segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Capítulo 22 - Tocaia dos Mortos

         PASSARAM TRÊS FASES DA LUA DEPOIS DA CHEGADA DE YEPÁ À ALDEIA DOS CABOQUENAS e um grupo de guerreiros mundurucus e saterês chegou trazendo a proposta dos maiorais a Meyki. Nesta época, Yepá já não se encontrava mais no meio de sua gente. Ele pedira ao cacique caboquena para integrar a tropa aquartelada na ilha Saracá, protegendo o local da provável incursão punitiva por parte dos muras. Foi um pedido impossível de recusar e então o bravo de tantas aventuras foi mandado à aldeia dos guanavenas, encomendado por Meyki a Taobara de nunca fazer parte do primeiro grupo a responder aos ataques dos inimigos. Ele deveria compor a tropa da retaguarda, devido conhecer bem os meios de sobrevivência na selva e sua sabedoria era imprescindível nos momentos de paz.
         Yepá conheceu seu verdadeiro inimigo: era Meyki, o cacique de sua tribo que desposara a mulher a quem pretendia tomar como esposa, depois de arriscar a vida numa viagem de perigos e horrores e mostrar lealdade ao maioral. Ele vivia em conflito e os devaneios levavam-no a atitudes contraditórias com Meyki, ainda merecedor de respeito, mas ao mesmo tempo acalentava o desejo matá-lo. Desta forma poderia se apoderar de Matepi, a esposo do cacique, vingando o ódio reprimido por ele o ter mandado ir tão longe e depois arrebatado a mulher de sua vida.
         “Aquele desgraçado vai pagar esta ofensa”, costumava refletir Yepá, enquanto acariciava sua ira sentado embaixo das acapuraneiras na praia da ilha Saracá, vigiando o horizonte em busca da aproximação do inimigo que não vinha nunca. O caboquena não tirava da cabeça a visão de Matepi com o ventre arredondado, no momento de sua chegada, depois de atravessar o mundo com a resposta ao recado de Meyki e descobrir que ela estava casada com seu cacique, tendo este desposado também a prima Mauri, enquanto ele era apenas uma peça removível na estratégia de guerra dos maiorais.
         O caboquena decidiu lutar por Matepi e concluiu que o melhor aliado nesta empreita seria Nahpy, o pai e também o pajé influente cujos conhecimentos transpassavam os limites das terras dos guanavenas e eram motivos de respeito por todos os índios do Canaçari. Yepá aproveitava-se do fato de ser irmão de Monawa e participava da família de Nahpy, tornando-se amigo de Aiauara, com quem dividia as experiências em caçadas e pescarias nos momentos quando eles eram dispensados dos postos de vigias. Suas histórias narradas nas noites, em volta da fogueira, também ajudavam a conquistar a admiração dos outros índios, ficando assim na situação de dividir com o pajé as atenções dos ouvintes.
         Mesmo com tantas atividades envolvendo a vida do guerreiro caboquena, seus pensamentos não se desprendiam das lembranças de Matepi, quando a vira ser levada até a casa das mulheres e enfeitada com as pétalas vermelhas colhidas por ele nas matas mais longínquas, que lhe dera quase a certeza de compromisso matrimonial. Yepá comentou com Aiauara seus tormentos, mas este já estava bastante escolado pelos sofrimentos do primo Pajuari, quando este teve os mesmo sentimentos voltados a Tawacã.
         - Eu não me envolvo nestas questões, respondeu simplesmente Aiauara, desconversando o amigo caboquena quando dividiam uns momentos de pescarias.
         Yepá pensou em conversar com Nahpy, mas logo compreendeu que o matrimônio entre Matepi e Meyki só se realizou com o consentimento do pajé e seria muito difícil conquistar a boa vontade dele à sua causa. O caboquena estava se envolvendo em uma situação difícil porque seus amigos não ousavam tomar parte em seus pleitos, ainda mais quando os fatos se deram em função de acordos entre os maiorais das duas tribos.
         No entanto, uma notícia mal confirmada, das terras do Orowo, incendiou no coração de Yepá nova disposição de lutar por seu amor: o filho de Matepi havia nascido, mas morrera após alguns dias. O caboquena viu neste fato a certeza de os ancestrais estarem atuando a seu favor, uma vez que a esposa de Meyki não pudera dar um herdeiro ao cacique e este deveria rejeitá-la e procurar outra mulher com a qual geraria filhos. A notícia despertou tristeza na aldeia guanavena, mas carecia de confirmação, pois chegara pelo viés das conversas de alguns pescadores que a tinha ouvido de caçadores vindos das terras do Marupá, onde a boataria de todos os povos se encontrava.
         Yepá logo se prontificou em confirmar a notícia indo até a aldeia Maquará. Seria uma viagem tortuosa pelo leito do rio seco, mas o guerreiro já enfrentara aventuras muito mais difíceis e sempre se mostrara capaz de vencer terríveis obstáculos, por isso, dois dias depois de ter chegado à aldeia dos guanavenas, o boato levou o caboquena a embarcar numa pequena canoa, diante das primeiras luzes da manhã, e tomar o rumo do Sanabani, contornando a ilha pelo canal do Estreito, nesta época apenas um filete de água no qual se exigia experiência nas remadas e força para suplantar as correntes bravias.
         Mas o guerreiro não encontrou dificuldades em vencer este desafio e logo já estava por trás da ilha, remando ligeiro e aproveitando o vento a favor que soprava do Canaçari e enchia de banzeiros a foz do rio dos caboquenas. O sol estava no alto quando Yepá se encontrou nas margens do igarapé Preto, de onde já se podia sentir o rufar dos ares soprando da aldeia principal de seu povo, mas o cheiro não trouxe bons augúrios ao destemido guerreiro. Ele sentiu a primeira lufada de vento e reconheceu o horrível cheiro de sangue fresco. O pressentimento impulsionou ainda mais a canoa de Yepá e ele foi vencendo cada curva do rio com a disposição de chegar ao seu destino antes da noite se impor sobre o mundo.
         O estreitamento do rio devido à vazante diminuía o campo de visão do caboquena e este, sentado na proa da canoa, concentrado nas remadas, mal conseguia vislumbrar o horizonte à frente, por isso o espanto quando, ao vencer nova curva, quase faz sua embarcação abalroar outra vinda em direção contrária e com tanta pressa quanto a dele. O caboquena de imediato reconheceu as passageiras da canoa: eram Tawacã, também remando na proa, enquanto sentada no meio do convés vinha Waiãpi, carregando nos braços a irmã pequena Samcaxiki. Por cima de ambas, uma cobertura improvisada com folhas de palmeiras abrigava-as do sol inclemente.
         - Para onde tu vais assim com tanta pressa, meu parente? quis saber Tawacã, ainda assustada com o impacto do encontro.
         - Vou confirmar a notícia de que o filho de tua irmã Matepi nasceu, mas morreu em seguida, respondeu o cunhado.
         - Não precisas perder tempo com a viagem, eu mesma posso te confirmar, disse Tawacã, franzindo a face preocupada. É verdade, sim.
         Yepá recebeu a notícia com júbilo, mas não deixou transparecer essa felicidade à cunhada diante do fato consumado, ainda mais sabendo que Tawacã não enfrentaria uma viagem carregada de transtorno, com o leito do rio seco e difícil de navegar, na época de sol mais intenso, com as duas filhas sozinhas, se não houvesse outro motivo mais urgente para merecer tamanho sacrifício. Ele também pôs no rosto uma expressão de gravidade e questionou a cunhada sobre o restante da notícia, pois tudo indicava que a mesma não se encerrava apenas no filho morto de Matepi.
         - Também estou indo buscar ajuda do meu pai para fazer um remédio que salve a vida de minha irmã, disse Tawacã, resfolegando, e já soluçando quando acrescentou que Matepi ficou muito doente depois do parto mal sucedido.
         O resto da notícia entorpeceu o caboquena com a possibilidade de não mais encontrar com vida a mulher pela qual passara os últimos dias articulando planos de tê-la com ele. Lembrou-se rapidamente de quando remava solitário nas águas do rio Mawé, enquanto cumpria sua missão, mas em cujo pensamento só cabia a lembrança de Matepi. Também pensou nas longas estadias na selva e onde mesmo assim não esquecia da índia que enfeitara a cabeça tosada de orquídeas vermelhas. E viu toda sua vida, desde quando conhecera a jovem irmã da cunhada até agora, passar em pensamento, mostrando-lhe ser preciso chegar o mais rápido possível na aldeia dos caboquenas e ver ainda com vida a mulher por quem dedicava seu espírito.
         Do ponto onde as duas canoas se encontraram estava mais próximo de chegar à aldeia dos caboquenas, embora Tawacã tenha partido também quase no mesmo momento em que Yepá deixara a ilha Saracá. Mas a índia remava contra o vento e trazia as duas filhas pequenas a bordo e os cuidados maternais atrasaram a velocidade. Já o caboquena remava pensando apenas em pisar novamente na areia do Maquará e rever Matepi, mesmo sabendo que toda a cautela seria necessária para não despertar em Meyki nenhuma ponta de desconfiança sobre seus sentimentos. Já Tawacã não precisou usar seus dotes de xamã para descobrir no interesse do cunhado algo além da simples vontade em confirmar uma notícia que não lhe dizia respeito.
         - Matepi pode morrer, mas mesmo assim continua sendo esposa do cacique de tua tribo, alertou Tawacã a Yepá, mas este não ousou entender o comentário da cunhada, preferindo se esgueirar em outras palavras, até chegar ao ponto onde pretendia se pôr diante da esposa do irmão.
         - Vamos retornar juntos até a aldeia Maquará e nós dois podemos salvar tua irmã, propôs Yepá.
         Era verdade. A filha do pajé Nahpy sabia muito bem os segredos das artes xamânicas e podia, com a ajuda de Yepá, conhecedor das ervas, preparar qualquer remédio e curar Matepi da doença. Fariam a junção das experiências de ambos, o complemento da cultura dos guanavenas, desenvolvida pelas mãos e sabedoria de Nahpy, com a dos caboquenas, em cuja multiplicação das descobertas de Yepá repousava a prática das curas impossíveis. Tawacã era reticente quanto à ajuda do pai no tratamento da irmã, mas os convencimentos do cunhado levaram-na a refletir sobre o restante da viagem até a ilha Saracá, de pelo menos um dia e, depois, ainda seria necessário mais tempo com os preparativos do pajé para empreender a viagem de volta, retardando o início dos trabalhos de cura de Matepi em mais ou menos três dias e três noites.
         Se Tawacã fizesse meia-volta, a partir do local onde estava, no mais tardar, no início da manhã, chegaria à aldeia Maquará e, mesmo sem contar com a ajuda providencial de Nahpy, poderia se amparar na experiência e na boa vontade do caboquena. Ele demonstrava disposição em ajudar e continuava tentando convencer a cunhada da melhor opção para Matepi. Yepá pedia insistentemente que a cunhada o acompanhasse até sua aldeia, chegando a amarrar a canoa de Tawacã na sua, com o fiel propósito de impulsionar ambas as embarcações com a força dos braços.
         - Tu te lembras quando eu recomendei sementes de guaraná para a realização de um bom parto, argumentou Yepá, fazendo Tawacã recordar da manhã distante quando o cunhado saiu em busca de ajuda dos povos contatados por ele em sua peregrinação pelas selvas e rios remotos. Eu conheço os segredos da selva e aprendi muito convivendo com teu pai, concluiu o guerreiro caboquena.
         Tawacã decidiu voltar à aldeia Maquará, agora acompanhada do cunhado, remando com toda força as duas canoas e mesmo assim vencendo com tranqüilidade a correnteza afoita do rio na vazante. Com a experiência de longas remadas, Yepá avançava a frota sob sua responsabilidade, levando a cunhada e as duas sobrinhas, protegidas ainda mais com as folhas de palmeiras por causa do sol se deitando na direção de onde apontavam seus rostos.
         No afã de convencer Tawacã a seguir-lhe, Yepá calculou mal o tempo da viagem até a aldeia dos parentes e o sol se pôs no horizonte ainda faltando muitas remadas até as embarcações chegarem ao destino. O cansaço por fim venceu o valente guerreiro e ele foi afrouxando o remo, diminuindo a velocidade de deslocamento, reduzindo o avanço sobre águas contrárias, até seus braços não conseguirem mais impulsionar as canoas e permitindo à correnteza desfazer sem tréguas o esforço empreendido pelo índio. Tawacã percebeu que não adiantava mais continuar a viagem, agora sob a escuridão impenetrável do leito do rio e do firmamento acima deles. Neste momento, só as estrelas demonstrarem alguma vitalidade depois de um dia inteiro enfrentando o sol abrasivo e as águas tortuosas da vazante.
         Os viajantes encontraram uma praia onde puderam descansar e nela Yepá acendeu a fogueira, usada tanto para esquentar o peixe moqueado da refeição esquecida, como também protegê-los do ataque de feras e animais peçonhentos e iluminar o ambiente onde passariam a noite. O bravo armou uma pequena cabana com folhas de buritizeiros no teto e no piso e lá se abrigou com a família de Tawacã, depois de todos comerem o peixe com bolo de mandioca da dispensa da índia diligente. A mãe ainda amamentou as duas crianças, provando sua natureza saudável ao alimentar com o peito a prole de Monawa. Este gesto despertou no guerreiro o carinho especial pela cunhada, aumentando o afeto já dispensado a ela.
         No silêncio da noite, dormindo ao lado de Tawacã e das sobrinhas, o guerreiro caboquena saltava gemidos de dor causados pelos espasmos dos músculos dos braços, depois da longa viagem sem fim, na qual passara todo o dia tentando vencer as condições adversas da aventura. A índia acordou espantada e logo procurou às filhas, mas estas dormiam embaladas pelos próprios cansaços e pela brisa noturna que soprava como alento nas margens do Orowo, deixando o calor insuportável do dia claro se tornar lembrança ardente na pele queimada pelo sol. Tawacã ouviu os gemidos do cunhado e percebeu a origem de suas dores, pensando logo no modo de aliviar-lhe o sofrimento, ainda mais quando na manhã seguinte novas provações seriam destinadas a ele.
         Tawacã buscou em seu alforje a pequena cabaça, muito bem fechada com tampa de rolha de buriti e, dentro dela, o ungüento que traria alívio aos braços do guerreiro caboquena, que se deixou dormir profundamente enquanto os dedos ágeis e treinados da cunhada faziam massagens nos músculos, reativando o sangue estagnado pelo esforço brutal da viagem. Yepá se virou de lado e a índia aplicou-lhe melhor o curativo, depois buscou nova posição, deixando exposto o outro braço aos cuidados de experiente xamã, também se pôs de costas no chão e os músculos bem desenhados de seu peito largo afloraram com a luminosidade da fogueira e o brilho natural do óleo. Tawacã passava a mão suavemente no peito queimado do cunhado, deixando cair gotas sobre o mamilo dele e transportando-o ao sonho dos tempos quando foi prisioneiro das mulheres guerreiras e era preparado todas as noites para servir de escravo a Mauara, a maioral dessa tribo.
         Os movimentos das mãos de Tawacã se tornaram cada vez mais delicados, enquanto buscava os músculos retesados de Yepá, levando-o alívio, derramando ungüento também nos ombros, depois na barriga, ao longo das pernas, dobrando sem esforço o guerreiro para ele ficar de bruços e aplicar-lhe o remédio também nas costas, entre as costelas, até o corpo todo do cunhado estar lambuzado com o conteúdo da cabaça, jogada depois no interior do alforje. Tawacã ficou com as mãos e os dedos oleosos e foi lavá-los nas águas do Orowo, enquanto seu peito arfava mais do que se ela própria tivesse atravessado inúmeras vezes os caminhos mais distantes, da mesma forma como encontrara Yepá na viagem louca para confirmar a notícia da morte do filho de Matepi.
         A índia estava na beira do rio, que corria apressado pelo emaranhado do leito e esvaindo-se aos poucos devido ao adiantado da vazante. A água estava tépida nas margens e Tawacã apenas adentrou no rio o suficiente até molhar os tornozelos, mas mesmo a essa profundidade pode sentir a camada gelada do fundo. A temperatura da água causou-lhe arrepios pelo corpo e deixou nela uma sensação de medo. O ar também estava limpo, mas o diáfano cheiro de sangue nauseava a respiração e Tawacã pensou estar sentindo os efeitos da viagem do dia anterior, quando ouviu estranhos gemidos e não distinguiu a direção de onde vinham.
         Ela então aguçou os sentidos, tentando captar os movimentos da noite e, a princípio, ouviu apenas o bater do banzeiro tímido nas margens, depois um silvo de fera rasgou a escuridão, acompanhado pelo bater de asas graúdas e o farfalhar nas copas elevadas, mas Tawacã concluiu ter sido uma coruja caçando lagartos no alto das árvores. Depois o silêncio assustador se impôs na madrugada até a índia ouvir nitidamente os sons de agonia vindos do meio do rio, que a fez dar um pulo tão espantado que de imediato chegou na praia. A índia perscrutou toda a superfície da água, mas não viu nada se movimentando a não ser a correnteza do rio. Depois deu alguns passos na areia até atingir posição mais elevada, onde poderia observar melhor o horizonte, e mesmo assim não enxergou nada parecido com um afogado. Então seu coração disparou diante do mau pressentimento de estar sendo enfeitiçada e saiu correndo até a cabana onde dormia Yepá e as crianças.
         Tawacã estava realmente assustada, mas foi só deitar ao lado de Waiãpi e Samcaxiki e recobrou novamente a certeza das razões. A visão de Yepá dormindo o sono de pedra a fez sentir-se mais aliviada dos terrores acometidos na margem do rio. A índia em seguida dominou os apuros do coração, procurando relaxar na noite para enfrentar a dureza do restante da viagem até a aldeia dos caboquenas, uma longa jornada rio acima enfrentando a correnteza de descida e o sol de brasa na retaguarda. Ela logo recobrou o sono, virou-se para o lado onde estava Yepá e adormeceu embalada pela respiração melódica do guerreiro.
         Os sons da noite perderam espaço quando a cantoria dos pássaros anunciou a apoteose da aproximação do sol, o deus Paharamim, e iluminou o mundo de novo ao conforto dos necessitados de sua luz, como era o caso do Yepá, Tawacã e as duas filhas, sobrando ainda aos adultos a obrigação de remar quase até o sol a pino, sem as árvores dos igapós a proteger-lhes do calor, embora empurrados pelas rajadas fortes do vento do Canaçari. Antes do sol surgir no horizonte, Yepá se pôs de pé e foi colocar mais lenha na fogueira, onde assou a primeira refeição do dia. Tawacã permaneceu deitada sobre a cama de palha, aproveitando o frio do amanhecer, e colou o corpo contra os das crianças, aquecendo-as com o calor impetuoso que a afligira durante toda a noite.
         Yepá colocou os peixes na grelha de gravetos, esperando aquecer um dos lados e, em seguindo, virou-os com os dedos, num movimento rápido e preciso, como se não tivesse passado toda a vida repetindo o gesto nas solidões de suas viagens. Esperou também o beiju de mandioca ficar assado e só então chamou a cunhada para se alimentar e dar de comer às duas filhas. Tawacã repetiu o gesto de primeiro deixar mamar Samcaxiki, enquanto com a outra mão amassava a pasta de peixe e mandioca e dava a Waiãpi o bolo na boca. A criança mais velha comia com satisfação, mas a caçula não encontrava posição de mirrar os peitos da mãe e começou a chorar, forçando a índia a dispensar os cuidados com Waiãpi e melhor acomodar a pequenina.
         Depois as duas crianças se fartaram e deixaram a mãe de lado, procurando correr na areia em busca de diversão. Neste momento, Tawacã preparou a mistura de peixe e mandioca e começou a comer, mastigando, mas com os pensamentos aprisionados na lembrança da madrugada, com os gemidos desesperados descendo o rio, invisíveis aos seus olhos, mas tão reais quanto seriam se fossem gritados ao seu lado. Ela viu Yepá preparando as embarcações para retomar a viagem, viu as filhas brincando na areia sem outra preocupação a não ser a de se divertirem, mas viu também vultos anunciadores de tragédia e imediatamente pensou que Matepi poderia estar morta.
         - Vamos adiantar esta viagem, porque boas notícias não nos esperam na aldeia Maquará, disse Tawacã ao cunhado.
         - Estás com mau pressentimento em relação à tua irmã? questionou Yepá, que desde cedo observava o olhar de Tawacã perdido no infinito, como se tivesse vendo algo que ele não podia perceber.
         - Durante a noite toda eu ouvi uns gritos vindo do rio, contou ela ao caboquena, mas não via ninguém passar na correnteza.
         Yepá olhou a cunhada com espanto, pois conhecia o poder da esposa do irmão e tinha visto muitas vezes as feitiçarias de Nahpy, assustando-se com a capacidade do pajé de invocar espíritos dos mortos nas cerimônias em volta da fogueira, nas noites da ilha Saracá. Sabia dos preparativos de Tawacã para suceder o pai como guardiã dos conhecimentos dos guanavenas e por isso não duvidaria que ela ouvita mesmo os gemidos que relatava.
         - Os gemidos eram de mulher? quis saber Yepá.
         - Não. Pareciam gemidos de todo um povo, respondeu Tawacã, e as palavras sacudiram os músculos do caboquena. Neste momento um furor rasgou o coração dele com o agouro pairando sobre sua gente e o fez montar na embarcação, colocando a pequena Samcaxiki na canoa dele e puxando a outra onde iam Tawacã a Waiãpi.
         Yepá remava com pressa assustadora, subindo o rio velozmente como se a correnteza estivesse a seu favor e sem se dar conta de estar puxando duas embarcações, a dele e a da cunhada, enfiando fundo o remo na água para conseguir todo o impulso à frente. Tawacã seguia atrás, auxiliando o cunhado nas remadas, mas sua força não podia se comparar e de Yepá, até porque este era impelido por seus presságios e estava determinado a chegar na aldeia e se certificar das condições de sua gente.
         Quanto mais se aproximavam da aldeia Maquará, mas os indícios de tragédia se anunciavam, com urubus pairando nas margens do rio e o primeiro cadáver avistado, deitado na praia como se descansasse de viagem longínqua, os olhos mirando o céu e com as aves carniceiras a lhe devorar as sobras do rosto. Pelas indumentárias que ainda vertia, foi fácil saber não se tratar caboquena, mas Yepá reconheceu logo o colar trançado no pescoço com penas e sementes de outra região.
         - Esse índio é da Mundurucânia, afirmou ele, ao observar o colar usado como proteção pelos guerreiros dessa tribo distante.
         - Deve ser algum bravo dos que chegaram de visita na aldeia, logo depois de tua partida, confirmou Tawacã, para espanto do caboquena.
         - O quê os mundurucus faziam no Maquará? indagou o índio, sabendo que visita de guerreiros vindos de tão longe só podia trata-se de assunto de valiosa importância.
         - Eles tratavam somente com Meyki, respondeu ela, adiantando o óbvio ao cunhado, porque somente podiam estar acertando os detalhes de novas batalhas contra os muras, ou então contra os guanavenas.
         Os navegantes diminuíram a velocidade da marcha devido novos corpos surgirem boiando no leito do rio. Era fácil identificá-los pelo amontoado de aves em cima deles, num festim macabro a anunciar a chacina. Os cadáveres estavam de tal forma vilipendiados que não parecia obra somente de urubus. Alguns estavam sem cabeças, outros desmembrados, alguns tinham lanças profundamente encravadas no peito que custava distinguir se eram realmente quem pensavam que fossem. Pelo estado dos guerreiros mortos ficou claro a Tawacã e Yepá que se tratava de ataque dos muras e, ainda, campanha de vingança, feita com intenção de punir os caboquenas pelas guerras travadas nos últimos tempos.
         Os índios agora navegavam em velocidade de espreita, temendo serem atacados de surpresa pelos inimigos e assim seguiam perscrutando o horizonte em busca de possíveis tropas de muras, por ser provável que se alguns bravos tentaram a fuga rio abaixo, seriam perseguidos até a aniquilação total. No entanto, a navegação rio acima se mostrava tranqüila, até aparecerem os sinais de fumaças a anunciar que a aldeia Maquará estava ainda em chamas, com o negrume do céu se misturando aos rolos de fumaça e aos urubus em vôos panorâmicos sobre os restos da aldeia dos caboquenas.
         Yepá procurou se precaver dos perigos e decidiu seguir sozinho até a aldeia, deixando a cunhada e as crianças escondidas na mata, enquanto ia andando pela segurança da selva na tentativa de averiguar o acontecido. Tawacã ficou sentada à sombra de uma árvore, observando o cunhado sumir nas brenhas da selva, procurando manter a calma e tranquilizar as filhas, pois estas pressentiam a tragédia prestes e ser revelada quando o caboquena retornasse com as notícias da aldeia. A índia se ocultava a qualquer ruído, amedrontada diante da perspectiva de vir a ser capturada pelos inimigos de sua gente, ainda mais quando teria de proteger as duas filhas, cujos destinos poderiam ser traçados de forma bem diferente caso fossem levadas ao cativeiro dos muras.
         Ela esperou Yepá retornar até o início da tarde. Depois ficou esperando a noite se impor sobre o mundo e não pregou os olhos durante a madrugada toda aguardando a volta do cunhado. Pela manhã, Tawacã não pode conter a angústia e partiu com as duas filhas, a pé, em direção à aldeia dos caboquenas, marchando com dificuldade pela areia, carregando ora uma filha, ora as duas ao mesmo tempo, oprimindo seu medo de continuar caminhando em frente, sem temer o encontro com os inimigos, que a matariam com golpes de bordunas. Cada passo era encorajado pela ânsia de chegar logo e descobrir a verdade já anunciada há dias, que desvanecia as esperanças a cada contorno do rio, a cada lufada nauseabunda de morte próxima e com o cheiro forte da fumaça de aldeia queimando a anunciar-lhe a destruição de sua gente.
         Os passos de Tawacã levaram-na ao encontro da verdade quando avistou o local onde antes estava a aldeia Maquará, mas seus olhos apenas viram a fumaça subindo em direção às nuvens, enquanto urubus contornavam nas alturas em busca dos melhores ares. No solo a putrefação foi o que restou da tribo dos caboquenas, com corpos dos guerreiros espalhados em todas as direções, muitos deles impossíveis de identificar se eram de sua gente ou dos inimigos. Tawacã caminhou entre a destruição, mas não conseguia reconhecer nenhum dos mortos, devido todos lhe parecerem estranhos, como se não fossem há poucos dias parentes a dividir as tarefas do dia e a compartilhar dos banhos e da comida nos momentos de descanso.
         Tawacã estava atônita diante do caos impostos à aldeia, paralisada diante da grande oca onde até dias atrás dormira com seu marido e as filhas, cercada por parentes de Monawa e as tantas famílias dividindo o local em comum. Da construção restava apenas um amontoado de carvão e cinzas, enquanto corpos de mulheres e crianças se misturaram aos dos guerreiros tombados nas proximidades, mostrando que ali se desenrolou batalha feroz entre inimigos. A índia procurou pelo corpo do marido, mas não conseguiu identificar entre os despojos algo semelhante ao que fora Monawa e sua busca levou a outros locais da antiga aldeia, caminhando por onde outrora fora a casa de Meyki, e ali pode ver nitidamente entre os cadáveres o corpo do cacique. Estava destroçado pela fúria dos muras e a cabeça havia sido levada como troféu pelos inimigos.
         O cenário da carnificina entorpecera a índia e as filhas, ambas agarradas ao corpo de Tawacã, sem soltar lágrimas ou gemidos de choro, apenas olhando aterrorizadas o resultado do conflito que haveria de suscitar ainda mais mortes em nome da honra e da vingança. A índia passava entre os destroços, espantando de vez em quando os urubus retardatários que haviam chegado depois do grande banquete da chacina. Ela seguia como se flanasse em outro mundo, sofrendo o impacto desastroso das políticas de alianças das tribos aliadas, que sempre resultavam no sofrimento dos povos do lago Canaçari.
         Ela caminhou até a margem do rio, encontrando apenas mortos por onde passava, mas um movimento furtivo a trouxe de volta à realidade e foi quando avistou Yepá sentado no tronco caído na praia. O índio estava estarrecido diante do cenário macabro da aldeia destruída. Olhava a outra margem do rio, por trás da floresta, na direção do horizonte onde estavam localizadas as terras dos muras. Ele havia contado os mortos de sua gente e também dos inimigos, percorrera toda a extensão da aldeia e só vira a destruição e agora jurava perante os ancestrais a prometida vingança para compensar a destruição de seu povo.
         Tawacã se aproximou do cunhado a passos largos, mas a atenção do bravo só se voltou a ela quando a índia estava diante dele, gritando desesperada que a acudisse, porque senão seria ela a enlouquecer em decorrência de tanta tragédia. Yepá pode em fim erguer-se do transe e então agarrou Waiãpi em seus braços e puxou a cunhada para dar-lhe a força que a faria suportar o trauma. Eles precisariam de muita coragem nessa jornada, mas a índia firmou o corpo na areia, se recusando a abandonar os parentes tombados na aldeia Maquará.
         - Vamos embora daqui, pediu Yepá. Não há nada que possamos fazer por eles.
         - Só saio quando encontrar o corpo de meu marido, respondeu Tawacã com determinação, enquanto o cunhado tentava levá-la às terras dos guanavenas.
         - Não precisas te preocupar, Monawa não foi feito prisioneiro dos muras, mas tu não encontrarás o corpo dele, os bichos o comeram, afirmou o índio.
         - Só me faltava saber que meu marido passara pela humilhação de ser devorado como prisioneiro de guerra pelos muras, resignou-se a responder a índia guanavena.

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