Durante a noite, quando se acendiam as fogueiras, os bravos comiam em silêncio, sem nada falar sobre seus feitos de guerra, embora fossem muitos os atos de bravuras. Eles estiveram bem próximos de derrotar o inimigo invencível, que conseguiu reverter o resultado do combate no momento quando se punham em fuga. A frustração da derrota era uma doença de todos, com as crianças deixando de brincar na casa dos macacos e as mulheres indo à roça sem as conversas animadas do caminho, envolvidas na tristeza coletiva da guerra perdida.
Os feridos começavam a se pôr de pé, depois de remediados por Nahpy e Tawacã, com ela cuidando com especial atenção as chagas de Monawa, que se mostrava mais forte e confiante quanto mais se aproximava o dia do nascimento do segundo filho, redondo na barriga imensa da esposa, e também com as histórias de sua bravura em combate sendo repetidas por guanavenas e caboquenas. Aiauara fez por merecer todos os cuidados recebidos de seu pai e irmã, mas os que realmente o fizeram recobrar a saúde debilitada foram os carinhos de Tananta, cuja atenção colara-a ao lado da rede do marido, enquanto passava seus dias de repouso. O ventre da esposa de Aiauara mostrava sinais de que nos próximos dias outra criança nasceria na família do pajé.
Pikiwaha teve as feições originais do rosto modificadas pelo efeito da clava inimiga, mas sua expressão ganhara em bravura o que perdera em beleza. Tinha deixado no campo de batalha parte dos dentes e seus olhos não encontraram equilíbrio depois de ser debelado o inchaço da cara, através de cataplasmas e infusões aplicadas por Nahpy. O cacique Taobara se mostrava imune aos ferimentos de guerra, tanto que tomou apenas um chá de folhas de alfavaca-de-cobra e de pronto fez retornar a ordem à sua aldeia, não deixando faltar suprimento às tropas aliadas, que precisavam descansar e comer depois dos dias de provação na aldeia dos muras.
O maioral guanavena queria pôr à prova a hospitalidade de seu povo, por isso, ele mesmo se engajou na tarefa de pescar para oferecer aos guerreiros das outras tribos peixes em farturas. Mandava as mulheres buscar mandioca para fazer bolos e pães, devido todos estarem enfastiados de comer farinha. E quando um de seus caçadores chegou na praia com uma carga de anta na canoa a felicidade voltou à ilha, com crianças correndo na areia em comemoração, em fim, o retorno da paz. Com o passar do tempo o riso assumiu o lugar das faces taciturnas e as lembranças da guerra passaram a fazer parte das histórias noturnas, quando o pajé guanavena relembrava ao povo as glórias e a cultura de sua gente.
Quando chegou o dia dos aliados se separarem, a comoção tomou conta de todas as gentes e as muitas canoas descansando na praia logo tomaram os rumos das aldeias de onde vinheram. Mundurucus e saterês seguiram em direção à Ponta Grossa, remando pelo paraná de Itapiranga e depois pelo labirinto de canais até cruzar o grande rio Amarelo, nas proximidades da foz do Andirá, que conduzia até suas terras. Era uma viagem difícil, tendo de transpor o território mura, mas estes estavam enfraquecidos demais, sem de condições de empreender vigilância acirrada em suas terras.
Taobara mandou alguns de seus homens conduzirem os aliados até os limites das terras dos guanavenas, com propósito escondido de se acautelar contra um possível ataque de mundurucus e saterês, ambiciosos por suas terras e também saber se enfrentaram os muras pelo caminho. Menor interesse tinha em indicar-lhes a melhor direção até o grande rio Amarelo. Desde o início a viagem mostrou suas dificuldades, não só pelos banzeiros e ventos contrários, mas também devido outras tribos mais abaixo do rio terem tomado conhecimento das lutas travadas e, conseqüentemente, da debilidade momentânea dos muras. Com tal informação, maiorais belicosos poderiam se sentir atraídos a realizar incursões no território agora desprotegido. Mundurucus e saterês sabiam do risco de um encontro com tropas assim, e não seria nada agradável aos guerreiros que apenas recentemente abandonaram as armas de guerra.
Nas proximidades do furo de Itapiranga, que levava ao grande rio Amarelo, os condutores guanavenas deixaram mundurucus e saterês à própria sorte, mas estes evitaram esta passagem ao coração das terras inimigas, preferindo seguir até no rio Uatumã, onde navegariam por canais protegidos contra qualquer encontro indesejável. De qualquer forma esta foi a escolha mais acertada, pois evitariam confrontos e poderiam chegar em paz à tranqüilidade de suas terras, pois era certo os muras estarem assumindo o controle dos territórios recuperados.
Logo em seguida à partida de mundurucus e saterês, Meyki reuniu sua gente e seguiu viagem de volta ao rio Orowo, ao encontro de suas terras para dar continuidade aos roçados. Famílias inteiras de caboquenas embarcaram nas canoas com propósito de vencer a forte correnteza do rio, levando provisões oferecidas pelos aliados guanavenas, tanto por amizade quanto vontade de mostrar a generosidade da ilha. Monawa informou seu cacique de que não embarcaria de imediato ao Maquará, pois desejava ficar mais um tempo na companhia dos parentes da esposa, esperando inclusive esta dar à luz ao filho esperado.
O guerreiro caboquena convidou seu irmão Yepá para fazer-lhe companhia durante a estadia na ilha Saracá e este aceitou, também ansioso por conhecer desde cedo o rosto de seu sobrinho, uma vez que Tawacã tivera uma filha na primeira gestação e, agora, todos os parentes de Monawa aguardavam a chegada do varão. Meyki não gostou nada da decisão dos irmãos, mas suas preocupações estavam focadas no futuro de sua gente e isto ocupava espaço demais em seus pensamentos, por isso deu a anuência, condicionando apenas o retorno de Yepá ao Orowo o mais breve possível, logo após o parto de Tawacã.
- Precisamos de ti em nossa aldeia, cuidando do futuro dos caboquenas, comentou Meyki a Yepá, cuja importância na estratégia do cacique era fundamental devido ao conhecimento acumulado em tantos ciclos de água vivendo com os mundurucus e saterês.
Yepá prometeu retornar quando fosse possível e Monawa cometeu um deslize: embora respeitado por sua valentia, porém sem discernimentos a estratagemas políticos, falou que os irmãos estavam se tornando mais guanavenas do que caboquena. Esta observação arrancou risos dos bravos, mas causou má impressão no cacique com relação ao membro de sua tribo.
Meyki e sua gente foram embora da ilha Saracá, depois os seguiram os bararurus, com Jauaraçu no comando de seu povo. O cacique do rio Sanabani perdera muitos de seus homens, mas mesmo assim ainda era um maioral respeitado e, por isso, recebeu cortesias de Taobara, frutos de uma amizade cujos detratores de ambos diziam tratar-se de submissão. No entanto, era imprescindível aos bararurus a aliança visceral com os guanavenas, porque jamais poderiam se estabelecer nas proximidades do lago Canaçari, e dispor de tantas farturas, se não contassem com a amizade e a proteção da tribo da ilha Saracá.
Os guanavenas se despediram dos aliados, oferecendo a eles caças e peixes moqueados para a viagem e os dias de retorno às suas aldeias, celebrando assim a confraternização dos povos da região do Canaçari, que continuavam sem usufruir da pesca farta no grande rio Amarelo, mas do lago eram os senhores absolutos, tendo combatido e expulsados os mais diversos invasores do território cobiçado. Eles voltariam a caçar nos paranás e furos do arquipélago Marupá, onde Monawa sobreviveu às primeiras provações de homens, junto com Tawacã, escapando da perseguição movida por Nahpy.
Os irmãos caboquenas logo se adaptaram à vida na aldeia de Tawacã, saindo para pescar no lago com Aiauara e outros guerreiros, mas evitando se afastar muito dos limites da ilha, por temerem um ataque de represália dos muras. Mas os dias se passaram e a temida vingança não aconteceu, então os guanavenas iam cada vez mais recuperando o domínio sobre o imenso território de água, que incluía lagos e furos e até uma pequena faixa de terra a separá-los do grande rio Amarelo, terras dos inimigos, quando as enchentes se apoderavam de tudo.
Neste período nasceram as crianças na família de Nahpy e Tawacã deu à luz outra menina, esta chamada de Samkaxiki. Tananta se encarregou de por mais um varão no mundo, de nome Ubira. Aiauara se encheu de orgulho, pois seu filho nascera forte e saudável, digno de fazer parte da tribo dos guanavenas e ter como pai um guerreiro batizado nas lutas contra os muras. Samcaxiki também ostentava saúde, mamando além do necesário e tomando os cuidados de Tawacã somente para si, enquanto Waiãpi ficara sob a responsabilidade de Xirminja, sua avó, agora dedicando a experiência em ajudar os filhos a criar dos filhos deles.
Nahpy era o avô orgulhoso de seus descendentes, observando os pequenos netos brincarem em volta das redes, dentro da oca, enquanto preparava suas infusões de fortalecer os corpos alquebrados da filha e da nora. Tananta sofreu mais para se recuperar do parto, mas as terapias do pajé logo a colocaram firme de novo, enquanto Aiauara saía todas as noites para pescar com Monawa e Yepá e pela manhã os três retornavam com fartura de peixes, o alimento da grande família do pajé e dos outros guanavenas. As pessoas da tribo elogiavam a perícia dos pescadores e passaram a respeitá-los ainda mais, quando deixaram os rios e lagos e se aventuraram na floresta, onde a esperteza de Yepá na lida da caça rendeu aos três o galardão de caçadores formidáveis, a quem todos queriam acompanhar nas aventuras pela selva.
O caboquena misterioso recebia atenção de boa parte da tribo, que escutava suas aventuras na selva, entre mulheres guerreiras, mundurucus e saterês, com o mesmo interesse dedicado às histórias de Nahpy. Na noite, em volta das fogueiras, assando os prêmios das caçadas, os índios pediam inúmeras vezes que Yepá narrasse suas aventuras e o povo ouvia calado, com respiração contida, de como o caboquena sobrevivera na terra das índias valentes e de sua bela cacique chamada Mauara. Ficavam extasiados pela narrativa, tantas vezes contada numa profusão de pausas e suspenses que prendia os ouvintes às palavras e os colocava como protagonistas das aventuras fantásticas.
Nahpy era o ouvinte mais atento, esperando por falhas nas narrativas de Yepá ou palavras que não se encaixavam na realidade, mas o caboquena era conhecedor do ofício e já repetira muitas vezes essas aventuras ao seu povo para cair em contradição ou desdizer os fatos contados anteriormente. O pajé estava enciumado pela atenção de seu povo às histórias do caboquena, mas se punha a salvo de maquinações e também escutava as aventuras incomuns do índio que soubera sobreviver em terras distantes, escapando do destino fatal de prisioneiros das mulheres guerreiras e conquistando amizades entre tribos com as quais convivera.
- Tu tens o grande Paharamim ao teu lado, disse Nahpy a Yepá quando este tomou uma pausa entre uma história e outra.
O caboquena recebeu o vaticínio com orgulho e seus olhos se incendiaram na certeza estar vindo de um homem de grande sabedoria, o pajé Nahpy, cujo conhecimento rompera de longe as fronteiras de sua tribo e se instalou na cultura de todos os povos da região do Canaçari. Então ele se ergueu inebriado pelas palavras do sogro do irmão, ergueu a cuia com caxiri, soprou no ar a fumaça do tabaco em abundância e agradeceu sem modéstia o diagnóstico de Nahpy.
- Se tu o dizes só pode ser verdade.
Matepi jamais esqueceria o momento quando Yepá, de pé, iluminado pelo crepitar das chamas, emborcara a cuia toda de caxiri na boca, sorvendo com felicidade o líquido embriagador, enquanto os rolos de fumaça saíam de dentro de si como um espetáculo fascinante. O corpo do caboquena era bem composto de músculos, mas as sombras e as luzes da noite conferiram à sua silhueta uma visão de guerreiro talhado não para as batalhas das guerras, e sim para a reprodução humana.
A jovem filha do pajé se deitou na rede naquela noite com a respiração escorregadia e fora do normal e durante toda a madrugada seus sonhos traziam sempre a figura de Yepá, ora correndo em seu encalço pelas praias de areias mais brancas, ora carregando-a nos braços pelas florestas, em uma fuga desesperada para escapar de diversos perseguidores, todos pretendentes da índia cuja beleza aflorava como as orquídias nos tocos dos paus. O coração de Matepi acordou muitas vezes em sobressaltos, enquanto o suor percorria seu corpo fazendo tremer suas carnes de jovens. Ela não sabia, mas desse dia em diante a presença de Yepá em sua vida seria uma constante, gravada em seu espírito nos momentos mais diversos, mesmo quando comia ou tomava banho, e era justamente nele em quem pensava quando fora levada por seus pais à casa das mulheres, para passar reclusa todo um ciclo de água, longe dos olhos dos homens, aprisionada na cabana junto com outras meninas de sua idade, de onde só sairia quando estivesse pronta de ser desposada.
O ritual de preparação da jovem Matepi transcorreu normalmente, até mesmo com certa ânsia por parte dela de entrar logo na casa das mulheres e passar seu período de reclusão a espera da menarca. Sua mãe Xirminja raspou seus cabelos com cipó titica, deixando apenas uma calva de pele embranquecida que ressaltou ainda mais sua beleza, enquanto Tawacã trançava a guirlanda com a qual seria ornada a irmã mais nova. O pajé estava entretido em outros afazeres, deixando este assunto às mulheres de sua família, mas mesmo assim Aiauara fez questão de coletar as flores, como sempre acompanhado de Monawa, enquanto Yepá, alheios aos olhares ansiosos de jovem índia, percorreu toda a ilha catando as flores vermelhas de tajás, porque ouvira a cunhada dizer que esta cor traria sorte a sua irmã e, assim, conseguiria um bom pretendente.
Quando Matepi foi levada em fim à casa das mulheres, se mostrou envergonhada diante de todos os seus parentes por não ter mais a longa cabeleira, mas foi somente quando avistou Yepá entre os presentes que a timidez da jovem índia a constrangeu definitivamente e ela torceu para o caboquena não percebê-la entre tantas meninas na mesma situação. No entanto, era impossível Matepi passar sem ser notada no grupo das jovens, porque era simplesmente a mais alta entre todas, a mais formosa a quem todos os olhares convergiam e em cuja cabeça ostentava a guirlanda multicolorida de flores diversas, em especial as vermelhas, colhidas por Yepá.
As jovens índias foram colocadas dentro da cabana e sua entrada fora lacrada, mas mesmo assim muitas mães agora ficariam de vigília, espreitando cada aproximação furtiva dos homens, tentando evitar olhares dentro da casa e a conseqüente vista da transformação das meninas em mulheres. Lá dentro, protegidas do mundo por paredes de palhas intricadamente trançadas, as meninas descansariam enquanto esperavam o anúncio dado por seus corpos de que estavam prontas a conceber e, então, casar e constituir famílias.
Durante o período de reclusão de Matepi, Tawacã retornou à aldeia dos caboquenas acompanhada do marido e as duas filhas. Samcaxiki seria apresentada aos familiares no Maquará. Yepá já havia retornando antes, como prometera ao cacique Meyki, embora passasse a maior parte de seu tempo entre uma aldeia e outra, sendo sempre bem recebido pelas tribos. Conhecia agora como ninguém as águas do Canaçari e do Orowo, assim como as terras circundantes e se aventurava também pelo Sanabani acima, nas terras dos bararurus, empreendendo caçadas com todos os guerreiros e ensinando a eles a artimanha de obter sucesso contra os predadores.
O caboquena gostava de caçar e pescar sozinho, passando dias embrenhado nas matas e até mesmo motivando grupos de busca, quando passava tanto tempo afastado que já o consideravam outra vez morto. Mas sempre retornava com boa provisão, deixando um quarto de queixada a uma família no meio do caminho, ou um lombo de anta em outra comunidade, onde tinha grandes amizades, no entanto, guardava sempre a melhor porção de sua caçada à família, em Maquará, a aldeia de sua tribo, em especial para Tawacã, sempre necessitada de se alimentar com mais fartura e assim prover de leite as duas filhas.
Yepá costumava visitar também a ilha Saracá, onde era recebido com muito respeito pelos membros da tribo dos guanavenas, inclusive Taobara, que via no caboquena virtudes muito superiores ao de seu irmão Monawa. Nahpy também o admirava e gostava de trocar com ele os conhecimentos acumulados na floresta, falando ambos sobre as beberagens preparadas para espantar doenças e maus-espíritos, que habitavam selvas distantes e perseguiam caçadores solitários.
- Eu me protejo invocando os ancestrais, confessou Yepá a Nahpy, mas este dizia ser insuficiente contar apenas com o escudo dos espíritos, por isso receitava a queima de cascas de jeniparana, cujas exalações mal cheirosas espantavam insetos e outros tormentos maléficos advindos da selva. Também indicava óleo de arnica para a proteção contra animais rastejantes e cataplasmas de murupitá, cujo látex era capaz de cicatrizar feridas e amenizar as dores provocadas por animais das águas.
Mas Yepá gostava mesmo era das caçadas, quando vagava furtivo pelas sendas da selva, espreitando animais tanto por terra quanto pelas árvores, com sua audição de felino, os olhos de gavião, o olfato de serpente e o tato sensível para saber a qual distância se encontrava um animal ou um homem somente pelo calor de suas pegadas no chão. Movia-se em completo silencio para surpreender presas que abatia com flechadas certeiras. Também era destro na arte de destrinchar carnes e defumá-las, além de suportar muitos dias de passo acelerado, sem comer coisa alguma, e despeitar quem o perseguisse. Aprendera a dominar as sensações do corpo e a ficar tão imóvel a ponto de não ser visto por nenhum tipo de olhos.
Um dia, depois de obter grande provisão de caça, retornou a sua aldeia repetindo o ritual de distribuir com os amigos o resultado de sua empreitada, deixando uma cotia aqui, um jabuti em outra casa e presente a um amigo. No entanto, o mutum ele guardou para sua cunhada, porque a carne macia do animal daria um belo caldo e revitalizaria as forças de Tawacã, reforçando-lhe o leite das filhas. Também ofereceu uma paca ao cacique e este aceitou com gratidão, mas solicitou uma conversa mais demorada com o guerreiro, para tratarem de uma nova missão, da qual somente ele poderia dar conta.
Meyki pediu que Yepá encontrasse Arawetê e Parakatejê e retomasse os contatos com os caciques das tribos mundurucus e saterês, devido a situação política ter mudado. Os muras não retaliaram o ataque dos aliados como era de esperar e isto indicava que a invasão aos seus territórios fez grande estrago em suas tropas, deixando-os incapazes de assumir novamente o controle sobre as vastas terras das margens do grande rio Amarelo. O hábil caboquena aceitou a missão, pedindo apenas um tempo de preparar-se para a longa viagem. Recusou a ajuda oferecida pelo cacique da companhia de alguns homens, pois preferia seguir sozinho, sem quem o atrapalhasse, mas impôs uma condição: de conversar com Nahpy um assunto de sua intimidade.
- É muito importante esta viagem ser mantida em segredo, disse Myeki a Yepá, principalmente se vais falar com o pajé dos guanavenas, acrescentou.
- Não tratarei desse assunto com Nahpy, respondeu o guerreiro, dando como garantia sua palavra de honra.
- Aquele curandeiro é esperto como uma onça e se vais ter uma conversa com ele, é capaz de te enfeitiçar e arrancar de ti o verdadeiro motivo de sua vagem, alertou Meyki, se opondo determinado à ida de Yepá até a aldeia dos guanavenas.
- O verdadeiro motivo de minha visita a ele é outro, observou o jovem. Vou fazer-lhe uma proposta de casamento.
Apesar de sua resolução, Yepá foi convencido por Meyki de que o melhor momento para conversar com o pajé dos guanavenas seria quando retornasse de sua missão, em breve. Em contrapartida, o cacique ofereceu ao jovem guerreiro um lugar de destaque na hierarquia de sua aliança de bravos, prometendo ainda agir junto a Nahpy, reforçando o pedido de matrimônio fosse com qual índia da tribo dos guanavenas.
- Deves partir o quanto antes, disse Meyki a Yepá, porque o futuro de nosso povo está em tuas mãos, enfatizou o cacique ao seu bravo mais hábil.
Yepá se preparou para a viagem como se fosse a uma de suas tantas caçadas, mas guardou mais provisão na canoa que de costume, embarcando quantidade de carne defumada, porque sabia da longa distância onde teria de ir. Escolheu o momento da partida quando o sol se empinava mais alto no céu, descendo o rio Orowo com remadas constantes, entrecortando igapós para escapar dos banzeiros agitados e dos ventos fortes que sopravam do lago Canaçari, vindo por trás da ilha Saracá. Passou ao largo de comunidades caboquenas, mas foi reconhecido por seus amigos e as crianças ainda correram pela praia, acompanhando-o em sua passagem. Ele se esgueirou pelo Marupá, encontrando e cumprimentando índios de todas as tribos, vendo-o passar como tantas vezes já o tinham observado sozinho em suas caçadas. Quando por fim a noite começou a mostrar suas sombras, nas proximidades da foz do Orowo, Yepá pode divisar os contornos da ilha Saracá ao longe, recebendo os últimos raios de sol em seus barrancos.
O vento deu lugar a uma brisa cálida, o bafo noturno do Canaçari, quando Yepá contornou a ilha pelo lado do Marupá, evitando assim passar pelas águas do Estreito, e sem correr o risco de ser visto pelos moradores da localidade guanavena. Quando entrou nas águas do lago, a escuridão da noite já o protegia totalmente, passando pela frente da aldeia principal da ilha Saracá sem ser notado, em direção à Ponta Grossa. Viu as fogueiras acesas na praia e pensou em Nahpy ao redor do fogo, contando as histórias de seus ancestrais à sua gente.
Yepá sabia dos riscos de sua aventura, mas evitava pensar no desafio, absorto na tarefa de remar a canoa até se esconder por trás do morro, na Ponta Grossa, quando as luzes da ilha Saracá ficaram fora de seu campo de visão. No entanto, o guerreiro continuou no ritmo das remadas, até chegar na mesma praia onde fora capturado pelas mulheres guerreiras e então resolveu passar a noite ali, descansando do brutal início da grande aventura.
O caboquena se dirigiu até a praia, pisou na areia, empurrou sua canoa para terra, catou algumas folhas e com elas construiu uma cama e descarregou parte de provisão, comendo peixe seco com farinha. Depois, levou até à boca algumas sementes torradas de guaraná e ficou mastigando, deitado em sua cama de folhas, olhando o infinito de estrelas, até sentir suas forças revigorarem sob o efeito do estimulante. Adormeceu tranqüilo, embora seus sentidos estivessem alertas quanto se estivesse acordado e não despertou até os pássaros iniciarem a sinfonia do amanhecer na floresta, e se deu conta de que as mulheres guerreiras não mais o capturariam e ele ficou sem poder retornar aos braços aconchegantes de Mauara.
De manhã resolveu acender uma fogueira e assar as postas de pirarucu defumadas. Depois de alimentado, percorreu as margens a pé, com saudosa curiosidade, até montar novamente em sua canoa e seguir viagem rumo as terras da Mundurucânia. Passou pelo paraná de Itapiranga e continuou remando até o rio Uatumã, aproveitando-se agora dos favores das correntezas. Seguiram-se muitos dias em sua canoa, parando algumas vezes para uma caminhada ou colher frutas, renovando sua provisão, ou então capturando as iaçás surpreendidas nas praias, até a primeira noite de lua cheia, quando ficou enfeitiçado pelo clarão refletindo como uma seta dourada a indicar-lhe a direção de onde ia. Yepá compreendeu naquele momento já ter remado bastante desde quando saiu furtivamente de sua aldeia, então desembarcou na próxima praia e ali ficou, sentido a areia cálida nos pés, totalmente alheio à urgência de sua missão.
Aproveitou a claridade e adentrou na mata, se perdendo no espectro da selva depois de caminhar toda a noite em busca de algo que não encontrou, e só retornou para próximo da embarcação com as primeiras luzes da manhã, mas sem encontrar disposição de pô-la na água e continuar sua viagem à Mundurucânia. Esperou a lua mudar de fase, mas mesmo assim não prosseguiu em sua missão, aguardando novo período de lua cheia, agora totalmente integrado na solidão de sua praia, com uma cabana rústica construída com folhas de palmeiras e a canoa emborcada na areia, que só retirava para pequenas explorações nas proximidades.
Sua missão se prolongou por outras fases de lua cheia, vagando agora lentamente na busca de conhecer a região na qual só passara furtivo. Dormiu em cada praia de todo o rio Nhamundá, sentindo sua natureza exuberante e explorando seus mistérios. Entrou em contato com alguns índios, mas evitava passar pelas aldeias, se esquivando até encontrar o grande rio Amarelo, para atravessá-lo em uma única noite, a fim de não ser visto por inimigos de sua gente.
Entrou no território do rio Mawé e foi encontrando os mundurucus pelo caminho, e aproveitando-se da proteção de compartilhar a linguagem comum, se deixava ficar muitos dias parado nas aldeias, mesmo com os anfitriões pedindo que ele prosseguisse a missão, não para negar-lhe hospitalidade, mas por verem a tarefa do caboquena concluída. No entanto, Yepá estava determinado a aproveitar todos os momentos daquela viagem maravilhosa, sabendo que seu destino tinha uma data precisa de ser realizado, quando o nível do lago Canaçari voltasse a baixar e a filha do pajé dos guanavenas saísse da reclusão, depois de completado um ciclo das águas.
Yepá não deixou de pensar em Matepi em nenhuma das praias onde dormiu nas últimas noites, ou nas árvores nas quais deve de se abrigar a fim de escapar de inimigos verdadeiros ou imaginários e também quando montava em sua canoa e seguia viagem. Ia remando e pensando nas transformações da menina em sua prisão ritualística, com os cabelos crescendo e já a encobrir a nuca, ou as formas de seu corpo ganhando os contornos fartos de mulher. Decidira que Metepi estava destinada a ser sua esposa, assim como Tawacã era de seu irmão.
- Nossas famílias serão unidas por nossos sangues, disse a si mesmo quando se pôs outra vez em marcha, subindo agora o rio Mawé até a aldeia do maioral Arawetê, onde deveria enfim transmitir-lhe o recado de Meyki.
Yepá demorou longos oito fases da lua até chegar à aldeia principal da Mundurucânia e neste trajeto enfrentou uma vazante em que pode sentir a beleza de todas as praias e agora navegava em águas abundantes da cheia. Enfrentara as chuvas e o sol inclemente e estava com o corpo marcado pela longa viagem. Superou perigos com determinação e coragem e aprendeu mais ainda a sobreviver no ambiente hostil das terras desconhecidas, sem contar com a ajuda de ninguém, somente acompanhado de sua ardileza e conhecimento das selvas mais sombrias.
Ao longe foi reconhecido pelos moradores da aldeia dos mundurucus, porque estes também já o esperavam há muito tempo, desde quando a notícia de sua vinda chegou à taba, precedida por vários dias ao próprio. Ele desembarcou na aldeia e logo foi cercado pela criançada em alvoroço, depois foi recebido por guerreiros cuja amizade conquistara no tempo difícil das batalhas contra os muras, foi observado de longe por jovens solteiras e delas recebeu elogios, mas foi imediatamente levado ao encontro do maioral Arawetê, que o esperava na oca principal dos mundurucus.
- Meu cacique Meyki manda-lhe felicitações e pede a renovação da aliança contra os muras, antes da infâmia se instalar na região do Canaçari, proclamou Yepá a Araewtê.