segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Capítulo 24 - Tocaia dos Mortos

          TAOBARA FICOU FURIOSO QUANDO O EMISSÁRIO MANDADO POR ELE ATÉ A ALDEIA DOS MURAS lhe trouxe duas respostas de sentido opostos: Matepi estava viva, mas Muruuaca se recusou a devolvê-la, ignorando completamente o pedido do cacique guanavena, que queria resgatar a sobrinha e trazê-la de volta à tribo, como havia prometido a Nahpy. E, no entanto, a recusa do mura em atender-lhe o pedido era a comprovação da fragilidade da aliança entre os dois caciques. Taobara pensava que se o novo aliado quisesse fortalecer os laços entre ambos não poderia fazê-lo passar por este constrangimento. A resposta negativa colocou o guanavena em situação frágil diante dos comandados e, mais ainda, perante o pajé, a quem dera a palavra de que Matepi voltaria ao convívio de sua gente.
         - Muruuaca disse que Matepi continuará sendo esposa de cacique, contou Waripa depois de retornar da aldeia de Itacoatiara, para onde fora enviado com a missão de levar ao maioral dos muras a proposta de seu comandante.
         Para Taobara, ao ter-lhe negado o pedido, Muruuaca dera provas de que a aliança combinada entre eles não podia ser levada a serio e temeu o pior. Todos os índios do Canaçari estavam assustados com a notícia do massacre em Maquará se espalhando como grande cardume de peixes no igapó, semeando medo e levando muitos a abandonar as comunidades mais distantes e a se concentrar na ilha Saracá. Era difícil Taobara aceitar a sobrinha vivendo com os muras, embora Mauri, sua própria filha, cujo paradeiro atual era desconhecido, tenha vivido com essa gente e, e até com o seu consentimento, mas numa realidade diferente, pois o cacique decidiu entregar algumas mulheres ao inimigo numa estratégia pragmática. Só assim os guanavenas puderam escapar à vingança dos índios do grande rio Amarelo e manter a integridade tribal, sorte que não tiveram os caboquenas.
         Matepi fora raptada e, portanto, poderia ser devolvida sem problema, mesmo estando o cacique Muruuaca disposto a casar-se com ela, até por uma questão de boa vontade ao aliado. Nos pensamentos de Taobara habitava a certeza de dívida dos muras em relação aos caboquenas, pois este povo não interferiu quando os caboquenas foram dizimados, preferindo deixar sem resposta o ataque à aldeia Maquará. Essa atitude foi contrária aos acordos antigos e o maioral teve trabalho de conter a disposição do cacique bararuru em enfrentar os inimigos, até por questão de defesa e prevenção contra algo semelhante ao seu povo. Depois, o cacique havia prometido ao pajé recuperar a filha dele e até casá-la com seu filho e provável sucessor Pikiwaha, num arranjo político para fortalecer a família no comando da tribo.
         Quando a notícia foi levada a Nahpy, o pajé reagiu mostrando desapontamento com o irmão, pois se nunca aprovara a aproximação com os muras, agora tinha a certeza de que a aliança fora um erro estratégico promovido por Taobara, e este reconheceu a justeza de quem se opunha a ela, descobrindo da forma mais vil a impossibilidade de reconciliação com os inimigos imemoriais. O cacique tentou convencer o irmão da possibilidade de o mura rever a decisão, mas não encontrava argumentos capazes de contrapor os questionamentos do pajé e ficou sem palavras quando Nahpy o encarou nos olhos e o desafiou a ir, ele próprio, até em Itacoatiara, negociar com Muruuaca a devolução de Matepi.
         O cacique deu as costas a Nahpy e se retirou da oca onde contara ao irmão o destino da filha dele, sendo seguido pelos guerreiros mais próximos e isto foi motivo de novas preocupações, pois não tivera como retrucar às insinuações do pajé sobre a vontade de enfrentar os muras e nem de demonstrar aos bravos coragem em ir até a aldeia dos inimigos negociar pessoalmente o resgate da sobrinha. O cacique e sua tropa caminharam até a praia do Terceiro, aonde sempre iam na hora das confabulações. Ele deu ordem aos homens para ficarem de prontidão em pontos estratégicos e evitar a possível aproximação furtiva dos muras. Também mandou avisar Jauaraçu sobre as novas condições de guerra e que ficasse de prontidão com seus bravos, pois a qualquer momento teriam de participar de novas batalhas.
         A ilha Saracá se preparou para receber os índios dos arredores do Canaçari e também do Sanabani. Era mais fácil obter proteção no isolamento das águas e concentrando os bravos num único ponto, deixando vigias dispersos em locais escondidos, observando a movimentação do inimigo. Também armaram tocaias nas praias de frente ao Marupá, porque os muras bem podiam se deslocar através do Orowo e se posicionar quase de frente à ilha, podendo até realizar um ataque de surpresa, igual ao que terminou com a morte dos caboquenas e o fim de sua tribo. Os guerreiros passavam dias inteiros de tocaia nos galhos das árvores mais altas sob os barrancos, observando o emaranhado de ilhas formadas com a enchente do lago, a se estender até os confins do horizonte, na espera perturbadora de se depararem com as canoas dos muras vindo na direção da ilha Saracá.
         Mas os dias se passavam e os oponentes nunca vinham, permitindo aos aliados voltarem aos poucos às terras fora ilha, evitando, contudo, a todo custo, ultrapassar a foz do Orowo, tanto por medo dos muras quanto por receio de serem atacados por espíritos atormentados dos caboquenas. O ponto mais extremo aonde eles iam era na região do Marupá, de lagos e igapós abundantes em peixes e tracajás, sem se aventurar muito além do Puruzinho, local ermo e onde guanavenas e muras vagavam nas caçadas e os confrontos esporádicos poderiam desencadear reações temíveis aos aliados. Porém, este era o território tradicional dos índios do Canaçari, com muito alimento e assediado por tribos inimigas, as quais muitas vezes já o haviam invadido, mas sempre foram repelidas pela determinação dos bravos aliados em defendê-lo da cobiça alheia.
         Os índios necessitavam mais dos recursos do lago e dos igapós para manterem as tribos reunidas na ilha, por isso foram retornando aos poucos às terras distantes, se voltando mais ao Murucutu, de onde vinham os ventos que anunciavam a noite, mas também onde se podia pescar e caçar com tranqüilidade, sem temerem a espreita dos muras. Viveram tempos difíceis, com pouca comida e muitos temores, obrigando os guerreiros a ficarem de prontidão a qualquer momento e terem de lutar na defesa da aldeia, oferecendo a própria vida se assim fosse preciso.
         A ilha vivia em completo estado de alerta, principalmente quando os guerreiros saíam em esporádicas caçadas e precisavam entrar em terras não vigiadas, sob o risco de encontrarem com os inimigos avançados no território. Nestas ocasiões, eles se valiam dos conhecimentos de Yepá, integrado à nova tribo e essencial quando era preciso caminhar com ardil para não ser detectado pelos ouvidos da caça e nem dos muras. Também não podiam se demorar em perseguição aos animais em muitos dias e desguarnecer a ilha. O caboquena se valia da experiência de ter atravessado grandes distâncias sozinho, viajado por entre terras e rios desconhecidos, muitas vezes passando dias escondidos nos altos das árvores, espreitando as aldeias por onde seus caminhos cruzavam, e tudo ensinava a Aiauara e Pikiwaha, os companheiros de todas as ocasiões.
         Yepá estava vivendo na grande oca com a família de Nahpy, em rede armada no mesmo local antes destinado a Monawa, nas muitas ocasiões quando Tawacã veio visitar os pais. O caboquena assumira perante o pajé tomar o lugar do irmão morto na obrigação de proteger e cuidar da cunhada e das sobrinhas, por isso já era considerado parente de sangue, adaptando-se aos costumes de gente da ilha Saracá como muitas vezes se acostumou a viver em outras tantas tribos, sobrevivente que era de suas aventuras, por isso não encontrava dificuldade em sair para caçar ou pescar com os guanavenas, embora estes usassem técnicas diversas, ou nos momentos quando se embriagava com caxiri mastigando sementes de guaraná, que o deixava mais resistente aos efeitos da beberagem. Até o dia quando Aiauara, em instante de descontração de ambos, após descarregarem as cargas na praia, lhe falou de forma jocosa que ele estava cada vez mais parecido com um guanavena.
         - Agora tenho muito mais motivos de ser para sempre um caboquena, respondeu Yepá a Aiauara, que compreendeu as palavras do amigo, único representante de seu povo no mundo.
         Tawacã ainda não estava totalmente recuperada das febres, mas aos poucos Nahpy ia curando as feridas causadas pelo massacre dos caboquenas, do qual escapara por providência do destino ao sair da aldeia Maquará antes da chegada dos muras. Yepá procurava atender como podia aos pedidos da cunhada, mas seu comportamento perante as crianças já era de verdadeiro pai, cuidando para não lhes faltar nada o que comer e muitas vezes se aventurando sozinho nas perigosas trilhas do Marupá apenas no intuito de colher um cacho de pupunha, que imaginava estar maduro. Quando chegava na aldeia era sempre recepcionado pela criançada, pois o retorno de sua canoa era sinal certo de alimento farto e diversificado. O caboquena tinha a intuição natural de encontrar frutas de época, assim como as cutias, por isso era bom caçador e assim conquistara o respeito da gente com quem estava vivendo.
         As frutas mais maduras ele as dava a Tawacã e às sobrinhas e elas comiam com grande gana. Era preciso muita força para vencer as lembranças recentes da desgraça, principalmente com a pequena Samcaxiki já tendo se desmamado muito antes do que seria melhor à sua saúde. Tawacã recuperava aos poucos os brilhos da vida, mas lhe faltava acender a chama interna dos olhos que tanto necessitavam voltar a ver o mundo com alegria e disposição para cumprir a missão a qual estava destinada. Os dias passados no tédio da rede estavam arrancando de si o amor pelas filhas e havia ficado desleixada com as crianças, relegando à cunhada Tananta os deveres maternos, ou então à mãe, que embora já alcançando longa idade cuidava das netas como se fossem suas filhas menores, só não obtendo sucesso na tentativa de continuar amamentando Samcaxiki, pois seus seios vacilaram e não produziram o leite tão importante à caçula de Tawacã.
         Nahpy era a pessoa mais presente ao lado de Tawacã. O pajé colocava cataplasmas em sua fronte quando as febres a assaltavam em delírios e a defumava com grossas espirais de fumo para espantar os maus espíritos do corpo da filha, mas nem a força do tabaco era capaz de trazer serenidade a índia, ainda abalada com a visão macabra da aldeia Maquará destruída. No entanto, se era preciso colher ervas que abunda apenas nas margens do grande rio Amarelo, ou se um óleo só medrasse nas árvores mais distantes da ilha, então Yepá logo se prontificava em apanhá-los e o pajé agradecia, porque também sabia que somente ele era capaz de obter sucesso nesta empreita. O caboquena ia embora e dois ou três dias depois retornava, trazendo ingrediente necessário à cura da cunhada. Também vinha com enfiadas de pacus ou sardinhas, e muitas uma caça abatida nos intervalos das buscas. Então depositava tudo no trapiche, recomendando apenas para servirem a melhor parte à índia convalescente. Uma vez trouxe uma piranha preta e preparou ele mesmo a caldeirada e fez a cunhada e as sobrinhas tomarem, deixando Tawacã alguns dias em plena saúde, até um pesadelo a abater novamente e deixá-la prostrada dias na rede.
         A saúde de Tawacã ia de altos e baixos, mas agora, com a vazante escorrendo do lago, era maior a fartura de alimento e isto ajudava a índia a recuperar as forças, pois comia mais e os sintomas de sua doença tardavam a se manifestar. Ela saia de dentro da oca com maior freqüência e tomava sol nas manhãs, respirando o ar trazido com fúria de lá das bandas da Ponta Grossa, sentada num tronco colocado ali por Yepá e estrategicamente próximo às sombras das acapuranas. Seu temor se reduzia agora a embarcar em canoas, porque da última vez que ousou fazê-lo sentiu um pavor repentino que lhe trouxe as piores lembranças da vida e a deixou quase morta por muitos dias. Mas cada vez mais as praias se alargavam e ofereciam amplos espaços aos índios, onde as crianças corriam nas brincadeiras, imitando campos de batalhas nos quais lutariam quando estivessem maiores.
         Esta visão deixava em Tawacã uma aflição condoída. Ela sabia dos terrores da guerra desde menina, nas muitas vezes quando ajudou o pai nos tratamentos aos feridos em combate e por isso viu chagas abertas por profundas lanças, crânios partidos na força das massas e corpos atravessados de flechas que quando eram arrancadas levavam junto todo o sangue da pessoa. Ela não gostava desse tipo de brincadeira, mas as crianças tinham outra concepção sobre esses jogos e até Waiãpi tomava parte neles, empunhando um pedaço de pau e se fazendo passar pela guerreira a quem os inimigos tombavam somente pela força da coragem. Samcaxiki ficava no colo da mãe por não acompanhar a movimentação da meninada e ao seu lado estava sempre de prontidão Yepá, o bravo que prometera e estava cumprimento a promessa de zelar pela família do irmão morto.
         - Não me agrada as crianças se divertirem desse modo, comentou Tawacã ao cunhado.
         - O que gostamos é diferente do que vivemos, respondeu o guerreiro caboquena, a quem as vicissitudes não o abalavam tanto, tantas foram as mudanças e diversidades postas diante de si na instabilidade de sua existência.
         Tawacã sabia ser fácil mudar a realidade das tribos aliadas apenas costurando acordos de não-agressão com povos mais próximos e assim obter algum tempo de paz, mas seus argumentos estavam nublados pela implacável doença e ela não encontrava forças de levar adiante a conversa com o cunhado. Ela encontrava amparo na linha do horizonte, observando morros que se erguiam além do Murucutu, aos quais a distância dava coloração azulada. Quando estava na presença do pai, se deixava levar pela conversa intensa do pajé, escutando cada palavra como se fosse o ensinamento da vida, pois Nahpy usava todo recurso e conhecimento na intenção de restituir à filkha a saúde perdida e também por querer realizar o sonho pelo qual tanto batalhara, de tornar Tawacã a detentora do saber dos guanavenas. Mas numa noite, quando Nahpy reuniu as gentes em torno da fogueira para narrar a história da tribo, foi interrompido por Tawacã.
         - Eu vi as marcas dos pés sagrados cravados na pedra, quase em frente à foz do Orowo, falou Tawacã ao pai. O quê são essas marcas, grande pajé?
         Nahpy contou serem as pegadas do grande índio que perambulava entre diversas tribos falando de um deus poderoso, único e verdadeiro, que deveria ser adorado por todos os povos. Ele tinha juba e quando perseguido pelos ancestrais dos guanavenas, que não aceitaram sua pregação, conseguiu correr pelas águas e se esconder nas rochas surgidas com as grandes vazantes e ali deixou os pés gravados no momento de sair voando e escapar aos perseguidores.
         - Nunca mais retornou a estas terras, mas deixou a lembrança etérea e jamais nosso povo esqueceu sua visita, concluiu o pajé, enquanto as gentes do Canaçari escutavam assombradas a revelação fantástica de Nahpy.
         Aiauara costuma convidar Yepá para caçar, embora o caboquena se indispusesse em fazê-lo, pois se sentia melhor ao lado de Tawacã e das sobrinhas, mas não se recusava a seguir o novo parente. Estava no sangue o gosto pelas andanças na mata, com a pisada felina e a espreita solerte, embora ainda guardassem muita carne defumada e as piracenas estivessem passando quase na beira da praia. Aiauara usava o argumento de que pescar na piracena era prática de crianças e os guerreiros estavam obrigados a ir além da tranqüilidade da ilha e enfrentar noites insones em galhos de paus, na espera da presa se aproximar e ser abatida. Então Yepá comunicava Tawacã da partida, mas sem antes prometer a ela que sua ausência seria breve.
         A vazante chegara ao auge e não fora tão grande quanto da última vez, por isso os amigos decidiram seguir no rumo do Marupá, desafiando os temores do possível encontro com os muras. Havia se passado um ciclo completo das águas e os inimigos não realizaram o ataque à ilha Saracá como se esperava, embora dos muras nunca era prudente acreditar que a vingança não chegaria. A região estava no ápice da abundância e os bravos pescavam com facilidade os cardumes aprisionados na água rasa, depois faziam imensas fogueiras para defumar as carnes, até se sentirem fartos de pescados e se voltavam às brenhas das grandes extensões de campos, andando pelo emaranhado das florestas agora libertas da invasão do lago, que ofereciam diversidades de caças.
         Os índios seguiam esses caminhos naturais no encalço de enormes varas de porcos, afugentando-os e os atacando do alto das árvores com pesadas lanças, abatendo quantidade de presas superior ao que poderiam carregar, e as deixavam penduradas nos galhos altos das árvores, para serem recuperadas na volta. Estavam como alucinados pela facilidade da caçada que não se deram conta de estarem caminhando no rumo do rio Orowo, aonde chegaram com espanto ao se virem diante das águas nas quais todos agora temiam estar. Yepá sentiu seu coração pulsar com a força da lembrança daqueles dias, mas foi tomado pela determinação de retornar à terra dos ancestrais, mesmo contra a vontade de todos que o acompanhavam.
         - Me aguardem aqui, meus amigos, porque então eu vou sozinho, disse Yepá aos companheiros, enquanto se preparava para subir num buritizeiro, na intenção de arrancar as palmas e fabricar a balsa com a qual atravessaria o rio Orowo.
         Aiauara tentou demovê-lo da idéia, mas já era tarde. Yepá enfiou a peconha entre os dedos e subiu ágil o tronco ereto da enorme palmeira, derrubando com facilidade palmas suficiente para construir a embarcação. Os outros índios o viram descer com a mesma determinação de quando subira e isso infundiu neles a obrigação de seguir o amigo nessa aventura, por isso se distribuíram pelo buritizal e, em pouco tempo, as jangadas estavam cruzando o estreito leito do Orowo, vencido com facilidade pelas leves embarcações dos guerreiros indômitos.
         Na outra margem, os índios caminharam primeiro com passos vacilantes, assustando-se até mesmo com o canto dos pássaros, mas foram recuperando a coragem à medida que os passos os levavam mais perto da antiga aldeia dos caboquenas, até se virem diante do barranco onde no passado se localizara Maquará. Os bravos se aproximaram com cautela, mas não encontraram os espíritos dos mortos, os quais tanto temiam, mas apenas o mato tomando o espaço antes arrancado deles. Tudo estava como Yepá tinha visto pela última vez, mas as ossadas estavam reviradas e uma vegetação nova enterrava para sempre as lembranças terríveis do massacre. Na sombra da enorme samaumeira, que servia de ponto de referência à localização da aldeia, Yepá se juntou aos companheiros e não precisou esconder as lágrimas dos olhos, porque eles também os tinham banhados em maus presságios.
         - Não temos nada para ver aqui, disse Pikiwaha e todos concordaram com ele, mas Yepá ainda queria chorar seus mortos, pois não derramara lágrimas suficientes para aplacar os espíritos dos que morreram naquele lugar.
         - Sinto muito, meus amigos, mas os espíritos dos ancestrais me pedem para não esquecer nunca do local de minha aldeia, balbuciou o caboquena, caindo em seguida no chão e colocando na boca punhados de terra, como se quisesse devorar o território que antes pertencera à sua tribo.
         Os bravos esperaram Yepá cumprir o ritual com paciência diante da solenidade praticada pelo caboquena e este depois levantou-se e percorreu toda a área da antiga aldeia, tirando pedaços de carvão das ruínas e comendo-os, mastigando com aflição e tentando sentir os gostos de outrora. Misturava com as folhas novas e com esforço sobre-humano conseguiu engolir a mistura daquilo que um dia fora sua nação. Os outros guerreiros o viram com olhos esbugalhados e o peito arfante, mas não queriam se intrometer nas ações de Yepá. Sentiam ser aquele ato o ritual dos caboquenas, mas todos o acudiram com rapidez no momento em que o guerreiro suplicou por um gole de água.
         Aiauara foi o primeiro a trazer a cuia com a água do Orowo a Yepá e ele tomou de um único gole, como se as lembranças tivessem a ver com o sabor escuro do leito do rio porque este era o gosto de sua infância, nunca esquecida nem mesmo quando vagava por territórios tão distantes de onde nascera. O caboquena sentiu o frescor restaurar-lhe as forças como antigamente sempre o fizera, abriu o alforje e dele sacou as inseparáveis sementes de guaraná que usava como remédio para todas as dores e voltou a mastigar com força o conteúdo da boca e, com a sobra de água restante na cuia, engoliu tudo goela abaixo. Depois refez a antiga fisionomia e convocou os amigos a retornar à caçada.
         - Vamos embora, pois com tantas lágrimas os mortos se chateiam, comentou Yepá.
         O grupo embarcou nas jangadas de palmas de burutizeiro e cruzou o rio outra vez, mas agora com alívio de deixar para trás o lugar dos caboquenas, considerado por eles como amaldiçoado. Chegaram na outra margem e entraram na selva para recolher os catitus mortos durante a caçada e já não podiam com tanta carga quando se viram de novo no Marupá, então embarcaram em direção a ilha Saracá, enquanto o sol se deitava sobre as bandas do rio Orowo, deixando na escuridão as ruínas do Maquará, onde os macacos não percorriam e apenas os animais de rapina visitavam para continuar comendo as sobras do pouco que ainda restava da aldeia dizimada.
         Yepá contou a Tawacã a visita ao Maquará e ela continuou se assustando com cada palavra dita pelo guerreiro e endossada pelo irmão e o primo. Se Aiauara dava ênfase na narrativa, Pikiwaha a elevava ao espaço do fantástico, ficando a índia a acreditar que na aldeia onde dera a luz às duas filhas agora era habitada por monstros. Ela começou a ter febre, com dores fustigando-a para conquistar seu corpo e umas vertigens a acometeram como lembrança da tragédia recente. No entanto, Yepá fazia questão de lhe contar as sensações vividas no contato com a história da tragédia, representadas pelas árvores novas que medravam onde, até um ciclo de águas atrás prontificava a aldeia na qual nascera, mas agora sabia que lá não morreria.
         - Não me contem mais nada sobre isso! pediu Tawacã, entre soluços e falta de ar.
         - É preciso falar e viver tudo de novo, porque só assim nos libertamos de nossos espíritos maus, replicou Yepá, a quem a experiência de visitar o Maquará mortificado o reconciliou com seus temores.
         À noite, em meio à fogueira no centro taba, Nahpy pediu aos guerreiros que narrassem as aventuras no rio Orowo e todos os índios fizeram questão de explicar com detalhes os medos sentidos e as palpitações de espanto. Não era como visitar o cemitério, mas o campo de batalha em que havia se transformado. Os outros ouviam com temor e para eles os bravos pareciam tão irreais como eram os ancestrais, sempre envolvidos em histórias fantásticas de coragem exacerbada e desventuras heróicas, que as tremulações das chamas, junto ao crepitar do fogo, empreendiam mais assombro ainda.
         Depois os índios se recolheram à grande oca, cada um no enlaço da rede, ocupando os espaços familiares dentro do qual Tawacã e Yepá dormiam separados pelas duas crianças de Monawa. Logo os roncos soltos anunciaram que o sono se abatera sobre a imensa cabana, mas quatro olhos se mantinham fixos nas treliças da construção, porque não conseguiam apagar da lembrança as saudades do rio Orowo. Os olhos depois se cruzaram e puseram frente a frente Tawacã e Yepá e não foi preciso qualquer palavra ou sinal para eles saberem que tinham muito que conversar, por isso os dois se ergueram e a índia teve o cuidado de observar as filhas, mas estas dormiam tranqüilas, antes de seguir o guerreiro que se esgueirava entre tantas redes armadas, sem perturbar o sono de ninguém e abrindo o caminho seguro para a cunhada passar.
         Fora da oca, a noite se pintava com tantos pontos brilhantes que a lua não fazia falta alguma na iluminação do céu límpido dos tempos mais quentes da estação da vazante, sendo possível acompanhar toda a simetria das árvores na brancura das praias, com as areias refletindo tantas estrelas que punha em dúvida em qual lugar da terra estava o firmamento. Yepá caminhou com passos seguros, com os quais sempre se movia, fosse pelas frestas das selvas ou na tranqüilidade da aldeia, e Tawacã o seguia duas pisadas atrás, mas sem a fragilidades dos dias anteriores, porque tinha certeza de estar sendo conduzida até a cura definitiva das aflições.
         Chegaram até a beira do lago, enquanto atrás deles a aldeia dos guanavenas dormia protegida no isolamento da ilha e só então pararam e trocaram as primeiras palavras, mas estas foram logo postas de lado pelo furor com que seus corpos se uniram, selando o ato de amor que se anunciava entre eles desde quando se viram na aldeia do Maquará: ela grávida de Waiãpi e ele recém-chegado da primeira morte. Ficaram cobertos pela areia de tanto rolarem na praia, entrelaçados no desejo reprimido por tanto tempo a custa da doença de Tawacã, cujo remédio agora estava sendo dosado para alívio do espírito alquebrado de sofrimento e de recordações danosas, mas pronto a reviver das ruínas destruídas de suas lembranças.
         Repetiram o amor dentro da água tépida do lago, na mesma volúpia de quando se enterraram na areia e buscaram encontrar na ânsia a força de romper as barreiras postas entre os dois pelas circunstâncias adversas, que tanto retardaram a realização desse momento. No descanso foram até a areia e ficaram deitados no mormaço do chão contemplando as estrelas e identificando cada uma delas com um parente morto. Ambos miraram no mesmo instante em igual astro do céu, de luz vermelha cintilante, e embora no meio de incontáveis delas, identificaram-na como sendo a de Monawa, e desta vez não choraram, porque ficaram felizes ao descobrirem que o ente querido havia conquistado seu espaço no firmamento.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Capítulo 23 - Tocaia dos Mortos

          YEPÁ E TAWACÃ TESTEMUNHARAM A FÚRIA COMO OS MURAS VINGAM OS INIMIGOS, com vilipêndios dos corpos, por isso era impossível reconhecer quem fora quem entre os mortos da aldeia. Aqueles que não tiveram a cabeça arrancada e levada como troféus foram amputados, ou então estripados e amontoados no intuito de causar maior pavor entre os sobreviventes, para nunca esquecerem o que acontece àqueles que ousam desafiar o poder supremo dos índios do grande rio Amarelo. As cenas estarrecedoras desencorajavam até os determinados a enterrar os mortos, com medo de cometer o sacrilégio de acomodar no mesmo túmulo pedaços de corpos de inimigos.
         Os dois sobreviventes escolherem uma das inúmeras canoas abandonadas nas margens do rio e deixaram a aldeia Maquará ainda queimando sob o fogo dos muras, enquanto os urubus desciam das alturas para completar o serviço de carniceiros e espalhar ainda mais os restos dos caboquenas derrubados em combate. Havia poucos vestígios de mulheres e crianças, dando certeza aos dois índios que Matepi estava entre as prisioneiras, pois a prática de guerra dos povos da região era poupar apenas as mulheres, levadas e distribuídas aos mais valorosos guerreiros, e as crianças, criadas como se nascidas na tribo vitoriosa.
         Yepá seguia na proa, remando ao ritmo da correnteza favorável, enquanto Tawacã estava na popa, olhando as duas crianças acomodadas no convés da embarcação e ajudando o cunhado a dar impulso à canoa. Deixaram os arredores da aldeia sem trocar palavras, cada qual dentro de seus pensamentos, mas ambos ainda com as imagens nítidas nas lembranças como se estivessem caminhando entre os mortos. Waiãpi também estava envolta no transe dos adultos, enquanto a pequena Samcaxiki se mantinha avessa aos acontecimentos recentes, mas mesmo assim a tragédia não lhe passaria incólume. As pulsações do corpo da mãe, enquanto estavam caminhando na aldeia destruída, entraram em seu sangue e ficaram gravadas para sempre em seu espírito, embora os olhos não compreendessem o significado real de tanta matança.
         O caminho era envolto em silêncio e o menor alarido dos pássaros nas matas distantes era ouvido pelos navegantes, assim como o barulho dos remos em contato com água que ditava o ritmo da canoa. Yepá remava sem ímpeto de chegar a lugar algum, desejando apenas seguir viagem na direção da correnteza, deixando a embarcação ir em frente, na busca de qualquer destino ou na direção da morte, um lugar apropriado a quem testemunhara a destruição dos caboquenas. Tawacã também não pensava em nada. Sua cabeça estava ocupada demais em digerir as lembranças ainda recentes presenciadas pelos olhos.
         A realidade só retornou à embarcação quando Samcaxiki começou a soltar uns gemidos e foi engatinhando até o peito da mãe em busca do leite que lhe aplacaria a fome. O gesto da pequena serviu para trazer Tawacã e o tio ao mundo dos vivos, enquanto a irmã mais velha contemplava o rio Orowo com tanta intensidade que seus olhos penetravam nas águas escuras a ponto de ver os peixes se escondendo no lodo do fundo, como se a visão ganhasse o poder de enxergar muito além das aparências do mundo.
         Waiãpi pressentia a mudança radical da vida, embora sem compreender a extensão, apenas remoendo-se na certeza de ter perdido a aldeia onde nascera e vivera até então. Também se angustiava na mesma incerteza da mãe ao não ter encontrado o corpo de Monawa e acolher no peito a dúvida sobre se o pai morrera em combate, como um verdadeiro guerreiro caboquena, ou sucumbira à covardia de entregar-se vivo e ser levado como escravo à aldeia dos inimigos, onde a humilhação das surras, a vida presa ao cativeiro e a certeza da morte iminente, grelhado em noite de festa, tornaria o sangue dos descendentes menos honrado do que todos gostariam de ser.
         Era a figura de Monawa que atormentava os três índios conscientes do seu desaparecimento. Tawacã pensava nele como o homem que a raptou nas águas do Estreito e a fez esposa mesmo quando ele esteve prestes a sucumbir aos rigores da fuga nas entranhas do Marupá, ou então quando voltava das batalhas com os olhos tensos e os tremores noturnos que o faziam acordar na madrugada tentando se defender dos golpes dos inimigos, que continuavam fustigando-o mesmo muito tempo depois de terminada luta. A esposa queria vê-lo desempenhando bem o papel a ele destinado pela tradição dos caboquenas, mas agora, diante do destino indeterminado dele, ela só o via como o jovem guerreiro, ferido em combate nas muitas batalhas dos índios aliados, que um dia a agarrou pelos braços e suplicou-lhe a salvação, na cabana onde o pajé Nahpy tentava aplacar as dores dos combatentes derrubados no campo de luta.
         Yepá pensava em Monawa como o irmão caçula, sempre precisando de cuidado e atenção para não cair na água e se afogar, nos momentos quando a mãe dos dois os colocava no trapiche enquanto lavava a mandioca e extraia o veneno, deixando-a comestível. Ou então, já crianças maiores, sendo protegido contra as arrogâncias de curumins mais fortes e dispostos a conquistar pela força melhor posição na hierarquia do grupo infantil, e o pequeno Monawa precisava do apoio do irmão mais velho para não apanhar ou ser humilhado, fazendo Yepá entrar no confronto e por em ordem a situação do mais novo. Depois Monawa se acercava do irmão e fingia protege-lo com fanfarrice, contra meninos intimidados pela força alheia. O pequeno, quando aprendeu a nadar, quase se afogara nas correntezas do Orowo e fora salvo pela atenção providencial do maior, que mergulhou nas águas escuras, com o risco da própria vida e o resgatou já dos braços da morte.
         Diante de Waiãpi, Monawa aparecia envolto às lembranças do calor poderoso da pele do pai nas noites frias do Orowo, quando a umidade das chuvas torrenciais deixava tudo afogado no marasmo das redes entrelaçadas nas ocas. Neste momento, ele se transformou no pai zeloso, saindo para caçar e voltando com um catitu abatido em volta do pescoço, ou então quando desembarcava da canoa, depois de dias ausentes, com as enfiadas de sardinhas pescadas nos lagos escondidos pelos igapós do Puruzinho, sabendo ele trazer o peixe preferido da filha, e ela sentiu, neste momento, o sabor adocicado a recender-lhe na língua, espalhando-se pela boca e chegando ao nariz, fazendo com que a presença do pai se tornasse concreta a ponto vê-lo, muito nítido no espelho d’água, refletido pelo azul absoluto do céu nos fins de tardes.
         - Papai! Balbuciou Waiãpi, mas o som desta palavra ecoou por todos os cantos do mundo e por um momento a algazarra dos periquitos nas árvores das margens do Orowo silenciou como se da boca da filha de Monawa tivesse saído um trovão.
         Tawacã deu um salto em direção à filha mais velha, quase deixando cair na água a pequena Samcaxiki, que mirrava no seio. Ela segurou Waiãpi no colo e com apenas o olhar a interrogou sobre onde vira Monawa. A menina voltou os olhos à água, depois ergueu-os ao céu, também mirou as matas em volta e repetiu novamente a palavra papai, mas desta vez sem a dimensão espectral da primeira. A mãe abraçou a menina, sem deixar de dar de mamar à mais nova, mas seu corpo, no entanto, acariciava Waiãpi por sabê-la consciente da morte do pai, numa demonstração clara de que a pequena idade não interferia na grande maturidade adquirida nos poucos ciclos de águas já vividos.
         Remando na proa, Yepá se voltou espantado quando Waiãpi chamou pelo pai e assistiu Tawacã abraçada às duas crianças, enquanto nos rostos de todas só havia as expressões aflitas dos dramas anunciados a elas. O guerreiro viu o desespero da mãe diante da dúvida cruel sobre o futuro das crianças órfãs, sem o pai a protegê-las ou buscar comida, vivendo na custódia de outros pais na aldeia dos guanavenas que nem sequer tinha certeza de recebê-las. Yepá percebeu nos olhos de Tawacã as indagações que a atormentavam e decidiu neste momento não deixar a família do irmão sem amparo.
         - Eu assumo todas as obrigações de meu irmão, prometeu Yepá diante da cunhada e das sobrinhas, deixando a canoa deslizar suave na correnteza do Orowo, serpenteando as curvas do leito na vazante, enquanto no céu as últimas luzes do dia se despendiam deixando nas nuvens do horizonte uma coloração avermelhada.
         Antes do cair da noite, os quatro desembarcaram numa praia a fim de esperar o novo dia e descansar dos infortúnios vividos até agora, pois passaram por todas as provações mais cruentas impostas a alguém. Quem viu o que eles viram não esqueceria jamais, mesmo se tivessem os olhos arrancados ou o peito sem o coração. Yepá armou a cabana improvisada sem anúncios de chuvas e acendeu a fogueira com madeira colhida nas proximidades, que ardeu rápido devido à secura dos galhos e folhas e sem muito esforço, quando esfregou gravetos e produziur a chama. O fogo estava sendo mantido baixo pelo guerreiro, preocupado com a possibilidade de os muras estarem excursionando por perto, mas Tawacã o fez largar dos receios e pediu que ele jogasse mais lenha na fogueira.
         - Faça uma fogueira bem grande, meu cunhado! disse Tawacã. Porque quero esta praia tão iluminada como se fosse dia.
         - Os muras podem estar perto e seriam atraídos até aqui pela luminosidade, questionou o bravo.
         - Não tenho medo de mura nenhum, respondeu a índia determinada após ver toda a aldeia dos caboquenas destruída e os parentes mortos.
         O cunhado atendeu ao pedido de Tawacã e foi catar mais galhos, caminhando na praia, pouco iluminada pelas luzes tênues da fogueira e as do início da noite. Depois depositou a madeira em cima do fogo e esta logo crepitou, aumentando a intensidade das labaredas e deixando na escuridão um pedaço de sol. O aumento do fogo impeliu Yepá na busca de mais combustível, porque se Tawacã a queria grande, ele a faria imensa. O guerreiro trazia toras erguidas sobre a cabeça, com os braços alevantados, e as jogava com intrépido na pira, fazendo subir as faíscas muito acima das árvores e permitindo às labaredas incendiar o local com luminosidade delatora.
         As crianças olhavam sentadas no colo da mãe ao crescimento do fogo, tendo a pequena Samcaxiki achado graça diante da pirotecnia das fagulhas ganhando os céus e do estalar da madeira se partindo no calor das chamas. Waiãpi mantinha a expressão profunda, porque também no bruxulear das luzes continuava vendo a figura de Monawa, agora mais presente em espírito do que fora em carne, como se a falta do corpo do pai servisse para torná-lo maior, com a lembrança reverberando em todos os lugares. Yepá se entretinha na busca frenética por madeira, enquanto Tawacã continuava pensando na cruel possibilidade do marido estar sendo agora assado na aldeia dos muras.
         Mesmo sem ter o que comer nesta noite, ninguém se afligiu pela fome e apenas Samcaxiki encontrou disposição de se alimentar, permanecendo agarrada à mãe e mamando nos seios fartos, enquanto a irmã mais velha buscava o conforto das palhas entrelaçadas na areia para esquecer por algum momento as cenas assustadoras vistas nesta manhã. Quando estava com o corpo encharcado de suor, tanto pelo esforço descomunal de acender a maior fogueira do mundo, quanto pelo calor dela emanado, Yepá se banhou nas águas do rio, mas mesmo ali seu rosto ardia, como se a pele estivesse também em brasa, nas mesmas condições dos galhos jogados nas chamas. A índia o chamou para perto da cabana, onde o calor o faria secar rapidamente, mas esta medida se mostrou desnecessária, pois o guerreiro já saiu das águas do Orowo totalmente enxuto.
         Passaram a noite em sobressaltos, com a filha maior acordando todo momento, sem soltar gemidos, apenas se contorcendo em espasmos, como se os corpos dilacerados dos mortos a tivessem chamando para uma longa viagem, mas na realidade Waiãpi estava sonhando com o pai, nadando os dois em um lago de águas escuras. A filha caçula também acordou muitas vezes durante a madrugada, mas Tawacã a entretinha com o peito e a fazia dormir. Já os dois adultos não conseguiam adormecer porque, sempre que fechavam os olhos, as imagens dos cadáveres destroçados chegavam para atormentar-lhes o sono.
         Antes das primeiras luzes do amanhecer, as chamas ainda se erguiam muito acima da altura de Yepá e ele se pôs de pé, ansioso pelo o raiar do sol. O guerreiro queria prosseguir na viagem até a ilha Saracá. Como sempre fazia, se dirigiu às margens e se banhou nas águas tépidas do rio Orowo, buscando refazer-se das forças perdidas na luta para manter acesa a fogueira imensa. Depois foi até as franjas da mata catar algo de comer e encontrou um cajueiro carregado com frutas maduras e as colheu em abundância, levando-as para a primeira refeição de sua nova família.
         Quando retornou à cabana encontrou Tawacã se banhando com as crianças no rio e sentiu pela primeira vez a responsabilidade de dar de comer a bocas que não eram a sua, pois sempre vivera na solidão, seja perdido na imensidão das matas ou nas caçadas por territórios estranhos, sem jamais se prender em um único lugar. O bravo sempre fora independente e obstinado, aprendera a sobreviver sozinho em longas viagens por terras distantes, buscando a amizade de povos desconhecidos e conquistando a confiança de quem o acompanhasse, mas agora estava incumbido de assumir o posto do irmão como provedor da família e logo na primeira oportunidade trazia cajus deliciosos, com os quais sustentaria a cunhada e as sobrinhas.
         Elas comeram com aptidão, embora os olhos guardassem a tristeza do dia anterior, mas precisavam se alimentar, principalmente Tawacã, que amamentava a pequena Samcaxiki e esta estava alheia às dores dos parentes. Waiãpi comeu a primeira fruta, vermelha pelo sol, e ficou brincando com a semente, arrastando-a na areia como uma canoa singrando as águas do Orowo e seus pensamentos se transportaram para bem distante, até a fome acusar e ela pegar outra fruta na casca de pau que servia de paneiro. Comeu esta também e ficou com as duas sementes na mão, pensando longe, em terras onde nunca pisara, mas ouvira o pai contar quando retornava à aldeia depois de dias ausente.
         Após esta refeição, Yepá preparou a canoa para a partida, pois pretendia chegar à ilha Saracá no meio da tarde, quando os ventos não estavam mais atormentando a boca do rio no encontro com o lago Canaçari e dificultando a viagem de quem pretendia aportar pelos lados do Estreito. Seria uma viagem fácil nas primeiras horas da manhã, mas quando o sol atingisse o centro do céu os ventos jogariam os banzeiros contra a canoa em açoites de águas perigosas, e a embarcação sob comando inepto corria o risco de naufragar. Yepá estava preocupado, pois se acostumara a ludibriar as intempéries do Orowo por caminhos protegidos entre os igapós, mas a vazante não lhe dava esta opção de rota e só lhe restava seguir no meio do rio estreito, exposto aos ventos do Canaçari, nesta época varrendo adoidados a superfície das águas.
         Partiram em navegação suave, com Yepá na proa e Tawacã na popa, mas agora os dois remando em ritmo constante, com disposição de chegar na ilha Saracá, levando a notícia que transformaria toda a sociedade das tribos aliadas. Uma tribo inteira estava dizimada e isto estabelecia nova ordem de poder, com medidas a serem tomadas de urgência pelos bravos. A guerra se alastraria pela região, com os muras tentando levar a vingança às outras aldeias, e guanavenas e bararurus dispostos a revidar o sangue derramado dos caboquenas. Sem se dar conta de estarem pensando os mesmos pensamentos, os remadores aceleraram o ritmo, impulsionados pela necessidade de saber se a horda dos muras talvez já não tivesse chegado à ilha Saracá.
         A tensão aumentava conforme se aproximavam e Tawacã deixou cair uma lágrima quando sua terra se mostrou por fim de vislumbre na curva do rio. A índia a avistou primeiro que Yepá porque estava num plano mais elevado da embarcação, mas o índio sentiu a mudança de ritmo das remadas da cunhada e se virou para observar, vendo no rosto dela um sorriso estranho, como se grande alegria quisesse saltar do espírito, mas os grilhões da tristeza a mantivessem aprisionada nas entranhas do corpo. Num reflexo rápido, Tawacã passou as mãos no rosto, no entanto, o gesto foi inútil: a cara estava lavada das águas do Orowo atiradas pelo vento.
         O sol passara às costas dos navegantes quando a ilha se mostrou inteira e a visão imponente dos barrancos, cobertos de verdes diversos das matas, foi um alívio a Tawacã e a família, tanto pelo fato de se sentirem no final da viagem, quanto por não estarem os urubus sobrevoando os céus da ilha. Yepá seguiu rápido ao contorno do Estreito, procurando melhor meio de vencer as correntezas e se manter protegido pela terra, mas antes teve de se desviar de um amontoado de pedras mostradas na grande vazante desse ciclo de águas. A cunhada já ouvira o pai falar sobre essas estranhas formações, que apareciam somente quando a seca era intensa, e não quis perder a oportunidade de observá-las de perto, pois em toda a vida, esta era a primeira vez que o fenômeno acontecia.
         O guerreiro aproximou-se com cautela das rochas, receioso da possibilidade de feras estarem descansando no dorso, principalmente jacarés em busca de refúgio contra o sol da estação, mas a canoa logo deixou de encontrar calado e parou de navegar, presa às pedras do fundo raso. Yepá desembarcou cuidadoso, mas Tawacã pôs os pés no rochedo com grande segurança, como pássaro acostumado a empoleirar-se nas alturas, ansiosa por confirmar a história ouvida de Nahpy: que ali estavam desenhados sinais de um povo antigos e que a pegada do último homem dessa raça estava encravada na pedra.
         A índia testemunhou deslumbrada a verdade contada pelo pai ao encontrar rabiscos na parede lisa da pedra, mas não soube explicar o significado daquilo, embora estivessem em tal ordem que poderiam ser reproduzidos e levados dali a outros lugares e outros povos. Também achou a pegada escondida em outra ponta de pedra, e pôs os próprios pés no lugar para tomar-lhe a medida e soube que o dono da pisada era um grande guerreiro, pois ficou com as duas pernas assentadas com folga no espaço onde estava marcado apenas o calcanhar do homem. As crianças ficaram na canoa, observadas de perto por Yepá, mas Tawacã fez questão de mostrar os sinais às filhas, atraindo assim a curiosidade do índio, e este se dispôs, mesmo contra sua vontade, a ver sem o mesmo espanto aquilo que a cunhada olhava com tanto assombro.
         O sol iniciava o caminho rumo ao poente quando, por fim, Tawacã foi convencida a deixar as pedras e seguir viagem até a ilha, onde já deveriam chegar na boca da noite, devido ao atraso imposto pela vontade da índia em explorar o rochedo, tão raramente mostrado à curiosidade das gentes. Antes de sair, ainda impôs a condição ao cunhado de voltar o mais rápido possível ao local antes da enchente encobri-lo e exibi-lo sabe-se lá quando. Yepá concordou somente para não retardar ainda mais a viagem, até porque nada ali despertara seu interesse, uma vez que já vira coisa semelhante, mas sem o mesmo fascínio imposto à índia, pelas muitas andanças nas brenhas das florestas.
         Para ganhar tempo, pararam na comunidade do Estreito, onde Tawacã tinha alguns parentes, avisaram sobre o ataque fulminante dos muras à aldeia dos caboquenas e do iminente confronto desses índios com a tribo dos guanavenas. O restante da história eles contaram enquanto passavam ao largo do canal, dizendo através de gesto para terem cuidado porque os inimigos poderiam tentar a desforra a qualquer momento.
         Nos primeiros nuances da noite aportaram na praia em frente à aldeia de sua gente e Tawacã desembarcou muito antes da canoa encostar na areia. Ela saltou na água e afundou até a cintura, correndo em seguida, pois sua vontade de contar o massacre não permitiu à paciência o controle das emoções. As filhas também pularam no colo da mãe e se agarraram como puderam nos ombros e nos cabelos da índia, mas ela sequer sentiu o peso extra e continuou empurrando a embarcação o mais rápido possível até a beira, sendo ajudada agora por muitos curumins que brincavam na praia e vieram socorrê-la, transformando aflição em alvoroço e deixando Tawacã seguir célere, com as duas filhas no colo e sem marido, à aldeia dos guanavenas.
         Não precisou despender grande esforço, pois Byrytyty a viu de longe e veio ao encontro correndo, pegou Waiãpi no colo e, neste momento, a irmã mais velha percebeu o quanto o caçula estava crescido, parecia um gigante carregando a sobrinha nos ombros, enquanto o resto da meninada pulava ao seu redor, tentando pegar nos pés da criança, mas sem conseguir alcançá-los devido à altura onde estavam. As percepções do jovem guerreiro, recém saído do ritual de passagem à vida adulta, ainda não estavam aguçadas a ponto de fazê-lo perceber algo estranho no caminhar perturbado da irmã, por isso continuou caminhando alegremente com a criança no colo, mas não passou despercebido por Aiauara, que conversava um pouco mais adiante com outros bravos e foi avisado por um deles da aproximação da irmã.
         Aiauara se virou como felino e foi ao encontro de Tawacã, acelerando o passo quanto mais próximo ficava dela, tanto que já estava correndo veloz no momento quando chegou junto da irmã e tomou Samcaxiki nos braços, no instante exato em que ela desmaiava na areia. Só neste momento Byrytyty percebeu o estado aflitivo de Tawacã e soltou Waiãpi para socorrê-la. Ele a pegou nos braços e a ergueu sem dificuldade com sua força imensa. Tawacã desapareceu no colo como se fosse outra criança, igual a que ele brincava instantes atrás, com a mesma criançada correndo a sua volta. Yepá foi atrás, mas Byrytyty estava muitos passos a frente para ser ultrapassado, restando ao cunhado apenas carregar Waiãpi no colo, pois a menina fora abandonada na praia quando se instalou o alvoroço. No entanto, chegaram todos ao mesmo tempo na cabana onde estavam Xirminja e Nahpy, e o pajé só pensou no pior ao ver os filhos se aproximando, mas faltando entre eles Matepi.
         - Cadê Matepi? quis saber Nahpy.
         - Onde está a minha filha? gritava Xirminja.
         Todos se viraram em direção a Yepá e o caboquena ia começar a falar quando Tawacã despertou do assombro e balbuciou algumas palavras, arrastando a atenção de todos a ela como se dela dependesse a revelação da verdade do mundo. Byrytyty entregou a irmã ao pai e Nahpy a acomodou na rede próxima, ordenando à multidão de curiosos para se afastar porque Tawacã precisava respirar ar com intensidade. Depois colocou uma folha de capeba em sua fronte, aplicou óleo em volta das narinas e o olor forte do ungüento ajudou a índia a despertar, mas ainda num estado de torpor que de nada adiantava o pai perguntar insistentemente por Matepi.
         Aos poucos Tawacã foi retornando ao mundo e ao perceber-se em volta da família ganhou confiança suficiente e, em fim, caiu no choro dolorido, contando a todos os detalhes da tragédia ocorrida na aldeia Maquará, onde vivera tanto tempo como esposa de Monawa, entre os parentes deles e as filhas nascidas e criadas como caboquenas. Ela falou em prantos da sorte da irmã caçula, provavelmente aprisionada pelos muras, ainda doente pelo parto difícil e abalada com a morte da criança. Falava e mais lágrimas escorriam do rosto, lavando a cara maltratada por tantos dias de viagens sob o sol causticante da vazante feroz, quando nenhuma árvore pode socorrer com sombra aos navegantes. Contou os momentos terríveis quando caminhou entre muitos cadáveres, despedaçados e decompostos, e teve de enxotar os urubus para deixarem tranqüilos aos mortos, numa narrativa macabra que as palavras confundiam aos muitos ouvintes em torno da oca e eles se perguntavam se Tawacã estava falando sobre fatos ou se simplesmente contava um pesadelo.
         A índia revelou tudo aos guanavenas e estes ficaram a noite inteira escutando a história da vingança mura contra os caboquenas, com os detalhes entrecortados de soluços e pelo choro compulsivo da testemunha. Ela iniciava a narrativa e muitas vezes teve de ser amparada pelos pais devido aos desmaios freqüentes, quando precisava contar os cenários mais medonhos, ou explicar em detalhes como se encontravam os corpos, chegando a lhe faltar ar quando disse ter identificado o cadáver de Meyki, sem a cabeça. Depois retornava à consciência, recebia afagos dos parentes e soltava o choro largo, gritando desesperada pelo marido desaparecido e pela sorte das filhas pequenas, mesmo depois de Yepá ter se comprometido em assumir o lugar deixado vago pelo irmão.
         O dia começou a clarear e a tribo continuava reunida em torno de Tawacã, agora dormindo sono de pedra, mas era como se estivesse caminhando de ilha em ilha, porque da mesma forma como adormecia, acordava aos prantos, atraindo todos ao seu redor, curiosos em ouvir ela contar a destruição dos caboquenas, explicando que a aldeia fora toda incendiada, que em frente da grande oca das famílias, crianças e mulheres tombaram diante da fúria dos inimigos, que as plantações de mandiocas foram arrancadas pela raiz para nunca mais nascer um roçado na terra arrasada pelos muras e que no céu a escuridão se tornou perpétua, tanto pelos urubus quanto pela desgraça lançado contra a aldeia Maquará.
         Depois voltava a dormir, se refugiando das angústias na placidez dos braços paternos embalando o sono, mas os soluços entrecortavam a calma e os espasmos de corpo denunciavam mais tormentos. As febres assolavam a paz de Tawacã assim como as tempestades do Canaçari se batiam nas costas da Demanda, e iam minando a determinação da índia de continuar vivendo. Ela soltava gritos desesperados, ecoando por toda a ilha Saracá, e virava a cabeça com violência, talvez querendo exorcizar os maus espíritos que a perseguiam. Em seguida vieram as convulsões e o vômito, aquoso pela falta de alimento sólido. Depois o desmaio, do qual só seria resgatada muitos dias após, com Nahpy usando todo os conhecimentos na tentativa de salvar a filha amada.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Capítulo 22 - Tocaia dos Mortos

         PASSARAM TRÊS FASES DA LUA DEPOIS DA CHEGADA DE YEPÁ À ALDEIA DOS CABOQUENAS e um grupo de guerreiros mundurucus e saterês chegou trazendo a proposta dos maiorais a Meyki. Nesta época, Yepá já não se encontrava mais no meio de sua gente. Ele pedira ao cacique caboquena para integrar a tropa aquartelada na ilha Saracá, protegendo o local da provável incursão punitiva por parte dos muras. Foi um pedido impossível de recusar e então o bravo de tantas aventuras foi mandado à aldeia dos guanavenas, encomendado por Meyki a Taobara de nunca fazer parte do primeiro grupo a responder aos ataques dos inimigos. Ele deveria compor a tropa da retaguarda, devido conhecer bem os meios de sobrevivência na selva e sua sabedoria era imprescindível nos momentos de paz.
         Yepá conheceu seu verdadeiro inimigo: era Meyki, o cacique de sua tribo que desposara a mulher a quem pretendia tomar como esposa, depois de arriscar a vida numa viagem de perigos e horrores e mostrar lealdade ao maioral. Ele vivia em conflito e os devaneios levavam-no a atitudes contraditórias com Meyki, ainda merecedor de respeito, mas ao mesmo tempo acalentava o desejo matá-lo. Desta forma poderia se apoderar de Matepi, a esposo do cacique, vingando o ódio reprimido por ele o ter mandado ir tão longe e depois arrebatado a mulher de sua vida.
         “Aquele desgraçado vai pagar esta ofensa”, costumava refletir Yepá, enquanto acariciava sua ira sentado embaixo das acapuraneiras na praia da ilha Saracá, vigiando o horizonte em busca da aproximação do inimigo que não vinha nunca. O caboquena não tirava da cabeça a visão de Matepi com o ventre arredondado, no momento de sua chegada, depois de atravessar o mundo com a resposta ao recado de Meyki e descobrir que ela estava casada com seu cacique, tendo este desposado também a prima Mauri, enquanto ele era apenas uma peça removível na estratégia de guerra dos maiorais.
         O caboquena decidiu lutar por Matepi e concluiu que o melhor aliado nesta empreita seria Nahpy, o pai e também o pajé influente cujos conhecimentos transpassavam os limites das terras dos guanavenas e eram motivos de respeito por todos os índios do Canaçari. Yepá aproveitava-se do fato de ser irmão de Monawa e participava da família de Nahpy, tornando-se amigo de Aiauara, com quem dividia as experiências em caçadas e pescarias nos momentos quando eles eram dispensados dos postos de vigias. Suas histórias narradas nas noites, em volta da fogueira, também ajudavam a conquistar a admiração dos outros índios, ficando assim na situação de dividir com o pajé as atenções dos ouvintes.
         Mesmo com tantas atividades envolvendo a vida do guerreiro caboquena, seus pensamentos não se desprendiam das lembranças de Matepi, quando a vira ser levada até a casa das mulheres e enfeitada com as pétalas vermelhas colhidas por ele nas matas mais longínquas, que lhe dera quase a certeza de compromisso matrimonial. Yepá comentou com Aiauara seus tormentos, mas este já estava bastante escolado pelos sofrimentos do primo Pajuari, quando este teve os mesmo sentimentos voltados a Tawacã.
         - Eu não me envolvo nestas questões, respondeu simplesmente Aiauara, desconversando o amigo caboquena quando dividiam uns momentos de pescarias.
         Yepá pensou em conversar com Nahpy, mas logo compreendeu que o matrimônio entre Matepi e Meyki só se realizou com o consentimento do pajé e seria muito difícil conquistar a boa vontade dele à sua causa. O caboquena estava se envolvendo em uma situação difícil porque seus amigos não ousavam tomar parte em seus pleitos, ainda mais quando os fatos se deram em função de acordos entre os maiorais das duas tribos.
         No entanto, uma notícia mal confirmada, das terras do Orowo, incendiou no coração de Yepá nova disposição de lutar por seu amor: o filho de Matepi havia nascido, mas morrera após alguns dias. O caboquena viu neste fato a certeza de os ancestrais estarem atuando a seu favor, uma vez que a esposa de Meyki não pudera dar um herdeiro ao cacique e este deveria rejeitá-la e procurar outra mulher com a qual geraria filhos. A notícia despertou tristeza na aldeia guanavena, mas carecia de confirmação, pois chegara pelo viés das conversas de alguns pescadores que a tinha ouvido de caçadores vindos das terras do Marupá, onde a boataria de todos os povos se encontrava.
         Yepá logo se prontificou em confirmar a notícia indo até a aldeia Maquará. Seria uma viagem tortuosa pelo leito do rio seco, mas o guerreiro já enfrentara aventuras muito mais difíceis e sempre se mostrara capaz de vencer terríveis obstáculos, por isso, dois dias depois de ter chegado à aldeia dos guanavenas, o boato levou o caboquena a embarcar numa pequena canoa, diante das primeiras luzes da manhã, e tomar o rumo do Sanabani, contornando a ilha pelo canal do Estreito, nesta época apenas um filete de água no qual se exigia experiência nas remadas e força para suplantar as correntes bravias.
         Mas o guerreiro não encontrou dificuldades em vencer este desafio e logo já estava por trás da ilha, remando ligeiro e aproveitando o vento a favor que soprava do Canaçari e enchia de banzeiros a foz do rio dos caboquenas. O sol estava no alto quando Yepá se encontrou nas margens do igarapé Preto, de onde já se podia sentir o rufar dos ares soprando da aldeia principal de seu povo, mas o cheiro não trouxe bons augúrios ao destemido guerreiro. Ele sentiu a primeira lufada de vento e reconheceu o horrível cheiro de sangue fresco. O pressentimento impulsionou ainda mais a canoa de Yepá e ele foi vencendo cada curva do rio com a disposição de chegar ao seu destino antes da noite se impor sobre o mundo.
         O estreitamento do rio devido à vazante diminuía o campo de visão do caboquena e este, sentado na proa da canoa, concentrado nas remadas, mal conseguia vislumbrar o horizonte à frente, por isso o espanto quando, ao vencer nova curva, quase faz sua embarcação abalroar outra vinda em direção contrária e com tanta pressa quanto a dele. O caboquena de imediato reconheceu as passageiras da canoa: eram Tawacã, também remando na proa, enquanto sentada no meio do convés vinha Waiãpi, carregando nos braços a irmã pequena Samcaxiki. Por cima de ambas, uma cobertura improvisada com folhas de palmeiras abrigava-as do sol inclemente.
         - Para onde tu vais assim com tanta pressa, meu parente? quis saber Tawacã, ainda assustada com o impacto do encontro.
         - Vou confirmar a notícia de que o filho de tua irmã Matepi nasceu, mas morreu em seguida, respondeu o cunhado.
         - Não precisas perder tempo com a viagem, eu mesma posso te confirmar, disse Tawacã, franzindo a face preocupada. É verdade, sim.
         Yepá recebeu a notícia com júbilo, mas não deixou transparecer essa felicidade à cunhada diante do fato consumado, ainda mais sabendo que Tawacã não enfrentaria uma viagem carregada de transtorno, com o leito do rio seco e difícil de navegar, na época de sol mais intenso, com as duas filhas sozinhas, se não houvesse outro motivo mais urgente para merecer tamanho sacrifício. Ele também pôs no rosto uma expressão de gravidade e questionou a cunhada sobre o restante da notícia, pois tudo indicava que a mesma não se encerrava apenas no filho morto de Matepi.
         - Também estou indo buscar ajuda do meu pai para fazer um remédio que salve a vida de minha irmã, disse Tawacã, resfolegando, e já soluçando quando acrescentou que Matepi ficou muito doente depois do parto mal sucedido.
         O resto da notícia entorpeceu o caboquena com a possibilidade de não mais encontrar com vida a mulher pela qual passara os últimos dias articulando planos de tê-la com ele. Lembrou-se rapidamente de quando remava solitário nas águas do rio Mawé, enquanto cumpria sua missão, mas em cujo pensamento só cabia a lembrança de Matepi. Também pensou nas longas estadias na selva e onde mesmo assim não esquecia da índia que enfeitara a cabeça tosada de orquídeas vermelhas. E viu toda sua vida, desde quando conhecera a jovem irmã da cunhada até agora, passar em pensamento, mostrando-lhe ser preciso chegar o mais rápido possível na aldeia dos caboquenas e ver ainda com vida a mulher por quem dedicava seu espírito.
         Do ponto onde as duas canoas se encontraram estava mais próximo de chegar à aldeia dos caboquenas, embora Tawacã tenha partido também quase no mesmo momento em que Yepá deixara a ilha Saracá. Mas a índia remava contra o vento e trazia as duas filhas pequenas a bordo e os cuidados maternais atrasaram a velocidade. Já o caboquena remava pensando apenas em pisar novamente na areia do Maquará e rever Matepi, mesmo sabendo que toda a cautela seria necessária para não despertar em Meyki nenhuma ponta de desconfiança sobre seus sentimentos. Já Tawacã não precisou usar seus dotes de xamã para descobrir no interesse do cunhado algo além da simples vontade em confirmar uma notícia que não lhe dizia respeito.
         - Matepi pode morrer, mas mesmo assim continua sendo esposa do cacique de tua tribo, alertou Tawacã a Yepá, mas este não ousou entender o comentário da cunhada, preferindo se esgueirar em outras palavras, até chegar ao ponto onde pretendia se pôr diante da esposa do irmão.
         - Vamos retornar juntos até a aldeia Maquará e nós dois podemos salvar tua irmã, propôs Yepá.
         Era verdade. A filha do pajé Nahpy sabia muito bem os segredos das artes xamânicas e podia, com a ajuda de Yepá, conhecedor das ervas, preparar qualquer remédio e curar Matepi da doença. Fariam a junção das experiências de ambos, o complemento da cultura dos guanavenas, desenvolvida pelas mãos e sabedoria de Nahpy, com a dos caboquenas, em cuja multiplicação das descobertas de Yepá repousava a prática das curas impossíveis. Tawacã era reticente quanto à ajuda do pai no tratamento da irmã, mas os convencimentos do cunhado levaram-na a refletir sobre o restante da viagem até a ilha Saracá, de pelo menos um dia e, depois, ainda seria necessário mais tempo com os preparativos do pajé para empreender a viagem de volta, retardando o início dos trabalhos de cura de Matepi em mais ou menos três dias e três noites.
         Se Tawacã fizesse meia-volta, a partir do local onde estava, no mais tardar, no início da manhã, chegaria à aldeia Maquará e, mesmo sem contar com a ajuda providencial de Nahpy, poderia se amparar na experiência e na boa vontade do caboquena. Ele demonstrava disposição em ajudar e continuava tentando convencer a cunhada da melhor opção para Matepi. Yepá pedia insistentemente que a cunhada o acompanhasse até sua aldeia, chegando a amarrar a canoa de Tawacã na sua, com o fiel propósito de impulsionar ambas as embarcações com a força dos braços.
         - Tu te lembras quando eu recomendei sementes de guaraná para a realização de um bom parto, argumentou Yepá, fazendo Tawacã recordar da manhã distante quando o cunhado saiu em busca de ajuda dos povos contatados por ele em sua peregrinação pelas selvas e rios remotos. Eu conheço os segredos da selva e aprendi muito convivendo com teu pai, concluiu o guerreiro caboquena.
         Tawacã decidiu voltar à aldeia Maquará, agora acompanhada do cunhado, remando com toda força as duas canoas e mesmo assim vencendo com tranqüilidade a correnteza afoita do rio na vazante. Com a experiência de longas remadas, Yepá avançava a frota sob sua responsabilidade, levando a cunhada e as duas sobrinhas, protegidas ainda mais com as folhas de palmeiras por causa do sol se deitando na direção de onde apontavam seus rostos.
         No afã de convencer Tawacã a seguir-lhe, Yepá calculou mal o tempo da viagem até a aldeia dos parentes e o sol se pôs no horizonte ainda faltando muitas remadas até as embarcações chegarem ao destino. O cansaço por fim venceu o valente guerreiro e ele foi afrouxando o remo, diminuindo a velocidade de deslocamento, reduzindo o avanço sobre águas contrárias, até seus braços não conseguirem mais impulsionar as canoas e permitindo à correnteza desfazer sem tréguas o esforço empreendido pelo índio. Tawacã percebeu que não adiantava mais continuar a viagem, agora sob a escuridão impenetrável do leito do rio e do firmamento acima deles. Neste momento, só as estrelas demonstrarem alguma vitalidade depois de um dia inteiro enfrentando o sol abrasivo e as águas tortuosas da vazante.
         Os viajantes encontraram uma praia onde puderam descansar e nela Yepá acendeu a fogueira, usada tanto para esquentar o peixe moqueado da refeição esquecida, como também protegê-los do ataque de feras e animais peçonhentos e iluminar o ambiente onde passariam a noite. O bravo armou uma pequena cabana com folhas de buritizeiros no teto e no piso e lá se abrigou com a família de Tawacã, depois de todos comerem o peixe com bolo de mandioca da dispensa da índia diligente. A mãe ainda amamentou as duas crianças, provando sua natureza saudável ao alimentar com o peito a prole de Monawa. Este gesto despertou no guerreiro o carinho especial pela cunhada, aumentando o afeto já dispensado a ela.
         No silêncio da noite, dormindo ao lado de Tawacã e das sobrinhas, o guerreiro caboquena saltava gemidos de dor causados pelos espasmos dos músculos dos braços, depois da longa viagem sem fim, na qual passara todo o dia tentando vencer as condições adversas da aventura. A índia acordou espantada e logo procurou às filhas, mas estas dormiam embaladas pelos próprios cansaços e pela brisa noturna que soprava como alento nas margens do Orowo, deixando o calor insuportável do dia claro se tornar lembrança ardente na pele queimada pelo sol. Tawacã ouviu os gemidos do cunhado e percebeu a origem de suas dores, pensando logo no modo de aliviar-lhe o sofrimento, ainda mais quando na manhã seguinte novas provações seriam destinadas a ele.
         Tawacã buscou em seu alforje a pequena cabaça, muito bem fechada com tampa de rolha de buriti e, dentro dela, o ungüento que traria alívio aos braços do guerreiro caboquena, que se deixou dormir profundamente enquanto os dedos ágeis e treinados da cunhada faziam massagens nos músculos, reativando o sangue estagnado pelo esforço brutal da viagem. Yepá se virou de lado e a índia aplicou-lhe melhor o curativo, depois buscou nova posição, deixando exposto o outro braço aos cuidados de experiente xamã, também se pôs de costas no chão e os músculos bem desenhados de seu peito largo afloraram com a luminosidade da fogueira e o brilho natural do óleo. Tawacã passava a mão suavemente no peito queimado do cunhado, deixando cair gotas sobre o mamilo dele e transportando-o ao sonho dos tempos quando foi prisioneiro das mulheres guerreiras e era preparado todas as noites para servir de escravo a Mauara, a maioral dessa tribo.
         Os movimentos das mãos de Tawacã se tornaram cada vez mais delicados, enquanto buscava os músculos retesados de Yepá, levando-o alívio, derramando ungüento também nos ombros, depois na barriga, ao longo das pernas, dobrando sem esforço o guerreiro para ele ficar de bruços e aplicar-lhe o remédio também nas costas, entre as costelas, até o corpo todo do cunhado estar lambuzado com o conteúdo da cabaça, jogada depois no interior do alforje. Tawacã ficou com as mãos e os dedos oleosos e foi lavá-los nas águas do Orowo, enquanto seu peito arfava mais do que se ela própria tivesse atravessado inúmeras vezes os caminhos mais distantes, da mesma forma como encontrara Yepá na viagem louca para confirmar a notícia da morte do filho de Matepi.
         A índia estava na beira do rio, que corria apressado pelo emaranhado do leito e esvaindo-se aos poucos devido ao adiantado da vazante. A água estava tépida nas margens e Tawacã apenas adentrou no rio o suficiente até molhar os tornozelos, mas mesmo a essa profundidade pode sentir a camada gelada do fundo. A temperatura da água causou-lhe arrepios pelo corpo e deixou nela uma sensação de medo. O ar também estava limpo, mas o diáfano cheiro de sangue nauseava a respiração e Tawacã pensou estar sentindo os efeitos da viagem do dia anterior, quando ouviu estranhos gemidos e não distinguiu a direção de onde vinham.
         Ela então aguçou os sentidos, tentando captar os movimentos da noite e, a princípio, ouviu apenas o bater do banzeiro tímido nas margens, depois um silvo de fera rasgou a escuridão, acompanhado pelo bater de asas graúdas e o farfalhar nas copas elevadas, mas Tawacã concluiu ter sido uma coruja caçando lagartos no alto das árvores. Depois o silêncio assustador se impôs na madrugada até a índia ouvir nitidamente os sons de agonia vindos do meio do rio, que a fez dar um pulo tão espantado que de imediato chegou na praia. A índia perscrutou toda a superfície da água, mas não viu nada se movimentando a não ser a correnteza do rio. Depois deu alguns passos na areia até atingir posição mais elevada, onde poderia observar melhor o horizonte, e mesmo assim não enxergou nada parecido com um afogado. Então seu coração disparou diante do mau pressentimento de estar sendo enfeitiçada e saiu correndo até a cabana onde dormia Yepá e as crianças.
         Tawacã estava realmente assustada, mas foi só deitar ao lado de Waiãpi e Samcaxiki e recobrou novamente a certeza das razões. A visão de Yepá dormindo o sono de pedra a fez sentir-se mais aliviada dos terrores acometidos na margem do rio. A índia em seguida dominou os apuros do coração, procurando relaxar na noite para enfrentar a dureza do restante da viagem até a aldeia dos caboquenas, uma longa jornada rio acima enfrentando a correnteza de descida e o sol de brasa na retaguarda. Ela logo recobrou o sono, virou-se para o lado onde estava Yepá e adormeceu embalada pela respiração melódica do guerreiro.
         Os sons da noite perderam espaço quando a cantoria dos pássaros anunciou a apoteose da aproximação do sol, o deus Paharamim, e iluminou o mundo de novo ao conforto dos necessitados de sua luz, como era o caso do Yepá, Tawacã e as duas filhas, sobrando ainda aos adultos a obrigação de remar quase até o sol a pino, sem as árvores dos igapós a proteger-lhes do calor, embora empurrados pelas rajadas fortes do vento do Canaçari. Antes do sol surgir no horizonte, Yepá se pôs de pé e foi colocar mais lenha na fogueira, onde assou a primeira refeição do dia. Tawacã permaneceu deitada sobre a cama de palha, aproveitando o frio do amanhecer, e colou o corpo contra os das crianças, aquecendo-as com o calor impetuoso que a afligira durante toda a noite.
         Yepá colocou os peixes na grelha de gravetos, esperando aquecer um dos lados e, em seguindo, virou-os com os dedos, num movimento rápido e preciso, como se não tivesse passado toda a vida repetindo o gesto nas solidões de suas viagens. Esperou também o beiju de mandioca ficar assado e só então chamou a cunhada para se alimentar e dar de comer às duas filhas. Tawacã repetiu o gesto de primeiro deixar mamar Samcaxiki, enquanto com a outra mão amassava a pasta de peixe e mandioca e dava a Waiãpi o bolo na boca. A criança mais velha comia com satisfação, mas a caçula não encontrava posição de mirrar os peitos da mãe e começou a chorar, forçando a índia a dispensar os cuidados com Waiãpi e melhor acomodar a pequenina.
         Depois as duas crianças se fartaram e deixaram a mãe de lado, procurando correr na areia em busca de diversão. Neste momento, Tawacã preparou a mistura de peixe e mandioca e começou a comer, mastigando, mas com os pensamentos aprisionados na lembrança da madrugada, com os gemidos desesperados descendo o rio, invisíveis aos seus olhos, mas tão reais quanto seriam se fossem gritados ao seu lado. Ela viu Yepá preparando as embarcações para retomar a viagem, viu as filhas brincando na areia sem outra preocupação a não ser a de se divertirem, mas viu também vultos anunciadores de tragédia e imediatamente pensou que Matepi poderia estar morta.
         - Vamos adiantar esta viagem, porque boas notícias não nos esperam na aldeia Maquará, disse Tawacã ao cunhado.
         - Estás com mau pressentimento em relação à tua irmã? questionou Yepá, que desde cedo observava o olhar de Tawacã perdido no infinito, como se tivesse vendo algo que ele não podia perceber.
         - Durante a noite toda eu ouvi uns gritos vindo do rio, contou ela ao caboquena, mas não via ninguém passar na correnteza.
         Yepá olhou a cunhada com espanto, pois conhecia o poder da esposa do irmão e tinha visto muitas vezes as feitiçarias de Nahpy, assustando-se com a capacidade do pajé de invocar espíritos dos mortos nas cerimônias em volta da fogueira, nas noites da ilha Saracá. Sabia dos preparativos de Tawacã para suceder o pai como guardiã dos conhecimentos dos guanavenas e por isso não duvidaria que ela ouvita mesmo os gemidos que relatava.
         - Os gemidos eram de mulher? quis saber Yepá.
         - Não. Pareciam gemidos de todo um povo, respondeu Tawacã, e as palavras sacudiram os músculos do caboquena. Neste momento um furor rasgou o coração dele com o agouro pairando sobre sua gente e o fez montar na embarcação, colocando a pequena Samcaxiki na canoa dele e puxando a outra onde iam Tawacã a Waiãpi.
         Yepá remava com pressa assustadora, subindo o rio velozmente como se a correnteza estivesse a seu favor e sem se dar conta de estar puxando duas embarcações, a dele e a da cunhada, enfiando fundo o remo na água para conseguir todo o impulso à frente. Tawacã seguia atrás, auxiliando o cunhado nas remadas, mas sua força não podia se comparar e de Yepá, até porque este era impelido por seus presságios e estava determinado a chegar na aldeia e se certificar das condições de sua gente.
         Quanto mais se aproximavam da aldeia Maquará, mas os indícios de tragédia se anunciavam, com urubus pairando nas margens do rio e o primeiro cadáver avistado, deitado na praia como se descansasse de viagem longínqua, os olhos mirando o céu e com as aves carniceiras a lhe devorar as sobras do rosto. Pelas indumentárias que ainda vertia, foi fácil saber não se tratar caboquena, mas Yepá reconheceu logo o colar trançado no pescoço com penas e sementes de outra região.
         - Esse índio é da Mundurucânia, afirmou ele, ao observar o colar usado como proteção pelos guerreiros dessa tribo distante.
         - Deve ser algum bravo dos que chegaram de visita na aldeia, logo depois de tua partida, confirmou Tawacã, para espanto do caboquena.
         - O quê os mundurucus faziam no Maquará? indagou o índio, sabendo que visita de guerreiros vindos de tão longe só podia trata-se de assunto de valiosa importância.
         - Eles tratavam somente com Meyki, respondeu ela, adiantando o óbvio ao cunhado, porque somente podiam estar acertando os detalhes de novas batalhas contra os muras, ou então contra os guanavenas.
         Os navegantes diminuíram a velocidade da marcha devido novos corpos surgirem boiando no leito do rio. Era fácil identificá-los pelo amontoado de aves em cima deles, num festim macabro a anunciar a chacina. Os cadáveres estavam de tal forma vilipendiados que não parecia obra somente de urubus. Alguns estavam sem cabeças, outros desmembrados, alguns tinham lanças profundamente encravadas no peito que custava distinguir se eram realmente quem pensavam que fossem. Pelo estado dos guerreiros mortos ficou claro a Tawacã e Yepá que se tratava de ataque dos muras e, ainda, campanha de vingança, feita com intenção de punir os caboquenas pelas guerras travadas nos últimos tempos.
         Os índios agora navegavam em velocidade de espreita, temendo serem atacados de surpresa pelos inimigos e assim seguiam perscrutando o horizonte em busca de possíveis tropas de muras, por ser provável que se alguns bravos tentaram a fuga rio abaixo, seriam perseguidos até a aniquilação total. No entanto, a navegação rio acima se mostrava tranqüila, até aparecerem os sinais de fumaças a anunciar que a aldeia Maquará estava ainda em chamas, com o negrume do céu se misturando aos rolos de fumaça e aos urubus em vôos panorâmicos sobre os restos da aldeia dos caboquenas.
         Yepá procurou se precaver dos perigos e decidiu seguir sozinho até a aldeia, deixando a cunhada e as crianças escondidas na mata, enquanto ia andando pela segurança da selva na tentativa de averiguar o acontecido. Tawacã ficou sentada à sombra de uma árvore, observando o cunhado sumir nas brenhas da selva, procurando manter a calma e tranquilizar as filhas, pois estas pressentiam a tragédia prestes e ser revelada quando o caboquena retornasse com as notícias da aldeia. A índia se ocultava a qualquer ruído, amedrontada diante da perspectiva de vir a ser capturada pelos inimigos de sua gente, ainda mais quando teria de proteger as duas filhas, cujos destinos poderiam ser traçados de forma bem diferente caso fossem levadas ao cativeiro dos muras.
         Ela esperou Yepá retornar até o início da tarde. Depois ficou esperando a noite se impor sobre o mundo e não pregou os olhos durante a madrugada toda aguardando a volta do cunhado. Pela manhã, Tawacã não pode conter a angústia e partiu com as duas filhas, a pé, em direção à aldeia dos caboquenas, marchando com dificuldade pela areia, carregando ora uma filha, ora as duas ao mesmo tempo, oprimindo seu medo de continuar caminhando em frente, sem temer o encontro com os inimigos, que a matariam com golpes de bordunas. Cada passo era encorajado pela ânsia de chegar logo e descobrir a verdade já anunciada há dias, que desvanecia as esperanças a cada contorno do rio, a cada lufada nauseabunda de morte próxima e com o cheiro forte da fumaça de aldeia queimando a anunciar-lhe a destruição de sua gente.
         Os passos de Tawacã levaram-na ao encontro da verdade quando avistou o local onde antes estava a aldeia Maquará, mas seus olhos apenas viram a fumaça subindo em direção às nuvens, enquanto urubus contornavam nas alturas em busca dos melhores ares. No solo a putrefação foi o que restou da tribo dos caboquenas, com corpos dos guerreiros espalhados em todas as direções, muitos deles impossíveis de identificar se eram de sua gente ou dos inimigos. Tawacã caminhou entre a destruição, mas não conseguia reconhecer nenhum dos mortos, devido todos lhe parecerem estranhos, como se não fossem há poucos dias parentes a dividir as tarefas do dia e a compartilhar dos banhos e da comida nos momentos de descanso.
         Tawacã estava atônita diante do caos impostos à aldeia, paralisada diante da grande oca onde até dias atrás dormira com seu marido e as filhas, cercada por parentes de Monawa e as tantas famílias dividindo o local em comum. Da construção restava apenas um amontoado de carvão e cinzas, enquanto corpos de mulheres e crianças se misturaram aos dos guerreiros tombados nas proximidades, mostrando que ali se desenrolou batalha feroz entre inimigos. A índia procurou pelo corpo do marido, mas não conseguiu identificar entre os despojos algo semelhante ao que fora Monawa e sua busca levou a outros locais da antiga aldeia, caminhando por onde outrora fora a casa de Meyki, e ali pode ver nitidamente entre os cadáveres o corpo do cacique. Estava destroçado pela fúria dos muras e a cabeça havia sido levada como troféu pelos inimigos.
         O cenário da carnificina entorpecera a índia e as filhas, ambas agarradas ao corpo de Tawacã, sem soltar lágrimas ou gemidos de choro, apenas olhando aterrorizadas o resultado do conflito que haveria de suscitar ainda mais mortes em nome da honra e da vingança. A índia passava entre os destroços, espantando de vez em quando os urubus retardatários que haviam chegado depois do grande banquete da chacina. Ela seguia como se flanasse em outro mundo, sofrendo o impacto desastroso das políticas de alianças das tribos aliadas, que sempre resultavam no sofrimento dos povos do lago Canaçari.
         Ela caminhou até a margem do rio, encontrando apenas mortos por onde passava, mas um movimento furtivo a trouxe de volta à realidade e foi quando avistou Yepá sentado no tronco caído na praia. O índio estava estarrecido diante do cenário macabro da aldeia destruída. Olhava a outra margem do rio, por trás da floresta, na direção do horizonte onde estavam localizadas as terras dos muras. Ele havia contado os mortos de sua gente e também dos inimigos, percorrera toda a extensão da aldeia e só vira a destruição e agora jurava perante os ancestrais a prometida vingança para compensar a destruição de seu povo.
         Tawacã se aproximou do cunhado a passos largos, mas a atenção do bravo só se voltou a ela quando a índia estava diante dele, gritando desesperada que a acudisse, porque senão seria ela a enlouquecer em decorrência de tanta tragédia. Yepá pode em fim erguer-se do transe e então agarrou Waiãpi em seus braços e puxou a cunhada para dar-lhe a força que a faria suportar o trauma. Eles precisariam de muita coragem nessa jornada, mas a índia firmou o corpo na areia, se recusando a abandonar os parentes tombados na aldeia Maquará.
         - Vamos embora daqui, pediu Yepá. Não há nada que possamos fazer por eles.
         - Só saio quando encontrar o corpo de meu marido, respondeu Tawacã com determinação, enquanto o cunhado tentava levá-la às terras dos guanavenas.
         - Não precisas te preocupar, Monawa não foi feito prisioneiro dos muras, mas tu não encontrarás o corpo dele, os bichos o comeram, afirmou o índio.
         - Só me faltava saber que meu marido passara pela humilhação de ser devorado como prisioneiro de guerra pelos muras, resignou-se a responder a índia guanavena.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Capítulo 21 - Tocaia dos Mortos

         YEPÁ DEMOROU ALÉM DO PLANEJADO NA VIAGEM DE VOLTA, POR ISSO FICOU SURPRESO ao chegar à aldeia dos caboquenas e lá encontrar Matepi entre as gentes que o esperava na praia. Ela estava com a barriga um pouco arredondada, revelando o estado de prenhez recente, e os cabelos ganharam volume, encobrindo seus ombros e dando-lhe um porte de fêmea, que ainda não havia revelado quando foi levada à casa das mulheres para cumprir um ciclo de águas de reclusão. O guerreiro enfrentara uma viagem penosa, vencendo correntezas e ventos nem sempre amigáveis, passara dias remando e muitas luas descansando em praias perdidas nas imensidões dos rios navegados, mas sempre em seu pensamento estava a figura de Matepi, e agora ela estava ali, diante dele, e grávida.
         O guerreiro recebeu impassível a festa do povo e nem mesmo a criançada correndo a sua volta despertou nele qualquer emoção. Ele não tirara os olhos de Matepi entre os índios da tribo. Foi levado ao encontro do maioral caboquena, a quem relatou a conversa mantida com os caciques das terras da Mundurucânia, se desculpou pelo longo período de ausência e por ter atrasado os planos de Meyki, e com isso modificando o seu próprio, mas desde quando pisara na aldeia, percebeu de forma inexorável não lhe restar outra opção a não ser raptar Matepi do marido dela e viver banido para sempre. Só precisava saber quem desposara a bela filha do pajé dos guanavenas durante sua ausência.
         - Foi o cacique Meyki, respondeu Tawacã, quando Yepá perguntou à cunhada com quem a irmã desta se casara, uma vez que não tinha pretendente contratado quando fora levada à reclusão da casa das mulheres.
         Ela então repetiu a história sabida pelos parentes de Yepá de como Meyki trouxera da aldeia dos guanavenas não só Matepi como também Mauri, a filha do cacique Taobara, depois de selar com ele um acordo de fidelidade. Fora um acordo costurado na política complicada do pós-guerra contra os muras, quando cada cacique decidiu oferecer um rumo diferente ao seu povo, mas logo decidiram continuar trilhando a história compartilhada entre ambas as nações ao longo de várias gerações, inclusive com ancestrais venerados em comum pelas duas tribos.
         Na verdade, Taobara não confiava nos novos aliados muras e Meyki desconfiava de poder traçar uma aliança duradoura e vantajosa com mundurucus e saterês, visto que as duas tribos deixaram de lutar bravamente quando estavam prestes a conquistar a aldeia de Itacoatiara, afugentados pelos reforços chegados no último momento da batalha. O cacique guanavena era levado a desconfiar dos muras por causa das desavenças ancestrais entre eles e Meyki não conhecia muito bem os novos aliados e também acreditava que estes poderiam se voltar contra seu próprio povo, por isso uma aliança entre as antigas tribos sempre traria mais segurança a todos.
         Taobara foi o primeiro a procurar Meyki e traçou os rumos da aliança entre as três tribos do Canaçari. Mandou buscar Jauaraçu em sua aldeia, no Sanabani, para a conferência com os caboquenas e este veio acompanhado de seus guerreiros mais próximos e dos velhos com quem sempre se aconselhava quando decidia o destino dos bararurus. A comitiva se encontrou com Meyki na foz do rio Orowo, na praia de frente à ilha Saracá, onde fizeram uma fogueira e durante três dias e três noites dialogaram em busca de uma política de consenso às tribos.
         O maioral guanavena propôs formar uma tropa com bravos de todas as tribos e deixá-la estacionada na ilha Saracá, alvo principal da possível campanha de retaliação por parte dos muras. No entanto, Meyki pensava que o caminho mais óbvio do ataque fosse pelo rio Orowo, por isso não pretendia se desfazer de seus homens e enfraquecer as próprias defesas. As terras de Jauaraçu ficavam mais distantes da fronteira com os muras, nos confins do Sanabani, e o cacique bararuru prometeu enviar alguns guerreiros para formar a tropa, mas queria contar com seus homens se precisasse enfrentar outros perigos advindos do interior da floresta. A discussão como sempre se intensificara entre Taobara e Meyki, com ambos travando uma luta pessoal pela liderança na região.
         Taobara tinha interessa em manter os caboquenas sob sua influência, como sempre fora com Uataçara, mas desde a chegada de Meyki ao poder, as relações com essa tribo havia se enfraquecido e o maioral guanavena já fora desafiado inúmeras vezes na capacidade de comandar os aliados. Mas Taobara agora jogava uma política perigosa, arquitetada na aliança com os eternos inimigos muras e sabia que poderia perder apoio também dos anciãos guanavenas, o que minaria ainda mais sua liderança como chefe de guerra. Ele precisava fazer uma política enviesada, ora tratando os muras como amigos, de quem manifestava desconfiança tribal, ora chamando ao seu lado Meyki, este cada vez mais independente e arredio ao seu comando.
         O cacique guanavena colocou a proposta de estreitar os laços entre ele e Meyki, oferecendo a ele a filha Mauri em casamento, pois a mesma fora recuperada dos muras durante os combates e estava sem marido. Meyki sabia da história da prometida e não viu grandes vantagens para ele, pois podia escolher esposa melhor qualificada, ainda mais tendo Mauri vivido com os muras, casado e gerado filhos aos inimigos. Mas o cacique caboquena não era um negociador ingênuo, capaz de se deixar enredar pela artimanha de Taobara. Ao contrário, farejara algo de estranho no interesse do guanavena em estreitar aliança impossível de ser desfeita e poderia tirar proveito da situação, levando até as últimas conseqüências a verdadeira intenção de seu rival em realizar o casamento importante para a paz entre as tribos.
         - Aceito sim sua filha como minha esposa, respondeu Meyki, fingindo orgulho demasiado para dote pequeno. Mas quero também Matepi, sua sobrinha, que saiu da casa das mulheres e está apta a ser desposada.
        Taobara sentiu a intenção de Meyki em elevar sua aposta até o limite, mas reconheceu o cacique valoroso da tribo amiga, com valentes guerreiros e exigia algo muito normal a um chefe em sua posição. O maioral caboquena queria ter ao seu lado duas esposas guanavenas, embora fosse casado com índia de sua aldeia, e teria o pedido aceito. Taobara também tinha mais de uma esposa e não negaria este direito a outro cacique, ainda mais quando as mulheres seriam o preço a pagar por aliança de interesse dos guanavenas.
         - Tu mereces ter mais de uma esposa, porque és homem honrado e saberás respeitar as mulheres de minha tribo, concordou Taobara, acertando com Meyki o casamento o mais breve possível.
         Uma parte do trato estava arranjada, sem haver problema em fazer Mauri, agora solteira, casar-se com o cacique caboquena. A dificuldade estava em Matepi, filha Nahpy, pois este poderia se opor, principalmente com o cacique caboquena exigindo duas esposas, demonstrando desta forma dar pouca importância às mulheres da tribo. O cacique conversou com o pajé, mas não tratou do assunto sobre o pedido de casamento, se limitando a reportar-lhe a respeito das novas alianças que garantiam a superioridade bélica da tribo sobre as demais do Canaçari.
         Taobara falou ainda sobre a formação da tropa de defesa, composta por guerreiros aliados, para proteger a ilha Saracá da esperada campanha de retaliação dos muras, pois era sabido ser estes índios incapazes de perdoar uma ofensa contra seus territórios. Disse que os guanavenas estariam mais protegidos contra os inimigos e poderiam cuidar de sua gente, se fortalecendo em guerreiros e proteger os vastos limites do lago, sempre desejado por outras tribos, mas nunca conquistado.
         Nahpy ouviu atento o cacique, concordou que a situação era vantajosa aos guanavenas, pois a tribo ficaria fortalecida pelos novos termos da aliança e imune aos ataques de surpresa. No entanto, as palavras de Taobara, articuladas com ênfase nas vantagens, deixava transparecer algo de suspeito, ainda mais sendo conhecida a capacidade de Meyki, um cacique ardiloso e negociador sagaz, em trazer à luta perdida duas tribos dos confins do mundo.
         - O que tu oferecestes em contrapartida a Meyki? quis saber Nahpy de Taobara.
         - Minha filha Mauri vai se casar com ele, respondeu o cacique.
         - É um valor muito pequeno a ser pago pela fidelidade dos caboquenas, contestou o pajé, fazendo o cacique reconhecer que a filha Mauri não era botim de grande valia à ambição de Meyki.
         - Ele também quer tua filha Matepi em casamento, falou Taobara em sussurro, esperando ver a reação do pajé ao saber da proposta do cacique caboquena.
         Nahpy não aceitou de imediato o casamento de Tawacã com Monawa, embora agora reconhece o valor do caboquena de bom esposo e pai dedicado das netas, mais por influência de sua esposa Xirminja, também filha da tribo do rio Orowo. Acostumara-se a mandar na família de Tawacã com o consentimento de genro, que nunca encontrara coragem de desafiar a força do pajé. No entanto, não seria fácil a Nahpy ter a mesma influência sobre o destino de Matepi depois desta se casar Meyki, homem de temperamento forte e acostumado a impor suas decisões pela força.
         Taobara tentou convencer o pajé de que o casamento seria a melhor opção aos destinos dos guanavenas, pois assim o sangue de sua tribo estaria se cruzando com a liderança dos caboquenas, espalhando a cultura da ilha Saracá até os confins das terras do rio Orowo. O pajé não se mostrava convencido. Sua oposição ao nome de Meyki era nada se comparado a que ele dedicou por quase um ciclo das águas ao matrimônio de Tawacã com Monawa. Para Nahpy, Matepi estaria bem casada com o maioral dos caboquenas, viveria na mesma aldeia da irmã mais velha e, ambas, semeariam o conhecimento dos guanavenas entre as gentes de outro povo.
         Mas algo impedia o pajé de aceitar de imediato o casamento da filha mais nova: justamente a imposição de Meyki em querer também Mauri, resgatada dos muras, que depois de viver tanto tempo com esse povo poderia até ser considerada igual a eles. Nahpy tergiversou com argumentos contrários, mas Taobara soube aproveitar a fraqueza nas palavras do irmão, embora também não quisesse falar a verdade de como se dariam as relações na nova família do cacique caboquena, mas por fim teve de admitir como último recurso para convencer o pajé.
         - Não te preocupes, porque Matepi será a esposa predileta de Meyki, falou Taobara ao irmão, encerrando finalmente a discussão na qual ficou decidido que o cacique caboquena desposaria duas índias guanavenas de melhor estirpe: uma filha de Taobara e a outra, de Nahpy, de beleza comentada e reconhecida em toda a região do Canaçari.
         O casamento foi marcado com o intuito de aproveitar as águas ainda na enchente, quando havia praias e abundância de caça e pesca para festa dessa magnitude ser comemorada durante vários dias, tanto nas aldeias dos guanavenas quanto na dos caboquenas. Toabara queria impressionar com fartura assim como o fizera em seu casamento com Cayabi. Ele estava casando sua filha Mauri, que teve o mau destino de ser entregue aos inimigos para livrar seu povo da tragédia.
         O cacique caboquena queria se redimir diante da filha, dando-lhe uma boda de grande festividade, por isso não poupou esforços dos bravos na busca por plantas exóticas para enfeitar o cocar de Mauri. Os homens mais hábeis caçavam na mata pássaros de penas deslumbrandes, porque o cacique queria um colar como nunca se vira em toda a ilha Saracá. Mandou espionar os preparativos de Matepi, com rastreadores seguindo os passos de Nahpy quando este entrava na selva em busca de ervas para o banho matrimonial da filha. Taobara queria para Mauri tudo igual, ou melhor, ao que estava sendo preparado a Matepi, pois já bastava ser esta a esposa preferida do cacique enquanto sua filha seria apenas um prëmio menor na composição familiar de Meyki.
         Nahpi não se incomodava com o interesse furtivo do irmão no preparo do enxoval de Matepi, mas se chateava com a escamoteação do cacique, fingindo querer saber coisa, enquanto seus olhos denunciavam o real objetivo de estar por ali. O pajé não fazia segredos dos banhos que preparava, nem dos óleos e ungüentos para proteger o corpo da noiva na noite do consórcio, por isso ofereceu-se de boa vontade em cuidar dos preparativos de Mauri, e até evitar a competição antecipada entre as duas primas.
         - Mande-me dois guerreiros e algumas mulheres e eu me encarrego de preparar tua filha para o casamento, disse Nahpy ao cacique, que aceitou o pedido do pajé e agradeceu humilde, quase reverencial. Taobara sabia que somente o irmão era capaz de preparar a filha para ser feliz no casamento e a prova maior dessa convicção era Cayabi, a quem Nahpy banhara em infusões e hoje era esposa abdicada e mãe diligente.
         Logo os ajudantes estavam a disposição do pajé, prontos a realizar qualquer pedido feito por ele, e demonstravam servilidade para não faltar nada, nenhuma erva, flor ou casca de árvore ao banho matrimonial de Mauri. Os homens traziam plantas fora da estação, cascas de árvores não existente na ilha e folhas de palmeiras de açaí, crescidas no alto das ramas, onde mesmo a escalada difícil valia a pena para o pajé preparar a infusão com a qual se banharia a filha do cacique. Uma das mulheres sugeriu acrescentar na fervura banha de tartaruga, que destrava os ossos, afinal Mauri estava sem marido há bastante tempo, e outra, aproveitando-se da lembrança oportuna de a noiva já ter sido casada, e com um mura, recomendou botar também umas cascas de cajueiro, cujas propriedades apertativas eram conhecidas por todas as mulheres da região.
         Completaram o trabalho ao mesmo tempo em que a família de Nahpy, comandada por Tawacã, terminara os preparativos de Matepi. A festa das bodas estava programada na ilha Saracá, onde já se encontrava Meyki e sua grande comitiva de bravos caboquenas. Seria a primeira noite do esposo com as novas mulheres e Meyki trazia o orgulho incontido quando todos lembravam da beleza prematura de Matepi, mas também não esqueciam de enaltecer Mauri, a filha de Taobara, que ainda conservava a formosura dos tempos quando fora dada como dote aos muras.
         O noivo se mostrava ansioso para o início das comemorações, andando com seu séqüito de bravos por toda a ilha, como se inspecionasse os detalhes do casamento, para sua festa, na aldeia do rio Orowo, ser mais grandiosa. A noite foi caindo e então muitas fogueiras foram acesas em toda a praia do Terceiro, local escolhido da cerimônia, e foi com grande galhardia que Nahpy e Taobara trouxeram as filhas e entregaram-nas ao cacique dos caboquenas, que as recebeu com longos agradecimentos, saudando todos com sua borduna erguida em gesto de vitória e recebendo dos presentes os gritos de viva oferecidos por todas as gentes. Meyki tinha os olhos em fogo ao lado das novas esposas, belas e preparadas com esmero pelas artimanhas do pajé, cuja reputação de transformar mulheres maduras em jovens corria solto por todas as bandas.
         A festa teve início com os peixes sendo servidos em abundância, se estendeu até a lua cheia clarear a todos no alto de suas cabeças e se prolongou até o amanhecer do dia, quando ainda eram servidos os petiscos mais saborosos. Meyki se retirou com suas noivas para a cabana erguida no alto do morro de onde se vislumbrava toda a praia do Terceiro e lá permaneceu protegido por tropa de caboquenas, aproveitando-se de sua condição de maioral. Quando as primeiras luzes da manhã apareceram nas bandas da Demanda, ainda tocavam os tambores da festa chamando os guerreiros para prolongar as comemorações por todo o dia seguinte. Mais lenha foi jogada nas fogueiras e mais peixes e caças servidos aos presentes, com outro dia de grande regozijo às tribos dos guanavenas e caboquenas, unidas no sangue do matrimônio, e também aos bararurus, os convidados que mais se divertiam por estarem alheios aos conchavos resultantes deste casamento excêntrico.
         Conforme o calor foi se impondo na ilha Saracá, mais pessoas se dirigiam ao banho matinal na praia do Terceiro, alegrando ainda mais a festa contínua dos índios. Chegou Taobara com suas esposas, inclusive a mãe de Mauri, com quem o cacique era pouco visto desde seu casamento com Cayabi. Veio também Nahpy, acompanhado de Xirminja, os filhos e netos. Na praia encontraram Monawa ainda inebriado pelo caxiri e alegre devido seu cacique agora ser também seu parente, por estar casado com a irmã da esposa. O bravo caboquena quis se pôr de pé quando viu Tawacã aproximando-se com Waiãpi e Samcaxiki, mas foi derrubado pelo terrível porre da bebida fermentada, arrancando risos dos companheiros e das filhas pequenas.
         Aiauara não se encontrava ao lado de Monawa porque sua roda de amigos incluía somente guanavenas, e entre eles Pikiwaha, cujo rosto deformado parecia ainda mais feio sob o efeito do caxiri. O herdeiro de Taobara viu de longe quando Meyki saiu da cabana onde passara a noite, acompanhado das duas esposas, e logo foi cercado por guerreiros que montaram guarda no local. A comitiva do maioral caboquena desceu o morro em grande alarido, fazendo festa, todos satisfeitos da proeza de Meyki conquistar mais duas mulheres para a tribo.
         Quando chegaram à praia, o maioral caboquena se dirigiu à acapuraneira onde estava Taobara, descansando sob a sombra, e foi felicitá-lo pela festa da noite anterior. As duas esposas de Meyki também se aproximaram, mas traziam em suas faces as marcas do oposto. Mauri era a resignação estampada na cara, condição aceita já na primeira noite como esposa secundária, para quem a atenção do esposo reservava apenas a obrigação momentânea de um ato sexual de forma a espalhar seu sangue. A tristeza de Mauri estava escrita em seu destino desde sempre, quando foi levada na canoa e dada aos muras como pagamento pela paz com seu povo e agora, em um casamento de interesse, no qual ela era a contrapartida de uma aliança formulada entre seu pai e o novo marido.
         Matepi tinha outra expressão, com seus olhos flutuando como canoa nos banzeiros do Canaçari, saltitando a alegria da primeira noite de casada, na qual encontrara o amor do esposo, guerreiro de árduas batalhas, tanto em campo de guerra quanto na rede. A jovem índia transpirava alegria, deixando saltar suspiros imprevistos quando as lembranças recentes das núpcias a transportavam da realidade ao mundo de sonhos, onde só cabiam ela e o marido. Nem a presença de Mauri ao seu lado lhe era um entrave de gozar a felicidade, pois as atenções de Meyki eram dirigidas somente a ela, ficando a prima relegada à condição de segunda esposa.
         As comemorações do casamento se estenderam por outras noites e as comilanças se repetiram, assim como a distribuição de caxiri aos homens, que se embriagavam até caír no chão sob o efeito da mistura. Quando se fartaram das festividades na ilha Saracá, Meyki ordenou seu povo a tomar o rumo do rio Orowo e convidou os parentes guanavenas e os bravos bararurus. Todos foram à aldeia Maquará, prosseguir as noites de festas, com o cacique caboquena mostrando que seu território também era dotado de fartura de peixes e caças. Foram tantas as  comidas servidas e tantas as bebidas oferecidas aos convidados que ficou a certeza de Meyki poder ter mesmo quantas esposas quisesse.
         Matepi e Mauri foram viver na aldeia Maquará e logo após a passagem de duas luas a filha do pajé começou a sentir os enjôos da gravidez. Ela procurou Tawacã em busca de orientação e a irmã mais velha ofereceu toda a ajuda possível, preparando-a para parto tranqüilo. A esposa de Monawa levou Matepi à mesma árvore onde dera à luz às filhas e recomendou-lhe procurar o lugar quando sentisse as contrações do parto, porque ali batia o vento saudável do Canaçari e suas raízes estavam voltadas na direção da ilha Saracá.
         - É bom parir olhando a terra onde nascemos, recomendou Tawacã à irmã.
         A jovem esposa de Meyki passava os dias acometida de saudade da terra natal. Ela chegou algumas vezes a pedir ao esposo para levá-la até sua família, mas sempre lhe fora negado o desejo. O cacique desconfiava da influência de Nahpy na vida das filhas, acreditando que o pajé poderia preparar uma beberagem e assim domar a vontade de mandar na esposa. Matepi acalmava a angústia ao lado de Tawacã, lhe narrando as mesmas aflições vividas quando fora trazida a conviver com os caboquenas, logo após ser raptada por Monawa, mas a jovem índia não conseguia controlar os sentimentos e então se entregava às lágrimas, ainda mais quando o marido partia para longas caçadas com seus bravos.
         Por seu lado, Mauri escondia as aflições tecendo cestos de palhas e fazendo utensílios de argila com as técnicas aprendidas junto aos muras. Não era nunca procurada pelo esposo por isso adiara o sonho de dar um filho ao cacique dos caboquenas, mas mesmo assim não abdicava ao direito de ostentar a condição de mulher casada com o maioral, se considerando superior às outras mulheres, menos pelos amores matrimoniais, e mais por sua habilidade com as mãos, produzindo peças que arrancavam olhares de espanto e inveja das demais índias. Seu drama pessoal ela vivia na solidão, sem conversar com Tawacã, a prima mais velha, e menos ainda com Matepi, a rival que ela considerava culpada por seus dissabores.
         A barriga de Matepi se avolumava com o passar dos dias e quando seu esposo chegava das aventuras nas matas trazia sempre presentes à esposa querida: colares de penas e sementes raras, encontradas apenas por desbravadores das florestas. A jovem índia se recuperava das tristezas, mas logo as conversas entre as mulheres traziam-na de volta à solidão e não adiantava os carinhos de Meyki nem os afagos de Tawacã. Ela queria mesmo era retornar à ilha Saracá, interrompendo afinal o período mais longo que se afastou de sua terra.
         Matepi enfrentou a reclusão na casa das mulheres com resignação do sangue de sua família, agüentou a provação sem lágrimas, embora em muitas noites tenha pensado sério em abandonar a cabana e fugir para bem longe da ilha Saracá. Mas sempre refletia e chegava à conclusão de que tal atitude a colocaria sempre na condição de criança, além de envergonhar os parentes e afastar pretendentes no futuro, pois nenhum guerreiro de orgulho gostaria de casar com quem fugiu da casa das mulheres. Matepi recebia a visita da mãe e se mostrava forte, inclusive aconselhando as outras jovens a suportar o período de reclusão, mesmo estando a ponto de desistir de tal empreita.
         Nas noites de temporal, quando o vento parecia querer levar embora a cabana onde as meninas estavam e os raios rasgavam com suas luzes a escuridão do interior, Matepi se recolhia em si mesma, buscando forças onde não mais as tinha, intentando se mostrar valorosa diante dos olhos de sua gente. Ela não tinha pretendente formalizado e nem guardava nas lembranças a figura de nenhum guerreiro por quem poderia mostrar interesse, mas se sabia desejada por muitos, inclusive já percebera em várias ocasiões os olhares ardentes disparados a ela por Yepá, o cunhado da irmã, contador de histórias e hábil na pesca e na caça.
         No entanto, a vida de casada se mostrara muito mais insuportável depois da gravidez, quando Meyki lhe diminuiu o interesse nas noites, chamando até mesmo Mauri à rede do cacique. Os enjôos aumentaram sua indisposição e o ventre em crescimento a fadigava sempre mais, por isso preferia ficar sentada na praia, vendo as crianças brincando no rio como sempre fizera nos tempos de menina, mas a vontade de correr na areia a desestimulava e apenas o torpor de gravidez tomava conta do corpo. Matepi não encontrava posição confortável para descansar e se levantava freqüentemente, dando caminhadas curtas, seguindo em frente, parando para descansar e voltando a caminhar de novo, na busca desesperada de chegar mais perto de sua ilha querida.
         Numa manhã, quando o marido partiu em caçadas rotineiras, Matepi decidiu caminhar pela praia em busca de consolo contra a saudade e foi em frente até cair exausta na areia. Ficou algum tempo olhando o azul do céu sob a cabeça e imaginou animais sombrios formados pelas nuvens ligeiras, depois se ergueu com esforço e voltou a caminhar em direção a foz do Orowo. Em pouco tempo estava tão afastada da aldeia que não encontrava mais vestígios dos caboquenas e decidiu continuar em passos apressados, percorrendo enseada atrás de enseada até chegar na boca do grande igarapé que interrompeu seu caminho. Ficou sentada na areia, recuperando as forças perdidas na andança, mas quando se viu disposta a cruzar as águas a nado ouviu os gritos de Tawacã chamando-a ao longe. Ela então teve um momento de hesitação e saiu da água, em prantos tão dolorosos que a irmã não encontrou dificuldade em localizá-la.
         - Que passa contigo, Matepi, disse Tawacã à irmã caçula, procurando consolá-la enquanto a afastava das margens escuras do Orowo.
         - Eu quero morrer, minha irmã, respondeu Matepi em lágrimas fartas.
         As duas voltaram caminhando à aldeia dos caboquenas e quando Meyki retornou da caçada Tawacã lhe relatou o acontecido, mas mesmo assim o cacique não autorizou a esposa viajar até a ilha Saracá e rever os parentes. A irmã se comprometeu fazer-lhe companhia, garantiu que nada aconteceria a ela e invocou até os poderes do pai para convencer o cacique dos caboquenas, mas Meyki se mostrou inflexível.
         - Não quero correr o risco de teu pai fazer comigo o que fez com teu esposo, falou Meyki a Tawacã, encerrando o assunto definitivamente.
         Matepi aceitou a decisão do marido. Foi até Tawacã e disse-lhe que o tempo de menina havia se encerrado e agora ela tomaria conta de seu destino, deixando de chorar com saudade da casa paterna, como vinha fazendo. Decidiu ter seu filho na aldeia dos caboquenas e voltar a fazer feliz seu marido depois de largar a gravidez. Não entregaria o homem com quem casara, sendo a primeira esposa, a Mauri, que aproveitava como podia os dias de desespero de Matepi, fazendo agrados em Meyki, na intenção de conquistar a atenção que não lhe era destinada.
         A jovem índia voltou a tomar parte na vida da aldeia, participando com as crianças nas brincadeiras, enquanto seu ventre avolumava cada vez mais, e se inteirava das conversas das mulheres. Muitas das palavras proferidas por elas lhe diziam respeito. Numa tarde, enquanto se divertia nos jogos infantis, avistou uma canoa se aproximando abaixo do rio. Era conduzida por guerreiro determinado a chegar logo no destino, praticamente flutuando na superfície encrespada do Orowo. O desconhecido aproveitava o vento a favor para vencer a correnteza. Ela então mostrou aos meninos e estes correram a contar a novidade da aproximação do navegante solitário e quando este chegou próximo da aldeia todos de imediato os reconheceram: era Yepá, irmão de Monawa, cunhado de Tawacã, a quem todos já consideravam morto outra vez.