segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Capítulo 21 - Tocaia dos Mortos

         YEPÁ DEMOROU ALÉM DO PLANEJADO NA VIAGEM DE VOLTA, POR ISSO FICOU SURPRESO ao chegar à aldeia dos caboquenas e lá encontrar Matepi entre as gentes que o esperava na praia. Ela estava com a barriga um pouco arredondada, revelando o estado de prenhez recente, e os cabelos ganharam volume, encobrindo seus ombros e dando-lhe um porte de fêmea, que ainda não havia revelado quando foi levada à casa das mulheres para cumprir um ciclo de águas de reclusão. O guerreiro enfrentara uma viagem penosa, vencendo correntezas e ventos nem sempre amigáveis, passara dias remando e muitas luas descansando em praias perdidas nas imensidões dos rios navegados, mas sempre em seu pensamento estava a figura de Matepi, e agora ela estava ali, diante dele, e grávida.
         O guerreiro recebeu impassível a festa do povo e nem mesmo a criançada correndo a sua volta despertou nele qualquer emoção. Ele não tirara os olhos de Matepi entre os índios da tribo. Foi levado ao encontro do maioral caboquena, a quem relatou a conversa mantida com os caciques das terras da Mundurucânia, se desculpou pelo longo período de ausência e por ter atrasado os planos de Meyki, e com isso modificando o seu próprio, mas desde quando pisara na aldeia, percebeu de forma inexorável não lhe restar outra opção a não ser raptar Matepi do marido dela e viver banido para sempre. Só precisava saber quem desposara a bela filha do pajé dos guanavenas durante sua ausência.
         - Foi o cacique Meyki, respondeu Tawacã, quando Yepá perguntou à cunhada com quem a irmã desta se casara, uma vez que não tinha pretendente contratado quando fora levada à reclusão da casa das mulheres.
         Ela então repetiu a história sabida pelos parentes de Yepá de como Meyki trouxera da aldeia dos guanavenas não só Matepi como também Mauri, a filha do cacique Taobara, depois de selar com ele um acordo de fidelidade. Fora um acordo costurado na política complicada do pós-guerra contra os muras, quando cada cacique decidiu oferecer um rumo diferente ao seu povo, mas logo decidiram continuar trilhando a história compartilhada entre ambas as nações ao longo de várias gerações, inclusive com ancestrais venerados em comum pelas duas tribos.
         Na verdade, Taobara não confiava nos novos aliados muras e Meyki desconfiava de poder traçar uma aliança duradoura e vantajosa com mundurucus e saterês, visto que as duas tribos deixaram de lutar bravamente quando estavam prestes a conquistar a aldeia de Itacoatiara, afugentados pelos reforços chegados no último momento da batalha. O cacique guanavena era levado a desconfiar dos muras por causa das desavenças ancestrais entre eles e Meyki não conhecia muito bem os novos aliados e também acreditava que estes poderiam se voltar contra seu próprio povo, por isso uma aliança entre as antigas tribos sempre traria mais segurança a todos.
         Taobara foi o primeiro a procurar Meyki e traçou os rumos da aliança entre as três tribos do Canaçari. Mandou buscar Jauaraçu em sua aldeia, no Sanabani, para a conferência com os caboquenas e este veio acompanhado de seus guerreiros mais próximos e dos velhos com quem sempre se aconselhava quando decidia o destino dos bararurus. A comitiva se encontrou com Meyki na foz do rio Orowo, na praia de frente à ilha Saracá, onde fizeram uma fogueira e durante três dias e três noites dialogaram em busca de uma política de consenso às tribos.
         O maioral guanavena propôs formar uma tropa com bravos de todas as tribos e deixá-la estacionada na ilha Saracá, alvo principal da possível campanha de retaliação por parte dos muras. No entanto, Meyki pensava que o caminho mais óbvio do ataque fosse pelo rio Orowo, por isso não pretendia se desfazer de seus homens e enfraquecer as próprias defesas. As terras de Jauaraçu ficavam mais distantes da fronteira com os muras, nos confins do Sanabani, e o cacique bararuru prometeu enviar alguns guerreiros para formar a tropa, mas queria contar com seus homens se precisasse enfrentar outros perigos advindos do interior da floresta. A discussão como sempre se intensificara entre Taobara e Meyki, com ambos travando uma luta pessoal pela liderança na região.
         Taobara tinha interessa em manter os caboquenas sob sua influência, como sempre fora com Uataçara, mas desde a chegada de Meyki ao poder, as relações com essa tribo havia se enfraquecido e o maioral guanavena já fora desafiado inúmeras vezes na capacidade de comandar os aliados. Mas Taobara agora jogava uma política perigosa, arquitetada na aliança com os eternos inimigos muras e sabia que poderia perder apoio também dos anciãos guanavenas, o que minaria ainda mais sua liderança como chefe de guerra. Ele precisava fazer uma política enviesada, ora tratando os muras como amigos, de quem manifestava desconfiança tribal, ora chamando ao seu lado Meyki, este cada vez mais independente e arredio ao seu comando.
         O cacique guanavena colocou a proposta de estreitar os laços entre ele e Meyki, oferecendo a ele a filha Mauri em casamento, pois a mesma fora recuperada dos muras durante os combates e estava sem marido. Meyki sabia da história da prometida e não viu grandes vantagens para ele, pois podia escolher esposa melhor qualificada, ainda mais tendo Mauri vivido com os muras, casado e gerado filhos aos inimigos. Mas o cacique caboquena não era um negociador ingênuo, capaz de se deixar enredar pela artimanha de Taobara. Ao contrário, farejara algo de estranho no interesse do guanavena em estreitar aliança impossível de ser desfeita e poderia tirar proveito da situação, levando até as últimas conseqüências a verdadeira intenção de seu rival em realizar o casamento importante para a paz entre as tribos.
         - Aceito sim sua filha como minha esposa, respondeu Meyki, fingindo orgulho demasiado para dote pequeno. Mas quero também Matepi, sua sobrinha, que saiu da casa das mulheres e está apta a ser desposada.
        Taobara sentiu a intenção de Meyki em elevar sua aposta até o limite, mas reconheceu o cacique valoroso da tribo amiga, com valentes guerreiros e exigia algo muito normal a um chefe em sua posição. O maioral caboquena queria ter ao seu lado duas esposas guanavenas, embora fosse casado com índia de sua aldeia, e teria o pedido aceito. Taobara também tinha mais de uma esposa e não negaria este direito a outro cacique, ainda mais quando as mulheres seriam o preço a pagar por aliança de interesse dos guanavenas.
         - Tu mereces ter mais de uma esposa, porque és homem honrado e saberás respeitar as mulheres de minha tribo, concordou Taobara, acertando com Meyki o casamento o mais breve possível.
         Uma parte do trato estava arranjada, sem haver problema em fazer Mauri, agora solteira, casar-se com o cacique caboquena. A dificuldade estava em Matepi, filha Nahpy, pois este poderia se opor, principalmente com o cacique caboquena exigindo duas esposas, demonstrando desta forma dar pouca importância às mulheres da tribo. O cacique conversou com o pajé, mas não tratou do assunto sobre o pedido de casamento, se limitando a reportar-lhe a respeito das novas alianças que garantiam a superioridade bélica da tribo sobre as demais do Canaçari.
         Taobara falou ainda sobre a formação da tropa de defesa, composta por guerreiros aliados, para proteger a ilha Saracá da esperada campanha de retaliação dos muras, pois era sabido ser estes índios incapazes de perdoar uma ofensa contra seus territórios. Disse que os guanavenas estariam mais protegidos contra os inimigos e poderiam cuidar de sua gente, se fortalecendo em guerreiros e proteger os vastos limites do lago, sempre desejado por outras tribos, mas nunca conquistado.
         Nahpy ouviu atento o cacique, concordou que a situação era vantajosa aos guanavenas, pois a tribo ficaria fortalecida pelos novos termos da aliança e imune aos ataques de surpresa. No entanto, as palavras de Taobara, articuladas com ênfase nas vantagens, deixava transparecer algo de suspeito, ainda mais sendo conhecida a capacidade de Meyki, um cacique ardiloso e negociador sagaz, em trazer à luta perdida duas tribos dos confins do mundo.
         - O que tu oferecestes em contrapartida a Meyki? quis saber Nahpy de Taobara.
         - Minha filha Mauri vai se casar com ele, respondeu o cacique.
         - É um valor muito pequeno a ser pago pela fidelidade dos caboquenas, contestou o pajé, fazendo o cacique reconhecer que a filha Mauri não era botim de grande valia à ambição de Meyki.
         - Ele também quer tua filha Matepi em casamento, falou Taobara em sussurro, esperando ver a reação do pajé ao saber da proposta do cacique caboquena.
         Nahpy não aceitou de imediato o casamento de Tawacã com Monawa, embora agora reconhece o valor do caboquena de bom esposo e pai dedicado das netas, mais por influência de sua esposa Xirminja, também filha da tribo do rio Orowo. Acostumara-se a mandar na família de Tawacã com o consentimento de genro, que nunca encontrara coragem de desafiar a força do pajé. No entanto, não seria fácil a Nahpy ter a mesma influência sobre o destino de Matepi depois desta se casar Meyki, homem de temperamento forte e acostumado a impor suas decisões pela força.
         Taobara tentou convencer o pajé de que o casamento seria a melhor opção aos destinos dos guanavenas, pois assim o sangue de sua tribo estaria se cruzando com a liderança dos caboquenas, espalhando a cultura da ilha Saracá até os confins das terras do rio Orowo. O pajé não se mostrava convencido. Sua oposição ao nome de Meyki era nada se comparado a que ele dedicou por quase um ciclo das águas ao matrimônio de Tawacã com Monawa. Para Nahpy, Matepi estaria bem casada com o maioral dos caboquenas, viveria na mesma aldeia da irmã mais velha e, ambas, semeariam o conhecimento dos guanavenas entre as gentes de outro povo.
         Mas algo impedia o pajé de aceitar de imediato o casamento da filha mais nova: justamente a imposição de Meyki em querer também Mauri, resgatada dos muras, que depois de viver tanto tempo com esse povo poderia até ser considerada igual a eles. Nahpy tergiversou com argumentos contrários, mas Taobara soube aproveitar a fraqueza nas palavras do irmão, embora também não quisesse falar a verdade de como se dariam as relações na nova família do cacique caboquena, mas por fim teve de admitir como último recurso para convencer o pajé.
         - Não te preocupes, porque Matepi será a esposa predileta de Meyki, falou Taobara ao irmão, encerrando finalmente a discussão na qual ficou decidido que o cacique caboquena desposaria duas índias guanavenas de melhor estirpe: uma filha de Taobara e a outra, de Nahpy, de beleza comentada e reconhecida em toda a região do Canaçari.
         O casamento foi marcado com o intuito de aproveitar as águas ainda na enchente, quando havia praias e abundância de caça e pesca para festa dessa magnitude ser comemorada durante vários dias, tanto nas aldeias dos guanavenas quanto na dos caboquenas. Toabara queria impressionar com fartura assim como o fizera em seu casamento com Cayabi. Ele estava casando sua filha Mauri, que teve o mau destino de ser entregue aos inimigos para livrar seu povo da tragédia.
         O cacique caboquena queria se redimir diante da filha, dando-lhe uma boda de grande festividade, por isso não poupou esforços dos bravos na busca por plantas exóticas para enfeitar o cocar de Mauri. Os homens mais hábeis caçavam na mata pássaros de penas deslumbrandes, porque o cacique queria um colar como nunca se vira em toda a ilha Saracá. Mandou espionar os preparativos de Matepi, com rastreadores seguindo os passos de Nahpy quando este entrava na selva em busca de ervas para o banho matrimonial da filha. Taobara queria para Mauri tudo igual, ou melhor, ao que estava sendo preparado a Matepi, pois já bastava ser esta a esposa preferida do cacique enquanto sua filha seria apenas um prëmio menor na composição familiar de Meyki.
         Nahpi não se incomodava com o interesse furtivo do irmão no preparo do enxoval de Matepi, mas se chateava com a escamoteação do cacique, fingindo querer saber coisa, enquanto seus olhos denunciavam o real objetivo de estar por ali. O pajé não fazia segredos dos banhos que preparava, nem dos óleos e ungüentos para proteger o corpo da noiva na noite do consórcio, por isso ofereceu-se de boa vontade em cuidar dos preparativos de Mauri, e até evitar a competição antecipada entre as duas primas.
         - Mande-me dois guerreiros e algumas mulheres e eu me encarrego de preparar tua filha para o casamento, disse Nahpy ao cacique, que aceitou o pedido do pajé e agradeceu humilde, quase reverencial. Taobara sabia que somente o irmão era capaz de preparar a filha para ser feliz no casamento e a prova maior dessa convicção era Cayabi, a quem Nahpy banhara em infusões e hoje era esposa abdicada e mãe diligente.
         Logo os ajudantes estavam a disposição do pajé, prontos a realizar qualquer pedido feito por ele, e demonstravam servilidade para não faltar nada, nenhuma erva, flor ou casca de árvore ao banho matrimonial de Mauri. Os homens traziam plantas fora da estação, cascas de árvores não existente na ilha e folhas de palmeiras de açaí, crescidas no alto das ramas, onde mesmo a escalada difícil valia a pena para o pajé preparar a infusão com a qual se banharia a filha do cacique. Uma das mulheres sugeriu acrescentar na fervura banha de tartaruga, que destrava os ossos, afinal Mauri estava sem marido há bastante tempo, e outra, aproveitando-se da lembrança oportuna de a noiva já ter sido casada, e com um mura, recomendou botar também umas cascas de cajueiro, cujas propriedades apertativas eram conhecidas por todas as mulheres da região.
         Completaram o trabalho ao mesmo tempo em que a família de Nahpy, comandada por Tawacã, terminara os preparativos de Matepi. A festa das bodas estava programada na ilha Saracá, onde já se encontrava Meyki e sua grande comitiva de bravos caboquenas. Seria a primeira noite do esposo com as novas mulheres e Meyki trazia o orgulho incontido quando todos lembravam da beleza prematura de Matepi, mas também não esqueciam de enaltecer Mauri, a filha de Taobara, que ainda conservava a formosura dos tempos quando fora dada como dote aos muras.
         O noivo se mostrava ansioso para o início das comemorações, andando com seu séqüito de bravos por toda a ilha, como se inspecionasse os detalhes do casamento, para sua festa, na aldeia do rio Orowo, ser mais grandiosa. A noite foi caindo e então muitas fogueiras foram acesas em toda a praia do Terceiro, local escolhido da cerimônia, e foi com grande galhardia que Nahpy e Taobara trouxeram as filhas e entregaram-nas ao cacique dos caboquenas, que as recebeu com longos agradecimentos, saudando todos com sua borduna erguida em gesto de vitória e recebendo dos presentes os gritos de viva oferecidos por todas as gentes. Meyki tinha os olhos em fogo ao lado das novas esposas, belas e preparadas com esmero pelas artimanhas do pajé, cuja reputação de transformar mulheres maduras em jovens corria solto por todas as bandas.
         A festa teve início com os peixes sendo servidos em abundância, se estendeu até a lua cheia clarear a todos no alto de suas cabeças e se prolongou até o amanhecer do dia, quando ainda eram servidos os petiscos mais saborosos. Meyki se retirou com suas noivas para a cabana erguida no alto do morro de onde se vislumbrava toda a praia do Terceiro e lá permaneceu protegido por tropa de caboquenas, aproveitando-se de sua condição de maioral. Quando as primeiras luzes da manhã apareceram nas bandas da Demanda, ainda tocavam os tambores da festa chamando os guerreiros para prolongar as comemorações por todo o dia seguinte. Mais lenha foi jogada nas fogueiras e mais peixes e caças servidos aos presentes, com outro dia de grande regozijo às tribos dos guanavenas e caboquenas, unidas no sangue do matrimônio, e também aos bararurus, os convidados que mais se divertiam por estarem alheios aos conchavos resultantes deste casamento excêntrico.
         Conforme o calor foi se impondo na ilha Saracá, mais pessoas se dirigiam ao banho matinal na praia do Terceiro, alegrando ainda mais a festa contínua dos índios. Chegou Taobara com suas esposas, inclusive a mãe de Mauri, com quem o cacique era pouco visto desde seu casamento com Cayabi. Veio também Nahpy, acompanhado de Xirminja, os filhos e netos. Na praia encontraram Monawa ainda inebriado pelo caxiri e alegre devido seu cacique agora ser também seu parente, por estar casado com a irmã da esposa. O bravo caboquena quis se pôr de pé quando viu Tawacã aproximando-se com Waiãpi e Samcaxiki, mas foi derrubado pelo terrível porre da bebida fermentada, arrancando risos dos companheiros e das filhas pequenas.
         Aiauara não se encontrava ao lado de Monawa porque sua roda de amigos incluía somente guanavenas, e entre eles Pikiwaha, cujo rosto deformado parecia ainda mais feio sob o efeito do caxiri. O herdeiro de Taobara viu de longe quando Meyki saiu da cabana onde passara a noite, acompanhado das duas esposas, e logo foi cercado por guerreiros que montaram guarda no local. A comitiva do maioral caboquena desceu o morro em grande alarido, fazendo festa, todos satisfeitos da proeza de Meyki conquistar mais duas mulheres para a tribo.
         Quando chegaram à praia, o maioral caboquena se dirigiu à acapuraneira onde estava Taobara, descansando sob a sombra, e foi felicitá-lo pela festa da noite anterior. As duas esposas de Meyki também se aproximaram, mas traziam em suas faces as marcas do oposto. Mauri era a resignação estampada na cara, condição aceita já na primeira noite como esposa secundária, para quem a atenção do esposo reservava apenas a obrigação momentânea de um ato sexual de forma a espalhar seu sangue. A tristeza de Mauri estava escrita em seu destino desde sempre, quando foi levada na canoa e dada aos muras como pagamento pela paz com seu povo e agora, em um casamento de interesse, no qual ela era a contrapartida de uma aliança formulada entre seu pai e o novo marido.
         Matepi tinha outra expressão, com seus olhos flutuando como canoa nos banzeiros do Canaçari, saltitando a alegria da primeira noite de casada, na qual encontrara o amor do esposo, guerreiro de árduas batalhas, tanto em campo de guerra quanto na rede. A jovem índia transpirava alegria, deixando saltar suspiros imprevistos quando as lembranças recentes das núpcias a transportavam da realidade ao mundo de sonhos, onde só cabiam ela e o marido. Nem a presença de Mauri ao seu lado lhe era um entrave de gozar a felicidade, pois as atenções de Meyki eram dirigidas somente a ela, ficando a prima relegada à condição de segunda esposa.
         As comemorações do casamento se estenderam por outras noites e as comilanças se repetiram, assim como a distribuição de caxiri aos homens, que se embriagavam até caír no chão sob o efeito da mistura. Quando se fartaram das festividades na ilha Saracá, Meyki ordenou seu povo a tomar o rumo do rio Orowo e convidou os parentes guanavenas e os bravos bararurus. Todos foram à aldeia Maquará, prosseguir as noites de festas, com o cacique caboquena mostrando que seu território também era dotado de fartura de peixes e caças. Foram tantas as  comidas servidas e tantas as bebidas oferecidas aos convidados que ficou a certeza de Meyki poder ter mesmo quantas esposas quisesse.
         Matepi e Mauri foram viver na aldeia Maquará e logo após a passagem de duas luas a filha do pajé começou a sentir os enjôos da gravidez. Ela procurou Tawacã em busca de orientação e a irmã mais velha ofereceu toda a ajuda possível, preparando-a para parto tranqüilo. A esposa de Monawa levou Matepi à mesma árvore onde dera à luz às filhas e recomendou-lhe procurar o lugar quando sentisse as contrações do parto, porque ali batia o vento saudável do Canaçari e suas raízes estavam voltadas na direção da ilha Saracá.
         - É bom parir olhando a terra onde nascemos, recomendou Tawacã à irmã.
         A jovem esposa de Meyki passava os dias acometida de saudade da terra natal. Ela chegou algumas vezes a pedir ao esposo para levá-la até sua família, mas sempre lhe fora negado o desejo. O cacique desconfiava da influência de Nahpy na vida das filhas, acreditando que o pajé poderia preparar uma beberagem e assim domar a vontade de mandar na esposa. Matepi acalmava a angústia ao lado de Tawacã, lhe narrando as mesmas aflições vividas quando fora trazida a conviver com os caboquenas, logo após ser raptada por Monawa, mas a jovem índia não conseguia controlar os sentimentos e então se entregava às lágrimas, ainda mais quando o marido partia para longas caçadas com seus bravos.
         Por seu lado, Mauri escondia as aflições tecendo cestos de palhas e fazendo utensílios de argila com as técnicas aprendidas junto aos muras. Não era nunca procurada pelo esposo por isso adiara o sonho de dar um filho ao cacique dos caboquenas, mas mesmo assim não abdicava ao direito de ostentar a condição de mulher casada com o maioral, se considerando superior às outras mulheres, menos pelos amores matrimoniais, e mais por sua habilidade com as mãos, produzindo peças que arrancavam olhares de espanto e inveja das demais índias. Seu drama pessoal ela vivia na solidão, sem conversar com Tawacã, a prima mais velha, e menos ainda com Matepi, a rival que ela considerava culpada por seus dissabores.
         A barriga de Matepi se avolumava com o passar dos dias e quando seu esposo chegava das aventuras nas matas trazia sempre presentes à esposa querida: colares de penas e sementes raras, encontradas apenas por desbravadores das florestas. A jovem índia se recuperava das tristezas, mas logo as conversas entre as mulheres traziam-na de volta à solidão e não adiantava os carinhos de Meyki nem os afagos de Tawacã. Ela queria mesmo era retornar à ilha Saracá, interrompendo afinal o período mais longo que se afastou de sua terra.
         Matepi enfrentou a reclusão na casa das mulheres com resignação do sangue de sua família, agüentou a provação sem lágrimas, embora em muitas noites tenha pensado sério em abandonar a cabana e fugir para bem longe da ilha Saracá. Mas sempre refletia e chegava à conclusão de que tal atitude a colocaria sempre na condição de criança, além de envergonhar os parentes e afastar pretendentes no futuro, pois nenhum guerreiro de orgulho gostaria de casar com quem fugiu da casa das mulheres. Matepi recebia a visita da mãe e se mostrava forte, inclusive aconselhando as outras jovens a suportar o período de reclusão, mesmo estando a ponto de desistir de tal empreita.
         Nas noites de temporal, quando o vento parecia querer levar embora a cabana onde as meninas estavam e os raios rasgavam com suas luzes a escuridão do interior, Matepi se recolhia em si mesma, buscando forças onde não mais as tinha, intentando se mostrar valorosa diante dos olhos de sua gente. Ela não tinha pretendente formalizado e nem guardava nas lembranças a figura de nenhum guerreiro por quem poderia mostrar interesse, mas se sabia desejada por muitos, inclusive já percebera em várias ocasiões os olhares ardentes disparados a ela por Yepá, o cunhado da irmã, contador de histórias e hábil na pesca e na caça.
         No entanto, a vida de casada se mostrara muito mais insuportável depois da gravidez, quando Meyki lhe diminuiu o interesse nas noites, chamando até mesmo Mauri à rede do cacique. Os enjôos aumentaram sua indisposição e o ventre em crescimento a fadigava sempre mais, por isso preferia ficar sentada na praia, vendo as crianças brincando no rio como sempre fizera nos tempos de menina, mas a vontade de correr na areia a desestimulava e apenas o torpor de gravidez tomava conta do corpo. Matepi não encontrava posição confortável para descansar e se levantava freqüentemente, dando caminhadas curtas, seguindo em frente, parando para descansar e voltando a caminhar de novo, na busca desesperada de chegar mais perto de sua ilha querida.
         Numa manhã, quando o marido partiu em caçadas rotineiras, Matepi decidiu caminhar pela praia em busca de consolo contra a saudade e foi em frente até cair exausta na areia. Ficou algum tempo olhando o azul do céu sob a cabeça e imaginou animais sombrios formados pelas nuvens ligeiras, depois se ergueu com esforço e voltou a caminhar em direção a foz do Orowo. Em pouco tempo estava tão afastada da aldeia que não encontrava mais vestígios dos caboquenas e decidiu continuar em passos apressados, percorrendo enseada atrás de enseada até chegar na boca do grande igarapé que interrompeu seu caminho. Ficou sentada na areia, recuperando as forças perdidas na andança, mas quando se viu disposta a cruzar as águas a nado ouviu os gritos de Tawacã chamando-a ao longe. Ela então teve um momento de hesitação e saiu da água, em prantos tão dolorosos que a irmã não encontrou dificuldade em localizá-la.
         - Que passa contigo, Matepi, disse Tawacã à irmã caçula, procurando consolá-la enquanto a afastava das margens escuras do Orowo.
         - Eu quero morrer, minha irmã, respondeu Matepi em lágrimas fartas.
         As duas voltaram caminhando à aldeia dos caboquenas e quando Meyki retornou da caçada Tawacã lhe relatou o acontecido, mas mesmo assim o cacique não autorizou a esposa viajar até a ilha Saracá e rever os parentes. A irmã se comprometeu fazer-lhe companhia, garantiu que nada aconteceria a ela e invocou até os poderes do pai para convencer o cacique dos caboquenas, mas Meyki se mostrou inflexível.
         - Não quero correr o risco de teu pai fazer comigo o que fez com teu esposo, falou Meyki a Tawacã, encerrando o assunto definitivamente.
         Matepi aceitou a decisão do marido. Foi até Tawacã e disse-lhe que o tempo de menina havia se encerrado e agora ela tomaria conta de seu destino, deixando de chorar com saudade da casa paterna, como vinha fazendo. Decidiu ter seu filho na aldeia dos caboquenas e voltar a fazer feliz seu marido depois de largar a gravidez. Não entregaria o homem com quem casara, sendo a primeira esposa, a Mauri, que aproveitava como podia os dias de desespero de Matepi, fazendo agrados em Meyki, na intenção de conquistar a atenção que não lhe era destinada.
         A jovem índia voltou a tomar parte na vida da aldeia, participando com as crianças nas brincadeiras, enquanto seu ventre avolumava cada vez mais, e se inteirava das conversas das mulheres. Muitas das palavras proferidas por elas lhe diziam respeito. Numa tarde, enquanto se divertia nos jogos infantis, avistou uma canoa se aproximando abaixo do rio. Era conduzida por guerreiro determinado a chegar logo no destino, praticamente flutuando na superfície encrespada do Orowo. O desconhecido aproveitava o vento a favor para vencer a correnteza. Ela então mostrou aos meninos e estes correram a contar a novidade da aproximação do navegante solitário e quando este chegou próximo da aldeia todos de imediato os reconheceram: era Yepá, irmão de Monawa, cunhado de Tawacã, a quem todos já consideravam morto outra vez.

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