefecer o desejo de jovens e impetuosos guerreiros de seqüestrá-las, como era comum entre homens da tribo.
         Esta primeira noite foi de relativa tranqüilidade, mas outras deixaram as meninas incomodadas, pela reclusão forçada e pela ausência de atividades prazerosas, como se banhar no lago ou fazer a coleta de frutas e raízes na floresta, quando a convivência com familiares e amigos tornava o dia-a-dia delas uma rotina agradável. Agora, isoladas do mundo por paredes pelas quais nem a própria a luz do sol penetrava, as meninas ficavam irritadas com facilidade e discutiam entre si com freqüência, forçando-as a formar grupos separados no espaço exíguo da cabana.
         Desde os primeiros dias, Tawacã procurou ampliar seu relacionamento com Cayabi, cuja beleza havia atraindo a antipatia das outras meninas, mas serviu como fator de atração e de proximidade entre as primas. A visita das mulheres era o momento de descontração, quando as meninas eram lavadas e arrumadas. As mães se preocupavam em manter a limpeza das jovens índias, com asseio diário, ainda mais que os primeiros dias de reclusão coincidiam justamente com a época dos grandes verões, nos quais as águas do lago recuavam e deixavam a mostra maravilhosas praias. Esta era a época de maior fartura nas aldeias, propícias às festas noturnas quando toda a tribo se reunia em volta da fogueira para escutar do pajé as histórias e lendas dos ancestrais.
         Também era preciso redobrar a guarda sobre a cabana das meninas. O efeito encorajador do caxiri que os jovens bebiam durante essas comemorações fazia-os se aventurar nas proximidades da casa, rondando como predadores as manadas de caças. Por isso, era comum que, enquanto Nahpy fazia pregação à tribo, Xirminja se punha de guarda na entrada da cabana, enxotando guerreiros de primeira luta das presas fáceis que se ocultavam por detrás de paredes de palha trançada. A cidadela era incapaz de resistir à investida de um grupo de guerreiros decididos, ainda mais sob o efeito embriagador da bebida fermentada, a raptar as meninas e forçá-las a desposar antes mesmo de passarem pelo ritual de reclusão.
         Com o passar dos dias chegou a estação das chuvas e o ânimo das meninas não suportou a umidade das paredes de palha e nem o frio de noites de temporais que assolavam impiedosos a já alquebrada vontade de resistirem impassíveis ao peso da tradição. Tawacã suportou estóica aos primeiros dias com a resolução de filha de pajé, pois sua fraqueza poderia respingar desconfiança sobre a conduta do pai, cuja autoridade de determinar obrigação a todos os membros da tribo deveria ser confirmada também em aplicá-la aos de seus parentes. Mas numa noite de chuva forte o suficiente para permitir confidências entre tantas garotas dormindo amontoadas, Tawacã disse a Cayabi o desejo de fugir da reclusão, por não suportar seu martírio.
         A prima se assustou com as palavras de Tawacã e procurou encorajá-la a resistir com bravura. Ali estava em jogo a força do sangue da família e implicava também no próprio valor de Cayabi, que poderia se ver diminuída caso uma parente tão próxima se mostrasse incapaz de resistir à reclusão das mulheres.
         - Tu estás louca! disse Cayabi irritada. Não vou passar tantos dias de sofrimento neste lugar para minha prima pôr tudo a perder.
         - Mas eu não agüento mais esta solidão da cabana, minha prima, confessou Tawacã com os olhos em lágrimas.
         - O que será de nossa família diante dessa vergonha. E de mim? Tawacã!
         - Eu já pensei nisso tudo, insistiu Tawacã, mas não tenho forças para suportar tanta privação. Eu preciso de liberdade.
         - Vá dormir, prima. Tu precisas de descanso, disse Cayabi, e em seguida passou as mãos em volta dos cabelos da jovem filha de Nahpy e ela, entre soluços, buscou o sono que lhe veio em breve.
         Cayabi ainda permaneceu mais algum tempo acordada, mirando os reflexos rápidos dos relâmpagos golpeando a cabana com força implacável. A jovem índia do Estreito escutava os trovões e sentia apenas o ecoar em seu peito, arfava a cada lufada de vento, tremia com as rajadas de chuva, suava com a sensação de sua casa, erguida no alto do morro do outro lado da ilha, aonde os ventos do Canaçari chegavam com mais impacto, estar sofrendo os mesmos tormentos de sua pequena prisão, dividida com tantas meninas da mesma idade e de um único objetivo: se mostrarem fortes e capazes de resistir às dores do parto e as obrigações maternas.
         Quando o sono encontrava-se perto de dominar o corpo de Cayabi, um ruído despertou seus sentidos e ela aguçou os ouvidos para destinguir entre trovoadas e relâmpagos, rajadas de chuvas e lufadas de ventos, um farfalhar que se encontrava bem próximo de onde ela estava deitada. Eram mãos rápidas, procurando desfazer as amarras das fibras que as protegiam do mundo exterior e de seus perigos. Então, o clarão de um relâmpago denunciou um buraco na parede da cabana e Cayabi pode ver um corpo se esgueirando por ele e sumindo na escuridão de fora. Num impulso ela procurou pela prima que dormia ao seu lado e encontrou Tawacã atormentada em seu sono de dúvidas e ficou feliz em saber que outra havia desistido. Em seguida pensou que talvez a provável fuga fosse um rapto, mas logo seus pensamentos recobraram a sensatez e Cayabi refletiu com sarcasmo: Não é minha parente e que a vergonha a acompanhe. Depois dormiu abraçada em Tawacã, igualmente para protegê-la de qualquer investida externa como também para proteger-se a si mesma de tal infortúnio.
         Quando clareou o dia, o buraco na parede da cabana denunciou de imediato a violação na casa das mulheres. Em seguida descobriu-se a rede desocupada da jovem Taoara, filha do guerreiro Waripa. A mãe da menina deitou no chão da cabana e ali chorou sua vergonha em prantos contidos, para os espíritos dos seus antepassados não serem informados do destino de Taoara e não se magoassem diante de tamanha ofensa. Mas quando a notícia se espalhou pela aldeia, uma revoada de mulheres procurou Taobara, a fim de cobrar do grande cacique providências, no sentido de evitar que os guerreiros continuassem raptando as meninas antes mesmo delas estarem preparadas para o casamento e pondo em risco as famílias dos guanavenas, uma vez que esposas despreparadas não garantiriam o sustento dos filhos nem a felicidade dos maridos. Taobara prometeu agir dentro das possibilidades, mas as mães em gritarias queriam uma busca por todo o local, até descobrir pistas da índia desaparecida. Mas nem Waripa, pai da menina e exímio rastreador, pode encontrar qualquer indício, desfeito pela chuva torrencial que ajudou a esconder os fugitivos.
         Nahpy procurou consolar a mãe da Taoara, exortando-a a ser forte neste momento, mas a situação de uma filha desgarrada da casa das mulheres era uma vergonha que acompanharia a família dela por muito tempo, comprometendo a honra da palavra empenhada por seus parentes, pois na maior parte das vezes as meninas levadas à cabana eram compromissadas com futuros casamentos e tal fato poria dúvida à vitalidade de seu sangue. A fuga da jovem era uma evidência da incapacidade dela de suportar os rigores de ser mãe e, se raptada, pairava a incerteza de ter facilitado a ação do raptor ou já o ter combinado antes com o parceiro, mostrando pouca virtude de esposa.
         Em poucos dias a vida voltou ao normal na casa das mulheres, mas o nome de Taoara ficou entre as jovens como um tabu, cuja pronúncia deveria ser evitada a fim de não atrair às remanescentes as desgraças advindas da fugitiva. Sem a chuva dar trégua no inverno da ilha Saracá, a rotina das meninas dentro da cabana era tentar adivinhar o destino da jovem desaparecida. Todas comentavam como a mãe de Taoara evitou se esbaldar em pranto, com vergonha da própria vergonha. Cayabi, sempre mais madura que as demais, comentou ter conhecido a história de uma jovem que fugiu da casa das mulheres e mesmo assim casou com um poderoso da tribo dos bararurus.
         - Como tu sabes tantas histórias? questionou uma jovem de nome Sanca, nascida em uma família do Murucutu.
         - Eu sou do Estreito, onde se juntam os territórios dos guanavenas, bararurus e caboquenas, explicou a sagaz índia, comentando também que os guerreiros, embora prefiram esposa amadurecida dentro das cabanas, possuem descarado interesse por aquelas que abandonam a reclusão por acreditarem, eles, serem elas mais afeitas às carícias.
         Tawacã acrescentou ter ouvido o pai dizer durante uma conversa com os maiorais da tribo, a qual ela escutou por estar sempre por perto de Nahpy, que as evidências desmentiam o tabu de que a geração das mulheres raptadas ou fugitivas das cabanas era de espírito fraco, mas que pariam com o mesmo vigor das demais e seus filhos cresciam fortes e saudáveis, como se herdassem virtudes de diversos pais.
         Quando as mulheres trouxeram a última refeição do dia às meninas, os rumores sobre o paradeiro de Taoara haviam precedido a confirmação dos boatos das mães, sempre encarregadas de colocar as filhas a par das coisas do mundo. Então apenas deram como verdadeiras as notícias sobre Taoara não ter sido raptada, mas abandonado por vontade própria a cabana, aproveitando os estrondos da trovoada para romper as paredes e fugir da reclusão. Também se descobriu que a índia fugitiva entrou na mata até atingir a beira do lago, depois saiu nadando como louca em direção ao rio Sanabani, até encontrar a aldeia bararuru, aonde chegou em busca do esposo prometido. A aventura foi considerada um feito heróico, embora Taoara tivesse contado com a ajuda dos ventos a favor e pelo fato de até as feras estarem escondidas, se protegendo do temporal na madrugada.
         - Não é a toa que os tracajás esperam as noites de temporal para desovar nas praias, quando se sentem mais protegidos dos inimigos, comentou Nahpy ao conhecer a história da jovem trazida pela família por Maroh, índio bararuru, para ratificar a promessa de casamento aos pais de Taoara.
         Assim, ficou-se sabendo na cabana das mulheres que o jovem Maroh chegou acompanhado dos familiares, trazendo Taoara de novo aos parentes dela, mas determinado a levá-la de volata a sua aldeia como esposa. Ele fez o pedido aos familiares da índia fugitiva, reafirmando a promessa feita pelos pais de ambos, quando Warypa e o pai do bararuru, lutando na guerra contra os muras, garantiram que seus sangues seriam unificados pelo casamento de seus filhos.
         - Hoje meu pai está morto e seria uma traição ao desejo dele não selarmos o compromisso, disse Maroh para Warypa, na presença de Taobara, testemunha do acordo entre ambos. Além de ser também o meu desejo e o dela, confirmou o bararuru, olhando para a jovem.
         A atitude do guerreiro despertou nas meninas sentimentos confusos. Algumas choraram de emoção ao saber do destino de Taoara, nada difícil de suportar, e outras remoeram a inveja de saber que a fugitiva, ao demonstrar fraqueza na reclusão, foi aceita pelo prometido. Tawacã comentou com a prima sobre a sorte de Taoara ter sobrevivido à travessia da ilha até as terras dos bararurus, pois Cayabi conhecia a confusão daquelas águas em temporais fortes, morando em frente da fronteira entre as duas tribos.
         - É. Ela demonstrou coragem e força para atravessar a nado, comentou Cayabi. Era seu dia de sorte, mas de qualquer forma seu esposo será um bararuru, e não um guanavena, desclassificou a jovem índia do Estreito, cuja beleza superior lhe permitia sonhar com marido mais afortunado.
         As chuvas aos poucos foram cedendo de ímpeto e os dias passaram a ostentar o calor de quando as meninas foram colocadas em reclusão. As águas do lago iniciaram o retorno às praias e o dia de abandonar a casa das mulheres se aproximava, deixando um estado de euforia entre as moradoras da cabana. Elas já sonhavam com o momento de olhar novamente a claridade do dia. As meninas ostentavam diferenças em seus corpos que não deixavam transparecer em nada de quando foram trancadas na cabana, protegidas dos olhos dos homens e dos efeitos da natureza, para se tornarem mulheres prontas à lida do casamento. Todas apresentavam a pele mais clara, devido à ausência de luz, mas as linhas de seus corpos ganharam curvas, os seios se pronunciavam ao aleitamento e os quadris ao formato da maternidade. Deixaram nos dias de reclusão o perfil de meninas e agora eram mulheres, prontas à vida que lhes cobrava a aldeia.
         Um novo ritual começou a ser preparado pelas mães quando chegou o dia das meninas deixarem a cabana, se reintegrando à vida na aldeia, com seus casamentos arranjados. Muitas das famílias ainda não haviam escolhido os maridos de suas filhas. Tawacã era uma das que não tinham compromisso firmado, embora não lhe faltassem pretendentes. Nahpy imaginava para ela um futuro diferente, não querendo vê-la como tantas outras, que casavam e passavam a viver em função do marido e dos filhos. A filha do pajé tinha inteligência e beleza, era saudável e despontava como boa à concepção e ao parto, mas seu destino era ser a detentora do conhecimento e da cultura da tribo, como vinha sendo preparada desde pequena pelo pai. Quando Xirminja comentou com o marido sobre a falta de um prometido para Tawacã, o pajé foi direto em sua resposta.
         - Minha filha não será esposa de ninguém, porque seu compromisso é com todo o nosso povo.
         Xirminja tentou mostrar a Nahpy que a filha se sacrificara todo esse tempo, preparando-se para o casamento, e não seria justo ver todas as moças assumindo compromisso sem poder ter ao seu lado um marido. No entanto, o pajé sonhava em ter a filha como sucessora e estava ansioso por transmitir a ela todos os mistérios que aprendera com seu pai.
         - Nossa família tem sido guardiã dos mistérios dos guanavenas por gerações, afirmou Nahpy, e devemos honrar os ancestrais perpetuando em nosso sangue o conhecimento e a sabedoria, concluiu, pondo um fim na discussão com a esposa.
         Por fim chegou o dia das meninas deixarem a casa das mulheres e voltar às suas famílias. Xirminja não pode esperar os primeiros raios de sol e antes mesmo do amanhecer já estava preparando a primeira refeição da filha, uma cuia com pedaços de bolos de mandioca, frutas da temporada e peixe assado. Era preciso uma refeição forte. O impacto da liberdade costumava derrubar as meninas quando estas se sentiam livres e respiravam o ar aberto da natureza.
         Xirminja saiu de sua cabana e foi caminhando até a casa das mulheres, encontrando pelo caminho outras mães, também preocupadas em preparar as filhas para a liberdade. Algumas aguardavam na entrada da cabana e estavam felizes porque, enfim, poderiam dar início ao ritual de passagem, quando as meninas seriam oferecidas em casamentos aos seus prometidos. A esposa do pajé foi a primeira a entrar e encontrou o interior da casa ainda dominado na penumbra, mas a satisfação era tanta que todos os sorrisos iluminavam as paredes, como fogueiras acesas em grandes troncos.
         - Chegou o fim da reclusão, minha filha, disse Xirminja, abraçando Tawacã, que mostrara seu valor como mulher ao suportar o sacrifício da cabana.
         As duas choraram prantos contidos, assim como ao lado outras mulheres soluçavam cúmplices de suas filhas. As meninas mostraram desprendimento ao suportar os rigores da reclusão e agora estavam preparadas para sair da cabana e enfrentar a vida e seus compromissos. Algumas interrompiam o choro e imediatamente anunciavam em alegrias quando suas mães lhes contavam quem as estavam esperando. Outras não procuravam esconder o descontentamento ao ouvirem que o homem com quem casariam não era o mesmo que participava de seus sonhos. Só Tawacã não recebeu a notícia tão esperada e Xirminja apenas lhe comunicou que seu pai não providenciara um marido para ela.
         - Seu pai tem outros planos para ti, disse com melancolia, tentando convencer a filha de que a notícia não era assim tão cruel.
         Tawacã recebeu a comunicação sem espanto ou inveja das que tiveram o matrimônio arranjado, até porque não tinha nenhum pretendente e não havia demonstrado interesse por ninguém da aldeia. No entanto, questionou a mãe sobre a possibilidade de desposar um guerreiro qualquer, mas Xirminja foi incisiva e logo desfez os sonhos da filha.
         - Não tem marido nem pretendente, disse com os olhos banhados pelas lágrimas da mãe cujo sofrimento da filha lhe dói ainda mais. Teu pai já decidiu o teu destino e vai treiná-la para sucedê-lo no posto de pajé. O que eu considero um absurdo, confessou à filha.
         A jovem índia aceitou a decisão paterna e procurou se juntar à alegria das outras meninas. Foi abraçar sua prima Cayabi, que se mostrava radiante com a notícia trazida pela mãe. Sua beleza estava obscurecida pela palidez da pele, mas seus contornos anunciavam uma índia de porte e formosura impressionante, por isso Tawacã não ficou surpresa quando ouviu dos lábios da prima quem era o escolhido para desposá-la.
         - Vou me casar com Taobara, o maioral dos guanavenas, anunciou Cayabi quase em um sussurro no ouvido de Tawacã. Serei sua esposa e saberei honrar o grande chefe do nosso povo.
         Tawacã então compreendeu neste momento que a vida lhe reservava um lugar de destaque na tribo. Se sua prima iria casar com um chefe guerreiro, como sonhara durante todo o tempo no qual estiveram reclusas, ela seria a detentora do conhecimento, sem marido ou filho para tomar-lhe o vigor da vida. Seria livre, como poucas mulheres conseguiram sê-lo, e teria o poder real, porque sua força não estaria apoiada nas armas ou na confiança de outros guerreiros, mas sim no saber, só dela, a guardiã dos segredos. Era um poder emanado dela própria, sem conjunturas ou aliados. Não teria esposo, mas seu destino lhe sorria com possibilidades com as quais poucas mulheres sonharam.
         Depois as mulheres romperam a porta da cabana e, uma a uma, foram saindo da prisão onde ficaram durante uma cheia e uma vazante, um período no qual aprenderam a sobreviver e a suportar os sacrifícios da vida. Quando Tawacã recebeu os raios de sol em seu rosto sentiu uma tontura e quase desmaiou, mas o braço forte de Xirminja lhe serviu de suporte, então seus olhos viram a figura do pai acompanhado dos irmãos e percebeu o ventre protuberante de Tananta. Sorriu uma alegria pálida, mas seu contentamento foi enorme ao saber que Aiauara seria pai e que sua família, em breve, teria um novo membro.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Capítulo 8 - Tocaia dos Mortos

          QUANDO OS GUERREIROS RETORNARAM À ILHA SARACÁ FORAM RECEBIDOS por toda a tribo guanavena, deslocada até a praia para homenagear os bravos na volta das grandes batalhas contra os muras. Xirminja foi quem primeiro avistou as embarcações dobrando a Ponta Grossa, impulsionadas pelo vento soprando em direção da ilha e agitando as águas do Canaçari. Não era a mesma quantidade de canoas da partida, mas traziam outras rebocadas, nas quais os montes cobertos por palmas não deixavam dúvidas de se tratar dos corpos dos motos. A mãe de Aiauara correu até a praia, chamando outras mulheres para receber os guerreiros, mas quando se encontrava pisando nas águas, junto com as crianças, ao seu lado se colocou Nahpy, também aguardando ansioso por notícias sobre o destino do filho que lutara na guerra.
         - Lá vem meu Aiauara, remando na frente, disse aliviada Xirminja, colocando seu corpo junto ao do esposo.
         Ela o reconheceu muito antes do rosto dele se tornar definido, entre os tantos pontos escuros na claridade do lago. Os cabelos de Aiauara estavam soltos, por isso esvoaçavam ao vento, mas as águas do banzeiro davam-lhe um aspecto sereno que não tinha quando partira. Na mesma canoa vinha também Pikiwaha, mas Pajuari não fazia mais parte da formação, estava morto, deitado junto com os demais guerreiros tombados em combate. As mulheres não esperaram as canoas tocarem na praia e foram ao encontro delas nadando, seguraram em suas bordas e ajudaram os remadores a conduzir as embarcações até a areia.
         Logo o desespero tomou conta da praia, com as mulheres reconhecendo seus filhos, maridos e irmãos entre os mortos empilhados nas canoas. A mãe de Pajuari, Uruwe, debruçou-se sobre o corpo do filho e expôs seu sofrimento num grito plangente. Outras mulheres se lamentavam da má sorte de seus entes queridos, que as armas dos muras haviam ceifados. Então Xirminja se aproximou de sua irmã Uruwe para consolá-la pela perda do filho, mas esta não recebeu com satisfação seus afagos.
         - Não tente na trazer consolo, minha irmã, porque teu filho vive, enquanto o meu está morto, respondeu Uruwe para Xirminja.
         Aiauara tentou dizer a tia que o primo lutara com bravura, resistindo por muito tempo na linha de frente contra os muras e matando diversos inimigos com sua arma poderosa, mas a mulher não queria entender porque só dava razão ao seu sofrimento, enquanto trazia no colo o corpo do filho. Nahpy também se aproximou do grupo, trazendo consigo Malepxi, que fora ferido na guerra, mas sem gravidade. O guerreiro pegou a mulher pelo braço, tentando levantá-la do chão, mas não conseguiu tirar de seus braços o corpo de Pajuari. Uruwe continuava a chorar e alisar os longos cabelos do filho, impregnado de sangue. Nahpy lhe dirigiu umas palavras de consolo, mas a mãe em desespero olhou o pajé e sem nenhum respeito o cobriu de impropérios.
         - Teu feitiço só serviu para salvar Aiauara, disse Uruwe a Nahpy. Tu não querias meu filho vivo, porque não desejava vê-lo casado com Tawacã. Tu és o responsável pela morte dele.
         Malepxi, o marido, mandou a esposa se calar, mas Uruwe ousou desobedecê-lo. A mãe queria despejar seu ódio contra aqueles a quem julgava culpados por Pajuari ter sucumbindo em sua primeira batalha. Para ela, a fumaça lançada sobre seu filho não tinha o mesmo poder da que o pajé lançara sobre Aiauara, por isso Pajuari morrera. Malepxi sentia a contrariedade no rosto de Nahpy. Via seu parente ser acusado injustamente, então apelou ao fato de sua esposa ser de outra tribo e não compartilhar, como eles, o sangue guanavena.
         - Não leve em consideração as palavras de Uruwe, parente! disse Malepxi ao pajé. Não te esqueças que ela é caboquena.
         - Minha esposa também o é, respondeu Nahpy. Já te esquecestes que ambas são irmãs.
         - Mas Uruwe acaba de perder o filho amado, lembrou Malepxi.
         - Este é o preço a ser pago pela guerra, como bem nos alertou o velho Itaúna, comentou o pajé.
         Taobara se aproximou do grupo e disse a todos os presentes na praia que Pajuari morreu defendendo a honra guanavena, sendo valoroso no combate, lutando com coragem e dedicação.
         - Foi um verdadeiro guerreiro, proclamou Taobara. Lutou sob meu comando e morreu enfrentando o inimigo, por isso deve ser lembrado com honra, porque é assim que morre um bravo.
         Depois Taobara se dirigiu aos outros grupos que também pranteavam seus mortos e em todos distingiu a coragem, a bravura e a honra do guerreiro. Em seguida, ordenou os preparativos do funeral coletivo, porque não adiantava chorar o tempo todo por aqueles que deram suas vidas na defesa do território sagrado. O cacique mandou conduzir os feridos de todas as tribos até a cabana de cura de Nahpy, dando ordens especiais para o preparo do corpo de Uataçara, o maioral dos caboquenas, morto na luta. Ele mesmo desejava levá-lo até sua aldeia, acompanhando os guerreiros sobreviventes e homenagear o distinto cacique.
         Entre os caboquenas sobreviventes estava Monawa, recuperado da luta com bravura, mas ferido sem gravidade e pronto para assumir seu lugar na canoa que transportaria o corpo do seu cacique. Ele empunhava o remo com determinação, embora estivesse a ponto de trair seu desejo ao procurar outra vez a jovem filha de Nahpy, encarregada de preparar os remédios com os quais curaria os feridos em combate. Monawa observou Tawacã e a viu na plenitude de sua formação de mulher, faltando muito pouco para despertar em outros bravos e desejo de desposá-la. O próprio Taobara deu a ordem para iniciar a viagem rumo à aldeia Maquará, no rio Orowo, quando o caboquena pela última vez perscrutou a praia em busca da amada e a encontrou junto com as outras mulheres, chorando sobre o corpo inerte de Pajuari.
         Monawa remava com determinação a canoa fúnebre com o corpo do cacique e ia pensando, ora em Tawacã, ora em Uataçara. Suas recordações o instigavam a ter coragem para pedir Tawacã em casamento ao pajé dos guanavenas, ao mesmo tempo suas preocupações se dirigiam ao futuro de sua gente, depois da morte de seu maioral. Monawa pensou também no irmão e no primo, que não foram vingados com a devida punição aos inimigos e estes ainda deixaram sua tribo privada de comando.
         Taobara se fez acompanhar de Jauaraçu até a aldeia caboquena e quando lá chegaram fez questão de enaltecer a bravura do cacique morto, exortando seus guerreiros a vingar a morte do líder. O maioral guanavena participou ainda no conselho dos anciãos da tribo e endossou com satisfação a escolha de Meyki como o novo cacique dos caboquenas.
         - Eu lutei ao lado de Meyki e conheço seu valor nas batalhas, disse Taobara aos anciãos caboquenas. A escolha não poderia ter sido a mais acertada.
         Taobara, Jauaraçu e Meyki fumaram o cachimbo dos chefes e reafirmaram a aliança de seus povos e o desejo de continuar a campanha contra os muras. Os três chefes sabiam que o ataque à aldeia dos inimigos não seria perdoado e eles logo viriam com retaliação. Assim não restava outra opção a não ser se preparar para a guerra, mas desta vez na defensiva.
         Em seguida aos funerais dos mortos, a rotina voltou às aldeias aliadas, mas uma tensão pairava no ar. O ataque mura era esperado e iminente, por isso Taobara mandou seus bravos vigiarem a Ponta Grossa, de onde tinham visão privilegiada do paraná de Itapiranga e também porque dali esperavam vir as canoas inimigas para atacar a ilha Saracá. Esperou muitos outros até ser vencido pela apreensão e resolveu mandar um grupo de guerreiros, em missão de espionagem, ao grande rio Amarelo, sem Waripa, seu homem de confiança, em convalescença pelos ferimentos sofridos na última batalha. Esperou remoendo-se em agonias até a lua completar todas as suas fases e perdeu totalmente a esperança de conseguir qualquer informação quando viu outra vez o astro ir minguando até desaparecer no céu, depois a viu surgir outra vez no início da noite, e quando ela novamente despontou cheia no horizonte, sem seus guerreiros retornarem à aldeia, então os deu como mortos.
         O desaparecimento dos bravos confirmou a desconfiança de Taobara a respeito dos muras estarem se aproximando da ilha e oferecendo perigo ao povo. Os guanavenas, no momento, não eram mais uma força guerreira imponente e seu cacique não tinha tanta certeza na capacidade dos aliados repelirem um ataque em massa dos inimigos do grande rio Amarelo, senhores de grandes territórios e afamados pela forma como aniquilavam seus inimigos. Taobara não temia a própria morte, mas se atormentava diante da possibilidade de ver seu povo escravizado. Seria uma desonra pessoal dele diante dos ancestrais, que o concederam a glória de liderar seu povo e, sob sua proteção, terem perdido o território tão bravamente conquistado.
         Era preciso negociar com o inimigo e Taobara sentia a necessidade de mandar um emissário ao encontro dos muras para evitar um confronto no qual ele sabia não ser capaz de vencer. O cacique reuniu o conselho dos anciãos para comunicar sua decisão e a maneira pela qual pretendia conquistar a paz com os muras. A princípio, suas palavras foram recebidas como rendição humilhante, mas depois os próprios membros do conselho sentiram não haver outra opção para aplacar a fúria vingativa dos adversários, perigosamente próximos da ilha Saracá.
         - Para mostrar minha determinação em fazer a paz, minha filha Mauri também fará parte da comitiva que oferecerá o acordo aos muras, disse Taobara, procurando incentivar os anciãos a aderir à sua idéia.
         - Minha filha não servirá de dote para aplacar a vingança dos muras, afirmou Nahpy, declarando que Tawacã teria outra sorte. Se for preciso, que os guerreiros façam o sacrifício, mas devemos poupar nossas mulheres.
         Taobara não pretendia polemizar com seu irmão Nahpy, porque estava ciente de sua proposta causar indignação entre os guanavenas, mas era inevitável fazer um acordo com os muras, por isso chamou Nahpy para perto de si e explicou seu plano.
         - Tawacã ainda não pode desposar ninguém porque é impúbere, por isso será poupada do sacrifício, disse Taobara.
         Mas Nahpy pensava também nas diversas jovens que seriam oferecidas em dote aos muras para eles não atacarem a aldeia guanavena, e nos acordos de casamentos feitos entre as famílias, agora em risco de serem desfeitos por motivo da falta de mulheres. No entanto, Taobara também já havia pensado a este respeito a apresentou a solução ao pajé.
         - Mandaremos aquelas cujos maridos morreram na guerra e também quem não tem marido nenhum prometido, declarou o cacique.
         O ancião Içami, novo chefe do conselho em substituição de Itaúna, alertou ao cacique sobre a possibilidade de os muras se sentirem logrados com a oferta e aumentarem ainda mais seu desejo de vingança.
         - Neste caso, só nos restará a morte, alertou Taobara.
         A decisão foi tomada e quando se anunciou à tribo muitas famílias protestaram, mas seus lamentos foram inúteis. A proposta estava referendada pelo conselho dos anciões, com a anuência de Nahpy e o endosso de Taobara, cuja filha foi a primeira a ser levada ao centro da taba, como exemplo de desprendimento do maioral guanavena. Mauri trazia no rosto a altivez exigida para o momento, mas seus olhos traíam a firmeza ao deixar transparecer o desespero escondido em seu espírito, que adivinhava dias sombrios a ela e as outras jovens, agora colocadas ao seu lado, todas assustadas com a perspectiva de serem oferecidas aos inimigos de sua tribo. Foram colocadas em grandes canoas e seguiram em direção à Ponta Grossa, enquanto suas mães soluçavam na praia, com alguns bravos escoltando-as até ao encontro dos muras, como prendas para solucionar um problema criado pelo espírito belicoso de seus pais e maridos.
         A caravana de mulheres seguiu pelo paraná de Itapiranga até encontrar os muras na foz do Jauara. Eram centenas de canoas guiadas por braços determinados a desembarcar na ilha Saracá e perpetrar a vingança contra os guanavenas, seguindo depois até às aldeias dos caboquenas e dos bararurus, só deixando em paz as terras do Canaçari quando as tribos aliadas estivessem dizimadas. Os muras se surpreenderam com a oferta, mas o cacique deles aceitou negociar com os aliados, desde que dobrassem o número de mulheres oferecidas, enviando até mesmo as impúberes e as com compromisso assumido de casamento. Esta proposta obrigava os aliados a se desfazer de suas mulheres, colocando em risco a própria sobrevivência da tribo, com poucas mães a gerar filhos necessários ao crescimento das gentes.
         No entanto tiveram de aceitar os termos de negociação do cacique mura, que exigia ainda boa parte de caça e de pesca para a viagem de retorno e muitos cestos de mandioca para compensar as perdas sofridas com a invasão da aldeia nas margens do grande rio Amarelo. Quando a notícia das exigências dos muras chegou ao conhecimento de Nahpy, imediatamente ele procurou Taobara para comunicar que sua filha não seria entregue aos muras como barganha da paz.
         - O sacrifício é para todas as famílias, disse o cacique guanavena ao pajé.
         - Mas minha filha não será usada para restaurar a paz que tu destruíste, afirmou Nahpy a Taobara. Tu fizeste a guerra, agora morra para conquistar a paz.
         Os dois líderes guanavenas não chegaram a um acordo, então Taobara ameçou Nahpy e toda a sua família de banimento da tribo caso Tawacã não fosse levada aos muras.
         - Não entregarei minha filha e nem serei banido, vociferou o pajé. O meu poder supera o teu, tanto em força quanto em honra.
         Taobara não pode argumentar com o pajé, por isso aceitou a decisão de Nahpy e se retirou da cabana. Quando chegou no centro da taba, chamou alguns de seus bravos e os mandou irem até as aldeias dos aliados relatar aos caciques os termos do tratado de paz com os muras, pois suas vidas dependiam da quantidade de mulhere oferecidas aos inimigos. Os emissários embarcaram nas canoas e foram transmitir as informações de Taobara e os outros caciques. Eles, também levados pela necessidade de selar a trégua com os inimigos, enviaram canoas repletas de belas jovens, que se juntaram na aldeia dos guanavenas e depois foram oferecidas de presente aos muras, agora parados nas praias da Ponta Grossa, esperando pelo acerto final do acordo. Eles receberam de bom grado as belas gentes das terras do Canaçari e então recuaram suas canoas, voltando para o grande rio Amarelo com o dote raro de uma guerra vencida sem batalha alguma.
         O custo da paz com os muras foi elevado e trouxe problemas às aldeias. Embora muitos guerreiros tivessem caído no campo de batalha, aos sobreviventes não restou muita escolha de casamento, pois a maior parte das jovens e belas mulheres estavam agora vivendo nas aldeias dos inimigos. No entanto, a notícia de que a filha mais velha do cacique guanavena escapara do dote aos muras se espalhou rápido entre as aldeias aliadas e chegou alvissareira aos ouvidos de Monawa, neste momento já recuperado das feridas da guerra recente. O caboquena renovou seu amor, que julgava perdido para sempre, e alimentou com nova lenha a fogueira da esperança de um dia desposar a bela guanavena, que se tornava mais mulher a cada vez que seus olhos de guerreiro se punham sobre ela.
         Mas Nahpy não tinha tanta esperança de encontrar uma jovem para desposar seu filho Aiauara, que chegara a idade de casamento com sua prometida entregue aos muras por força de um tratado de paz. O pajé então resolveu visitar as gentes das outras tribos, mas não encontrou entre os parentes de sua mulher, na aldeia caboquena, uma jovem de boa idade e em condições de desposar o guerreiro Aiauara. Nas outras aldeias, mesmo as mais crianças, que não embarcaram na oferenda aos muras, já estavam comprometidas com outros pretendentes. Nahpy foi à aldeia bararuru e lá também não teve melhor sorte, embora uma jovem viúva, de um só filho, cujo esposo tombara na defesa da aldeia inimiga conquistada na última guerra, fosse a melhor promessa ouvida em sua peregrinação.
         O pajé retornou à ilha Saracá e comunicou o fato à família. O guerreiro Aiauara não se mostrou satisfeito com a escolha do pai: em seus planos não estava a sorte de se casar com uma viúva, mulher que já fora de outro homem e com um filho para criar.
         - O filho dela será entregue à família do morto, explicou Nahpy a Aiauara, este é o costume entre os bararurus.
         Mas o jovem se mostrava reticente em não aceitar a escolha do pai, embora o pajé explicasse que o momento era diferente, com poucas mulheres em idade de casar, e além do mais a viúva era nova, pois apenas se casara e seu marido partira para a guerra. Aiauara lutara na mesma batalha, também na condição de estréia, mas sobreviveu e mostrou seu valor de bravo, conquistando assim o direito de constituir família. Ele se achava merecedor de melhor escolha, como a jovem caboquena por quem esteve interessado, mas agora estava vivendo com os muras, desposada do inimigo. O guerreiro guanavena não estava disposto a viver a aventura de raptar a amada na aldeia mura e assim vivia seu impasse, e de forma alguma queria se casar com uma viúva.
         Nahpy o obrigou a aceitar a prometida e Aiauara casou com a jovem, que recebeu o nome guanavena de Tananta, indo viver na aldeia do novo marido, na taba dos pais dele. No início, Aiauara não quis dividir a rede com a mulher, rejeitando-a por ela ter pertencido a outro homem, mas com o tempo foi descobrindo os encantos da índia, que todas as tardes tomava seu banho e se adornava com flores, coroando-se de arranjos para realçar sua beleza. Tananta também ouvia os conselhos de Xirminja, para usar água com folhas de pau-rosa, cujo perfume inebriava a cabeça dos homens, e para todas as noites untar os cabelos com óleo de andiroba, e assim aumentar seu cheiro de mulher fértil.
         O tempo foi vencendo as resistências de Aiauara, cujo olhar perscrutador ia descobrindo virtudes no corpo da esposa, como seu andar saltitante que punham seus pés mais em contato com o ar do que com o chão. Tananta também tinha olhos escuros como uma noite nas selvas e seus seios ainda não traziam marcas de um dia terem amamentado. Sua pouca idade também estava preservada nos risos esporádicos que compartilhava com a nova família, mas foi seu acento no falar a nova língua que deixou o jovem guerreiro guanavena interessado em compartilhar sua vida com a esposa imposta por determinação paterna.
         Enquanto vivia a angústia de descobrir-se amando alguém a quem desejava odiar, Aiauara foi mandado por Nahpy para apanhar as flores que enfeitariam a irmã durante o banho na casa das meninas. Tawacã atingira a idade de esperar a menarca em companhia das outras garotas de sua idade. Nahpy recomendou ao jovem guerreiro remar a canoa em direção às praias que recebiam as águas do rio Orowo, onde crescia o tajá especial para se fazer o arranjo com o qual as meninas eram levadas para a casa da espera. Aiauara já estava com o remo e as armas nas mãos quando Xirminja recomendou ele levar também a esposa, para Tananta poder tomar conhecimento das flores usadas pelos guanavenas nos seus rituais.
         Aiauara guardou o leve sorriso, entendendo as razões de sua mãe o ter lembrado de levar a esposa às praias pouco freqüentadas. Tananta pegou outro remo, decidida a obedecer a velha mulher que conhecia tantos segredos, não apenas por ser esposa do pajé dos guanavenas, mas por ser mulher e conhecer os instintos femininos, cujas entranhas percebiam mais que os olhos dos guerreiros. O jovem casal rumou em buscas das flores, mas quando desembarcaram nas praias cuja areia recebia as águas vindas do rio Orowo, não foi mais possível esconder o desejo de ambos e eles se entregaram aos prazeres do casamento, entre os barrancos e as árvores abarratodas de tantos pássaros que mal se podia ouvir os gritos dos amantes.
        Aiauara e Tananta voltaram a sua aldeia no início da noite, trazendo os ramos que enfeitariam Tawacã na cerimônia.