terça-feira, 27 de setembro de 2011

Capítulo 19 - Tocaia dos Mortos

         OS GUERREIROS DAS TRIBOS ALIADAS PREPARAVAM O RETORNO ÀS SUAS ALDEIAS. O tempo de guerra havia passado e era preciso continuar vivendo, caçando, pescando e cuidando das roças, como era de fazer em épocas de paz. Nahpy era o único atarefado em toda a ilha, cuidando dos índios convalescentes que passavam os dias no marasmo das praias, descansando nas sombras das acapuraneiras, olhando o brilho irradiante do sol nas águas do lago Canaçari. Olhavam o dia passar, mas com o pressentimento ruim de a qualquer momento novas batalhas acontecerem, obrigando-os a lutar até o limite do esgotamento, quando nem todos os dias posteriores de pasmaceira eram capazes de devolver-lhes vigor da vida.
         Durante a noite, quando se acendiam as fogueiras, os bravos comiam em silêncio, sem nada falar sobre seus feitos de guerra, embora fossem muitos os atos de bravuras. Eles estiveram bem próximos de derrotar o inimigo invencível, que conseguiu reverter o resultado do combate no momento quando se punham em fuga. A frustração da derrota era uma doença de todos, com as crianças deixando de brincar na casa dos macacos e as mulheres indo à roça sem as conversas animadas do caminho, envolvidas na tristeza coletiva da guerra perdida.
         Os feridos começavam a se pôr de pé, depois de remediados por Nahpy e Tawacã, com ela cuidando com especial atenção as chagas de Monawa, que se mostrava mais forte e confiante quanto mais se aproximava o dia do nascimento do segundo filho, redondo na barriga imensa da esposa, e também com as histórias de sua bravura em combate sendo repetidas por guanavenas e caboquenas. Aiauara fez por merecer todos os cuidados recebidos de seu pai e irmã, mas os que realmente o fizeram recobrar a saúde debilitada foram os carinhos de Tananta, cuja atenção colara-a ao lado da rede do marido, enquanto passava seus dias de repouso. O ventre da esposa de Aiauara mostrava sinais de que nos próximos dias outra criança nasceria na família do pajé.
         Pikiwaha teve as feições originais do rosto modificadas pelo efeito da clava inimiga, mas sua expressão ganhara em bravura o que perdera em beleza. Tinha deixado no campo de batalha parte dos dentes e seus olhos não encontraram equilíbrio depois de ser debelado o inchaço da cara, através de cataplasmas e infusões aplicadas por Nahpy. O cacique Taobara se mostrava imune aos ferimentos de guerra, tanto que tomou apenas um chá de folhas de alfavaca-de-cobra e de pronto fez retornar a ordem à sua aldeia, não deixando faltar suprimento às tropas aliadas, que precisavam descansar e comer depois dos dias de provação na aldeia dos muras.
         O maioral guanavena queria pôr à prova a hospitalidade de seu povo, por isso, ele mesmo se engajou na tarefa de pescar para oferecer aos guerreiros das outras tribos peixes em farturas. Mandava as mulheres buscar mandioca para fazer bolos e pães, devido todos estarem enfastiados de comer farinha. E quando um de seus caçadores chegou na praia com uma carga de anta na canoa a felicidade voltou à ilha, com crianças correndo na areia em comemoração, em fim, o retorno da paz. Com o passar do tempo o riso assumiu o lugar das faces taciturnas e as lembranças da guerra passaram a fazer parte das histórias noturnas, quando o pajé guanavena relembrava ao povo as glórias e a cultura de sua gente.
         Quando chegou o dia dos aliados se separarem, a comoção tomou conta de todas as gentes e as muitas canoas descansando na praia logo tomaram os rumos das aldeias de onde vinheram. Mundurucus e saterês seguiram em direção à Ponta Grossa, remando pelo paraná de Itapiranga e depois pelo labirinto de canais até cruzar o grande rio Amarelo, nas proximidades da foz do Andirá, que conduzia até suas terras. Era uma viagem difícil, tendo de transpor o território mura, mas estes estavam enfraquecidos demais, sem de condições de empreender vigilância acirrada em suas terras.
         Taobara mandou alguns de seus homens conduzirem os aliados até os limites das terras dos guanavenas, com propósito escondido de se acautelar contra um possível ataque de mundurucus e saterês, ambiciosos por suas terras e também saber se enfrentaram os muras pelo caminho. Menor interesse tinha em indicar-lhes a melhor direção até o grande rio Amarelo. Desde o início a viagem mostrou suas dificuldades, não só pelos banzeiros e ventos contrários, mas também devido outras tribos mais abaixo do rio terem tomado conhecimento das lutas travadas e, conseqüentemente, da debilidade momentânea dos muras. Com tal informação, maiorais belicosos poderiam se sentir atraídos a realizar incursões no território agora desprotegido. Mundurucus e saterês sabiam do risco de um encontro com tropas assim, e não seria nada agradável aos guerreiros que apenas recentemente abandonaram as armas de guerra.
         Nas proximidades do furo de Itapiranga, que levava ao grande rio Amarelo, os condutores guanavenas deixaram mundurucus e saterês à própria sorte, mas estes evitaram esta passagem ao coração das terras inimigas, preferindo seguir até no rio Uatumã, onde navegariam por canais protegidos contra qualquer encontro indesejável. De qualquer forma esta foi a escolha mais acertada, pois evitariam confrontos e poderiam chegar em paz à tranqüilidade de suas terras, pois era certo os muras estarem assumindo o controle dos territórios recuperados.
         Logo em seguida à partida de mundurucus e saterês, Meyki reuniu sua gente e seguiu viagem de volta ao rio Orowo, ao encontro de suas terras para dar continuidade aos roçados. Famílias inteiras de caboquenas embarcaram nas canoas com propósito de vencer a forte correnteza do rio, levando provisões oferecidas pelos aliados guanavenas, tanto por amizade quanto vontade de mostrar a generosidade da ilha. Monawa informou seu cacique de que não embarcaria de imediato ao Maquará, pois desejava ficar mais um tempo na companhia dos parentes da esposa, esperando inclusive esta dar à luz ao filho esperado.
         O guerreiro caboquena convidou seu irmão Yepá para fazer-lhe companhia durante a estadia na ilha Saracá e este aceitou, também ansioso por conhecer desde cedo o rosto de seu sobrinho, uma vez que Tawacã tivera uma filha na primeira gestação e, agora, todos os parentes de Monawa aguardavam a chegada do varão. Meyki não gostou nada da decisão dos irmãos, mas suas preocupações estavam focadas no futuro de sua gente e isto ocupava espaço demais em seus pensamentos, por isso deu a anuência, condicionando apenas o retorno de Yepá ao Orowo o mais breve possível, logo após o parto de Tawacã.
         - Precisamos de ti em nossa aldeia, cuidando do futuro dos caboquenas, comentou Meyki a Yepá, cuja importância na estratégia do cacique era fundamental devido ao conhecimento acumulado em tantos ciclos de água vivendo com os mundurucus e saterês.
         Yepá prometeu retornar quando fosse possível e Monawa cometeu um deslize: embora respeitado por sua valentia, porém sem discernimentos a estratagemas políticos, falou que os irmãos estavam se tornando mais guanavenas do que caboquena. Esta observação arrancou risos dos bravos, mas causou má impressão no cacique com relação ao membro de sua tribo.
         Meyki e sua gente foram embora da ilha Saracá, depois os seguiram os bararurus, com Jauaraçu no comando de seu povo. O cacique do rio Sanabani perdera muitos de seus homens, mas mesmo assim ainda era um maioral respeitado e, por isso, recebeu cortesias de Taobara, frutos de uma amizade cujos detratores de ambos diziam tratar-se de submissão. No entanto, era imprescindível aos bararurus a aliança visceral com os guanavenas, porque jamais poderiam se estabelecer nas proximidades do lago Canaçari, e dispor de tantas farturas, se não contassem com a amizade e a proteção da tribo da ilha Saracá.
         Os guanavenas se despediram dos aliados, oferecendo a eles caças e peixes moqueados para a viagem e os dias de retorno às suas aldeias, celebrando assim a confraternização dos povos da região do Canaçari, que continuavam sem usufruir da pesca farta no grande rio Amarelo, mas do lago eram os senhores absolutos, tendo combatido e expulsados os mais diversos invasores do território cobiçado. Eles voltariam a caçar nos paranás e furos do arquipélago Marupá, onde Monawa sobreviveu às primeiras provações de homens, junto com Tawacã, escapando da perseguição movida por Nahpy.
         Os irmãos caboquenas logo se adaptaram à vida na aldeia de Tawacã, saindo para pescar no lago com Aiauara e outros guerreiros, mas evitando se afastar muito dos limites da ilha, por temerem um ataque de represália dos muras. Mas os dias se passaram e a temida vingança não aconteceu, então os guanavenas iam cada vez mais recuperando o domínio sobre o imenso território de água, que incluía lagos e furos e até uma pequena faixa de terra a separá-los do grande rio Amarelo, terras dos inimigos, quando as enchentes se apoderavam de tudo.
         Neste período nasceram as crianças na família de Nahpy e Tawacã deu à luz outra menina, esta chamada de Samkaxiki. Tananta se encarregou de por mais um varão no mundo, de nome Ubira. Aiauara se encheu de orgulho, pois seu filho nascera forte e saudável, digno de fazer parte da tribo dos guanavenas e ter como pai um guerreiro batizado nas lutas contra os muras. Samcaxiki também ostentava saúde, mamando além do necesário e tomando os cuidados de Tawacã somente para si, enquanto Waiãpi ficara sob a responsabilidade de Xirminja, sua avó, agora dedicando a experiência em ajudar os filhos a criar dos filhos deles.
         Nahpy era o avô orgulhoso de seus descendentes, observando os pequenos netos brincarem em volta das redes, dentro da oca, enquanto preparava suas infusões de fortalecer os corpos alquebrados da filha e da nora. Tananta sofreu mais para se recuperar do parto, mas as terapias do pajé logo a colocaram firme de novo, enquanto Aiauara saía todas as noites para pescar com Monawa e Yepá e pela manhã os três retornavam com fartura de peixes, o alimento da grande família do pajé e dos outros guanavenas. As pessoas da tribo elogiavam a perícia dos pescadores e passaram a respeitá-los ainda mais, quando deixaram os rios e lagos e se aventuraram na floresta, onde a esperteza de Yepá na lida da caça rendeu aos três o galardão de caçadores formidáveis, a quem todos queriam acompanhar nas aventuras pela selva.
         O caboquena misterioso recebia atenção de boa parte da tribo, que escutava suas aventuras na selva, entre mulheres guerreiras, mundurucus e saterês, com o mesmo interesse dedicado às histórias de Nahpy. Na noite, em volta das fogueiras, assando os prêmios das caçadas, os índios pediam inúmeras vezes que Yepá narrasse suas aventuras e o povo ouvia calado, com respiração contida, de como o caboquena sobrevivera na terra das índias valentes e de sua bela cacique chamada Mauara. Ficavam extasiados pela narrativa, tantas vezes contada numa profusão de pausas e suspenses que prendia os ouvintes às palavras e os colocava como protagonistas das aventuras fantásticas.
         Nahpy era o ouvinte mais atento, esperando por falhas nas narrativas de Yepá ou palavras que não se encaixavam na realidade, mas o caboquena era conhecedor do ofício e já repetira muitas vezes essas aventuras ao seu povo para cair em contradição ou desdizer os fatos contados anteriormente. O pajé estava enciumado pela atenção de seu povo às histórias do caboquena, mas se punha a salvo de maquinações e também escutava as aventuras incomuns do índio que soubera sobreviver em terras distantes, escapando do destino fatal de prisioneiros das mulheres guerreiras e conquistando amizades entre tribos com as quais convivera.
         - Tu tens o grande Paharamim ao teu lado, disse Nahpy a Yepá quando este tomou uma pausa entre uma história e outra.
         O caboquena recebeu o vaticínio com orgulho e seus olhos se incendiaram na certeza estar vindo de um homem de grande sabedoria, o pajé Nahpy, cujo conhecimento rompera de longe as fronteiras de sua tribo e se instalou na cultura de todos os povos da região do Canaçari. Então ele se ergueu inebriado pelas palavras do sogro do irmão, ergueu a cuia com caxiri, soprou no ar a fumaça do tabaco em abundância e agradeceu sem modéstia o diagnóstico de Nahpy.
         - Se tu o dizes só pode ser verdade.
         Matepi jamais esqueceria o momento quando Yepá, de pé, iluminado pelo crepitar das chamas, emborcara a cuia toda de caxiri na boca, sorvendo com felicidade o líquido embriagador, enquanto os rolos de fumaça saíam de dentro de si como um espetáculo fascinante. O corpo do caboquena era bem composto de músculos, mas as sombras e as luzes da noite conferiram à sua silhueta uma visão de guerreiro talhado não para as batalhas das guerras, e sim para a reprodução humana.
         A jovem filha do pajé se deitou na rede naquela noite com a respiração escorregadia e fora do normal e durante toda a madrugada seus sonhos traziam sempre a figura de Yepá, ora correndo em seu encalço pelas praias de areias mais brancas, ora carregando-a nos braços pelas florestas, em uma fuga desesperada para escapar de diversos perseguidores, todos pretendentes da índia cuja beleza aflorava como as orquídias nos tocos dos paus. O coração de Matepi acordou muitas vezes em sobressaltos, enquanto o suor percorria seu corpo fazendo tremer suas carnes de jovens. Ela não sabia, mas desse dia em diante a presença de Yepá em sua vida seria uma constante, gravada em seu espírito nos momentos mais diversos, mesmo quando comia ou tomava banho, e era justamente nele em quem pensava quando fora levada por seus pais à casa das mulheres, para passar reclusa todo um ciclo de água, longe dos olhos dos homens, aprisionada na cabana junto com outras meninas de sua idade, de onde só sairia quando estivesse pronta de ser desposada.
         O ritual de preparação da jovem Matepi transcorreu normalmente, até mesmo com certa ânsia por parte dela de entrar logo na casa das mulheres e passar seu período de reclusão a espera da menarca. Sua mãe Xirminja raspou seus cabelos com cipó titica, deixando apenas uma calva de pele embranquecida que ressaltou ainda mais sua beleza, enquanto Tawacã trançava a guirlanda com a qual seria ornada a irmã mais nova. O pajé estava entretido em outros afazeres, deixando este assunto às mulheres de sua família, mas mesmo assim Aiauara fez questão de coletar as flores, como sempre acompanhado de Monawa, enquanto Yepá, alheios aos olhares ansiosos de jovem índia, percorreu toda a ilha catando as flores vermelhas de tajás, porque ouvira a cunhada dizer que esta cor traria sorte a sua irmã e, assim, conseguiria um bom pretendente.
         Quando Matepi foi levada em fim à casa das mulheres, se mostrou envergonhada diante de todos os seus parentes por não ter mais a longa cabeleira, mas foi somente quando avistou Yepá entre os presentes que a timidez da jovem índia a constrangeu definitivamente e ela torceu para o caboquena não percebê-la entre tantas meninas na mesma situação. No entanto, era impossível Matepi passar sem ser notada no grupo das jovens, porque era simplesmente a mais alta entre todas, a mais formosa a quem todos os olhares convergiam e em cuja cabeça ostentava a guirlanda multicolorida de flores diversas, em especial as vermelhas, colhidas por Yepá.
         As jovens índias foram colocadas dentro da cabana e sua entrada fora lacrada, mas mesmo assim muitas mães agora ficariam de vigília, espreitando cada aproximação furtiva dos homens, tentando evitar olhares dentro da casa e a conseqüente vista da transformação das meninas em mulheres. Lá dentro, protegidas do mundo por paredes de palhas intricadamente trançadas, as meninas descansariam enquanto esperavam o anúncio dado por seus corpos de que estavam prontas a conceber e, então, casar e constituir famílias.
         Durante o período de reclusão de Matepi, Tawacã retornou à aldeia dos caboquenas acompanhada do marido e as duas filhas. Samcaxiki seria apresentada aos familiares no Maquará. Yepá já havia retornando antes, como prometera ao cacique Meyki, embora passasse a maior parte de seu tempo entre uma aldeia e outra, sendo sempre bem recebido pelas tribos. Conhecia agora como ninguém as águas do Canaçari e do Orowo, assim como as terras circundantes e se aventurava também pelo Sanabani acima, nas terras dos bararurus, empreendendo caçadas com todos os guerreiros e ensinando a eles a artimanha de obter sucesso contra os predadores.
         O caboquena gostava de caçar e pescar sozinho, passando dias embrenhado nas matas e até mesmo motivando grupos de busca, quando passava tanto tempo afastado que já o consideravam outra vez morto. Mas sempre retornava com boa provisão, deixando um quarto de queixada a uma família no meio do caminho, ou um lombo de anta em outra comunidade, onde tinha grandes amizades, no entanto, guardava sempre a melhor porção de sua caçada à família, em Maquará, a aldeia de sua tribo, em especial para Tawacã, sempre necessitada de se alimentar com mais fartura e assim prover de leite as duas filhas.
         Yepá costumava visitar também a ilha Saracá, onde era recebido com muito respeito pelos membros da tribo dos guanavenas, inclusive Taobara, que via no caboquena virtudes muito superiores ao de seu irmão Monawa. Nahpy também o admirava e gostava de trocar com ele os conhecimentos acumulados na floresta, falando ambos sobre as beberagens preparadas para espantar doenças e maus-espíritos, que habitavam selvas distantes e perseguiam caçadores solitários.
         - Eu me protejo invocando os ancestrais, confessou Yepá a Nahpy, mas este dizia ser insuficiente contar apenas com o escudo dos espíritos, por isso receitava a queima de cascas de jeniparana, cujas exalações mal cheirosas espantavam insetos e outros tormentos maléficos advindos da selva. Também indicava óleo de arnica para a proteção contra animais rastejantes e cataplasmas de murupitá, cujo látex era capaz de cicatrizar feridas e amenizar as dores provocadas por animais das águas.
         Mas Yepá gostava mesmo era das caçadas, quando vagava furtivo pelas sendas da selva, espreitando animais tanto por terra quanto pelas árvores, com sua audição de felino, os olhos de gavião, o olfato de serpente e o tato sensível para saber a qual distância se encontrava um animal ou um homem somente pelo calor de suas pegadas no chão. Movia-se em completo silencio para surpreender presas que abatia com flechadas certeiras. Também era destro na arte de destrinchar carnes e defumá-las, além de suportar muitos dias de passo acelerado, sem comer coisa alguma, e despeitar quem o perseguisse. Aprendera a dominar as sensações do corpo e a ficar tão imóvel a ponto de não ser visto por nenhum tipo de olhos.
         Um dia, depois de obter grande provisão de caça, retornou a sua aldeia repetindo o ritual de distribuir com os amigos o resultado de sua empreitada, deixando uma cotia aqui, um jabuti em outra casa e presente a um amigo. No entanto, o mutum ele guardou para sua cunhada, porque a carne macia do animal daria um belo caldo e revitalizaria as forças de Tawacã, reforçando-lhe o leite das filhas. Também ofereceu uma paca ao cacique e este aceitou com gratidão, mas solicitou uma conversa mais demorada com o guerreiro, para tratarem de uma nova missão, da qual somente ele poderia dar conta.
         Meyki pediu que Yepá encontrasse Arawetê e Parakatejê e retomasse os contatos com os caciques das tribos mundurucus e saterês, devido a situação política ter mudado. Os muras não retaliaram o ataque dos aliados como era de esperar e isto indicava que a invasão aos seus territórios fez grande estrago em suas tropas, deixando-os incapazes de assumir novamente o controle sobre as vastas terras das margens do grande rio Amarelo. O hábil caboquena aceitou a missão, pedindo apenas um tempo de preparar-se para a longa viagem. Recusou a ajuda oferecida pelo cacique da companhia de alguns homens, pois preferia seguir sozinho, sem quem o atrapalhasse, mas impôs uma condição: de conversar com Nahpy um assunto de sua intimidade.
         - É muito importante esta viagem ser mantida em segredo, disse Myeki a Yepá, principalmente se vais falar com o pajé dos guanavenas, acrescentou.
         - Não tratarei desse assunto com Nahpy, respondeu o guerreiro, dando como garantia sua palavra de honra.
         - Aquele curandeiro é esperto como uma onça e se vais ter uma conversa com ele, é capaz de te enfeitiçar e arrancar de ti o verdadeiro motivo de sua vagem, alertou Meyki, se opondo determinado à ida de Yepá até a aldeia dos guanavenas.
         - O verdadeiro motivo de minha visita a ele é outro, observou o jovem. Vou fazer-lhe uma proposta de casamento.
         Apesar de sua resolução, Yepá foi convencido por Meyki de que o melhor momento para conversar com o pajé dos guanavenas seria quando retornasse de sua missão, em breve. Em contrapartida, o cacique ofereceu ao jovem guerreiro um lugar de destaque na hierarquia de sua aliança de bravos, prometendo ainda agir junto a Nahpy, reforçando o pedido de matrimônio fosse com qual índia da tribo dos guanavenas.
         - Deves partir o quanto antes, disse Meyki a Yepá, porque o futuro de nosso povo está em tuas mãos, enfatizou o cacique ao seu bravo mais hábil.
         Yepá se preparou para a viagem como se fosse a uma de suas tantas caçadas, mas guardou mais provisão na canoa que de costume, embarcando quantidade de carne defumada, porque sabia da longa distância onde teria de ir. Escolheu o momento da partida quando o sol se empinava mais alto no céu, descendo o rio Orowo com remadas constantes, entrecortando igapós para escapar dos banzeiros agitados e dos ventos fortes que sopravam do lago Canaçari, vindo por trás da ilha Saracá. Passou ao largo de comunidades caboquenas, mas foi reconhecido por seus amigos e as crianças ainda correram pela praia, acompanhando-o em sua passagem. Ele se esgueirou pelo Marupá, encontrando e cumprimentando índios de todas as tribos, vendo-o passar como tantas vezes já o tinham observado sozinho em suas caçadas. Quando por fim a noite começou a mostrar suas sombras, nas proximidades da foz do Orowo, Yepá pode divisar os contornos da ilha Saracá ao longe, recebendo os últimos raios de sol em seus barrancos.
         O vento deu lugar a uma brisa cálida, o bafo noturno do Canaçari, quando Yepá contornou a ilha pelo lado do Marupá, evitando assim passar pelas águas do Estreito, e sem correr o risco de ser visto pelos moradores da localidade guanavena. Quando entrou nas águas do lago, a escuridão da noite já o protegia totalmente, passando pela frente da aldeia principal da ilha Saracá sem ser notado, em direção à Ponta Grossa. Viu as fogueiras acesas na praia e pensou em Nahpy ao redor do fogo, contando as histórias de seus ancestrais à sua gente.
         Yepá sabia dos riscos de sua aventura, mas evitava pensar no desafio, absorto na tarefa de remar a canoa até se esconder por trás do morro, na Ponta Grossa, quando as luzes da ilha Saracá ficaram fora de seu campo de visão. No entanto, o guerreiro continuou no ritmo das remadas, até chegar na mesma praia onde fora capturado pelas mulheres guerreiras e então resolveu passar a noite ali, descansando do brutal início da grande aventura.
         O caboquena se dirigiu até a praia, pisou na areia, empurrou sua canoa para terra, catou algumas folhas e com elas construiu uma cama e descarregou parte de provisão, comendo peixe seco com farinha. Depois, levou até à boca algumas sementes torradas de guaraná e ficou mastigando, deitado em sua cama de folhas, olhando o infinito de estrelas, até sentir suas forças revigorarem sob o efeito do estimulante. Adormeceu tranqüilo, embora seus sentidos estivessem alertas quanto se estivesse acordado e não despertou até os pássaros iniciarem a sinfonia do amanhecer na floresta, e se deu conta de que as mulheres guerreiras não mais o capturariam e ele ficou sem poder retornar aos braços aconchegantes de Mauara.
         De manhã resolveu acender uma fogueira e assar as postas de pirarucu defumadas. Depois de alimentado, percorreu as margens a pé, com saudosa curiosidade, até montar novamente em sua canoa e seguir viagem rumo as terras da Mundurucânia. Passou pelo paraná de Itapiranga e continuou remando até o rio Uatumã, aproveitando-se agora dos favores das correntezas. Seguiram-se muitos dias em sua canoa, parando algumas vezes para uma caminhada ou colher frutas, renovando sua provisão, ou então capturando as iaçás surpreendidas nas praias, até a primeira noite de lua cheia, quando ficou enfeitiçado pelo clarão refletindo como uma seta dourada a indicar-lhe a direção de onde ia. Yepá compreendeu naquele momento já ter remado bastante desde quando saiu furtivamente de sua aldeia, então desembarcou na próxima praia e ali ficou, sentido a areia cálida nos pés, totalmente alheio à urgência de sua missão.
         Aproveitou a claridade e adentrou na mata, se perdendo no espectro da selva depois de caminhar toda a noite em busca de algo que não encontrou, e só retornou para próximo da embarcação com as primeiras luzes da manhã, mas sem encontrar disposição de pô-la na água e continuar sua viagem à Mundurucânia. Esperou a lua mudar de fase, mas mesmo assim não prosseguiu em sua missão, aguardando novo período de lua cheia, agora totalmente integrado na solidão de sua praia, com uma cabana rústica construída com folhas de palmeiras e a canoa emborcada na areia, que só retirava para pequenas explorações nas proximidades.
         Sua missão se prolongou por outras fases de lua cheia, vagando agora lentamente na busca de conhecer a região na qual só passara furtivo. Dormiu em cada praia de todo o rio Nhamundá, sentindo sua natureza exuberante e explorando seus mistérios. Entrou em contato com alguns índios, mas evitava passar pelas aldeias, se esquivando até encontrar o grande rio Amarelo, para atravessá-lo em uma única noite, a fim de não ser visto por inimigos de sua gente.
         Entrou no território do rio Mawé e foi encontrando os mundurucus pelo caminho, e aproveitando-se da proteção de compartilhar a linguagem comum, se deixava ficar muitos dias parado nas aldeias, mesmo com os anfitriões pedindo que ele prosseguisse a missão, não para negar-lhe hospitalidade, mas por verem a tarefa do caboquena concluída. No entanto, Yepá estava determinado a aproveitar todos os momentos daquela viagem maravilhosa, sabendo que seu destino tinha uma data precisa de ser realizado, quando o nível do lago Canaçari voltasse a baixar e a filha do pajé dos guanavenas saísse da reclusão, depois de completado um ciclo das águas.
         Yepá não deixou de pensar em Matepi em nenhuma das praias onde dormiu nas últimas noites, ou nas árvores nas quais deve de se abrigar a fim de escapar de inimigos verdadeiros ou imaginários e também quando montava em sua canoa e seguia viagem. Ia remando e pensando nas transformações da menina em sua prisão ritualística, com os cabelos crescendo e já a encobrir a nuca, ou as formas de seu corpo ganhando os contornos fartos de mulher. Decidira que Metepi estava destinada a ser sua esposa, assim como Tawacã era de seu irmão.
         - Nossas famílias serão unidas por nossos sangues, disse a si mesmo quando se pôs outra vez em marcha, subindo agora o rio Mawé até a aldeia do maioral Arawetê, onde deveria enfim transmitir-lhe o recado de Meyki.
         Yepá demorou longos oito fases da lua até chegar à aldeia principal da Mundurucânia e neste trajeto enfrentou uma vazante em que pode sentir a beleza de todas as praias e agora navegava em águas abundantes da cheia. Enfrentara as chuvas e o sol inclemente e estava com o corpo marcado pela longa viagem. Superou perigos com determinação e coragem e aprendeu mais ainda a sobreviver no ambiente hostil das terras desconhecidas, sem contar com a ajuda de ninguém, somente acompanhado de sua ardileza e conhecimento das selvas mais sombrias.
         Ao longe foi reconhecido pelos moradores da aldeia dos mundurucus, porque estes também já o esperavam há muito tempo, desde quando a notícia de sua vinda chegou à taba, precedida por vários dias ao próprio. Ele desembarcou na aldeia e logo foi cercado pela criançada em alvoroço, depois foi recebido por guerreiros cuja amizade conquistara no tempo difícil das batalhas contra os muras, foi observado de longe por jovens solteiras e delas recebeu elogios, mas foi imediatamente levado ao encontro do maioral Arawetê, que o esperava na oca principal dos mundurucus.
         - Meu cacique Meyki manda-lhe felicitações e pede a renovação da aliança contra os muras, antes da infâmia se instalar na região do Canaçari, proclamou Yepá a Araewtê.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Capítulo 18 - Tocaia dos Mortos

         OS MURAS FICARAM CERCADOS REALMENTE DEPOIS DE MUNDURUCUS E SATERÊS DESEMBARCAREM e subirem o barranco até as paliçadas que defendiam a aldeia contra as invasões pelo rio. Os caciques decidiram manter o cerco, mas não desfecharam o ataque final, preferindo guardar suas posições e esperar a reação do inimigo. Taobara sabia que os muras estavam ansiosos por repelir o ataque, mas agora a luta seria travada no campo da paciência, embora os insultos de ambos os lados fossem desferidos com tanta intensidade que as palavras chegavam a ferir.
         - Vamos primeiro lançar sobre os muras saraivadas de flechas, propôs o cacique guanavena, apontando a fragilidade do inimigo sob cerco, mas dispostos em um círculo compacto, impossível de ser vencido com um ataque frontal
         - O bravo guanavena tem razão, concordou Arawetê, chefe de todos os guerreiros e a quem cabia a palavra final nas decisões de comando.
         Taobara impunha sua liderança, conquistando a admiração e o respeito dos outros caciques e sofrendo oposição cada vez menor de Meyki, seu rival momentâneo. O cacique guanavena sabia jogar o jogo das manipulações políticas, mas conhecia também, e muito, as artimanhas da guerra, fazendo os outros aceitarem suas ponderações e levando o maioral bararuru a seguir contrariado as decisões referendadas pelo conselho das tribos aliadas.
         O dia apagou as últimas luzes quando o sol emborcou direto na direção da nascente do grande rio Amarelo. Todos sabiam que na escuridão qualquer um dos lados da contenda teria de agir. Era uma noite sem lua, ideal para ataque surpresa. No centro da taba dos muras grandes fogueiras foram acesas, enquanto os aliados se deixavam iluminar pelos fogos dos inimigos, protegidos agora pelas paliçadas que protegiam da invasão a aldeia de Itacoatiara.
         Os planos de Taobara foram postos em prática, com os arqueiros tomando posição de todos os flancos e despejando a chuva de flechas, que caía como morte sobre os muras aquartelados. A primeira saraivada pegou os inimigos de surpresa, e foi anunciada apenas pelo sibilar de muitas cordas esticadas e soltas em seguida e o grasnar assustador de igual número de setas seguindo em suas direções. Eles correrem em busca de seus escudos, atrás de proteção. O ataque surpreendeu e atingiu muitos guerreiros, alguns com gravidade e outros com apenas cortes superficiais, mas em dois as flechas perfuraram com tanta força que seria impossível extraí-las, deixando inerte os combatentes atingido de morte.
         Os aliados lançaram diversos ataques aéreos contra os muras, mas os efeitos causados agora eram menos intensos, devido aos escudos feitos de grossas cascas de árvores darem relativa proteção. As setas viam de todas as direções, podendo acertar as pernas de quem protegia somente a cabeça. A saraivada de flechas foi se sucedendo, causando baixas menores no inimigo, mas infligindo-lhe o terror e minando a cada novo arremate sua determinação e bravura. O ataque estava sendo bem sucedido na medida que causava baixas, uma estratégia perfeita, capaz de atiçar a reação dos muras, como desejava Taobara, pois esperava uma luta franca, em campo aberto, homem a homem, onde a coragem contaria muito mais que a proteção premonitória dos pajés.
         A verdadeira esperteza do cacique guanavena ainda estava por ser conhecida pelos muras. Depois de uma parada estratégica para desorientá-los, os guerreiros aliados entoaram seus cantos de guerra, levando ao coração do inimigo um presságio de morte e fazendo gelar seus corações na perspectiva de qual seria o próximo lance da luta. Não esperaram muito e rapidamente surgiram guerreiros aliados por trás das paliçadas, correndo na direção dos inimigos e despejando sobre eles pesadas lanças, que perfuravam seus escudos, causando ferimentos e morte a muitos combatentes e inutilizando outros no restante da batalha.
         Após o primeiro ataque de lanças, os muras tiveram de tomar posição de combate, mas um segundo movimento dos aliados jogou ao chão muitos bravos inimigos. A luta estava prestes a ser decidida e os guerreiros do lado de lá armaram-se de bordunas e também entoaram suas músicas de guerra, ensaiando a coreografia do ataque iminente para repelir os invasores de sua aldeia. Os insultos retornaram às bocas dos bravos e reverberavam na luz lusco-fusco das labaredas imensas a anunciar o início da batalha final. Os bravos se atiçaram de todos os lados, deixando seus corpos absorverem todo o esplendor desse momento no qual se lança o olhar na cara da morte.
         Os cantos eram entoados com mais força, quase um grito no assombro da selva, alvoroçando um bando de ciganas nos galhos por trás do campo de batalha e, mesmo assim, o piado das aves em fuga também foi ouvido pelos guerreiros, assim como o crepitar das fogueiras e o bater de pés no chão, marcando o ritmo da ordem de avançar.
         - É agora, sussurrou Taobara no ouvido do cacique Arawetê, o maioral de todos e de quem deveria partir a voz de comando.
         - Ao ataque, gritou o mundurucu, seguido por seus guerreiros, índios valentes e corajosos que não temiam a morte, enquanto estivessem sob a proteção de seus ancestrais e dos espíritos bons de seu povo.
         Os muras os receberam com golpes fortes, um frenesi de luta capaz de romper a defesa de ambos os lados, e os guerreiros se infiltraram nas linhas inimigas entorpecidos pelo sangue e pela vontade de matar. As primeiras contendas foram desorganizadas, com armas diversas: as bordunas eram suplantadas por estacas de madeira com afiadas pontas e lâminas cortavam as carnes causando ferimentos que dilaceravam a coragem dos atingidos.
         Os guerreiros se espalharam pelo campo aberto, tornando a batalha mais franca, homem a homem, atracando-se em abraços de serpentes até um perder o fôlego e ceder, afrouxando o aperto e fazendo o adversário apertá-lo mais ainda, até não conseguir respirar e morrer afogado na poeira. Também mediam forças se esganando e, uma vez no chão, recebiam o golpe de misericórdia na cabeça, desferido pela clava inclemente, sob um estrondo de crânio se partindo e uma mancha escura a marcar o chão argiloso de Itacoatiara.
         Taobara comandava seu grupo pessoal por entre as fogueiras, em busca dos inimigos muras, e dele faziam parte os mais fortes e valentes guanavenas e ainda Pikiwaha e Aiauara, como havia prometido ao irmão Nahpy, e Monawa, com o caboquena se mostrando digno de fazer parte da elite guerreira do povo de sua esposa. Eles localizaram vários muras buscando a proteção por trás de uma cabana, na tentativa de armarem seus arcos e desferirem um golpe contra os adversários, mas foram surpreendidos pelos guanavenas e tiveram frustrado suas intenções de intentarem maus objetivos. Pikiwaha era o mais destemido, devido seu espírito jovem o encorajar ao ataque sem cautela, demonstrando desprendimento superior à coragem, mais parecido com arroubo.
         Os inimigos estavam sendo derrotados e então os guanavenas partiram em busca de novos grupos de muras para eliminá-los, encontrando um tão bem armado e disposto a lutar quanto eles. Primeiro enfrentaram-se com o olhar, depois mostraram seus dentes, em seguida abriram a boca um ao outro, deixando visíveis as fauces por onde pretendiam empurrar a carne dos derrotados. Lançaram-se à luta e a agilidade de Pikiwaha o impediu de ser acertado com um golpe de borduna, desferindo ainda um contragolpe nas costas do inimigo. Este caiu aos pés de Monawa e recebeu o porrete em seu crânio desferido pelo caboquena. Aiauara corria logo atrás e também testou a dureza de sua clava nas costas do mura, mas este não gemeu após o impacto da maçada.
         Taobara foi para perto do filho, defendendo-se dos ataques de um mura de forte compleição e feroz como uma onça faminta. O adversário tentou derrubar o cacique guanavena, mas este suplantava a força do outro com sua esperteza, desvencilhando-se e desferindo golpes de retardo a reação do oponente. O filho viu o pai ser atacado e foi socorrê-lo, mas o índio com o qual brigava não o deixou seguir adiante e o atingiu nas costas com a ponta da borduna. Mesmo assim o baque foi forte o bastante e jogou-o ao chão, deixando atordoado pela dor lancinante. Ainda dono de seus reflexos, se ergueu no momento exato do inimigo preparar o golpe fatal.
         O cacique viu o filho ameaçado de receber a pancada mortal na cabeça e reagiu invocando toda a força armazenada em seu braço para direcionar um golpe contra o guerreiro com o qual combatia. Foi rápido e certeiro e a clava do guanavena se bateu com tanta força na do inimigo que ambas se partiram. Taobara pensou mais rápido e atirou com força o resto de tacape em sua mão, desnorteando o mura e o permitindo chegar a tempo de conter o oponente de Pikiwaha em sua intenção mortal. O cacique o agarrou pelas costas, erguendo seu corpo e o atirando ao chão, sem afrouxar o aperto de seu abraço e tentando asfixiá-lo.
         O outro inimigo, mesmo ferido, recuperou-se e investiu contra o cacique, mas Pikiwaha o deteve com novo golpe de borduna, desta vez por inteiro. O guerreiro tombou para trás de seu bando e lá ganhou proteção, impedindo Aiauara de também participar do ataque. Após esse fato, todos os guerreiros diminuíram a sanha da luta para assistir Taobara digladiar no chão contra o mura. Os dois rolavam na mistura de poeira e sangue, mas ninguém ousava intervir, mesmo com o mura em ligeira desvantagem. Era uma forma de luta respeitada em todas as tribos, a contenda homem a homem no abraço da morte. Pikiwaha tentou avançar quando o mura reverteu a posição e ficou por cima de seu pai, quase conseguindo soltar-se. Mas os braços de Taobara seguraram firme o oponente até uma golfada de sangue sair de sua boca, mostrando que suas costelas tinham se partido e a morte era iminente.
         Os muras se assustaram diante da vitória espetacular do cacique guanavena e recuaram, mas foram atacados por índios empolgados depois de verem seu maioral matar apenas com a força de seus braços o forte guerreiro inimigo. Taobara largou o corpo inerte de seu oponente e recomeçou novos ataques, com os muras escapando para as brenhas da mata e deixando seus companheiros serem mortos a bordunadas, sem coragem de reagir à sanha assassina dos invasores.
         A cada embate vencido, os guanavenas percorriam a aldeia em busca de mais inimigos e os encontravam em todos os cantos, sempre lutando contra caboquenas, bararurus, mundurucus e saterês. Na confusão da luta, ora um grupo levava vantagens ora era repelido e morto. O combate prosseguiu durante a noite toda e quando as primeiras luzes da manhã se anunciaram no céu, Taobara se encontrava exausto e resolveu descansar com seu grupo, deixando o campo de guerra para se lavar nas águas do grande rio Amarelo.
         Os bravos deram uma pausa na luta, estendida sem trégua desde o anoitecer até o raiar de um novo dia, ceifando a vida de muitos guerreiros. Extenuados pelo esforço físico, simplesmente os bravos abaixavam a borduna e seguiam cada uma para seu lado diferente, se reunindo aos companheiros e procurando o descanso merecido depois da longa batalha. Muitos estavam feridos, precisando recuperar as forças para o reinício dos combates e seguiram por caminhos opostos até o rio, buscando nas águas frias o ungüento de suas dores.
         O cacique guanavena desceu o barranco escorregando entre as pedras que davam nome ao lugar e sentiu as dores das feridas quando entrou em contato com a água do rio. Trazia ferimentos nas costas e no rosto e tinha um dedo inchado, talvez até quebrado devido o clamor da luta. Seus comandados estavam ao seu lado e também traziam as seqüelas do confronto, inclusive seu filho Pikiwaha, sem um dente na boca, arrancado a golpe de tacape. O sangue dos combatentes tingiu de vermelho a palidez do rio, mas eles logo se sentiram revigorados e dispostos a recomeçar a luta contra os muras, que também se lavavam rio acima.
         O banho não foi prazeroso como o era na ilha Saracá, entre águas escuras e areias brancas, mas mesmo assim a lama do leito estancava ferimentos ainda abertos e servia de cataplasmas nos inchaços de golpes não mortais. Aiauara mostrou um grande galo na testa, mas sentiu o reconforto voltar-lhe à cabeça quando usou um pouco de barro para aplacar a dor, como bem ensinara seu pai Nahpy, a quem o lodo do grande rio Amarelo tinha propriedades curativas.
         Outros guerreiros se reuniram nas margens, lavando as marcas de uma noite implacável, pois na água encontravam a força com a qual retomariam o confronto. O banho coletivo dos bravos mostrou quem conseguiria prosseguir na luta, devido o esforço ser tanto que muitos sequer reuniam vontade de subir o barranco, mesmo quando os muras já estavam no alto do morro a desafiá-los para a guerra.
         Toabara reuniu com os caciques e decidiram contornar o morro pelo jauarizal, evitando o confronto no íngreme terreno, onde os muras teriam grande vantagem e, muito certamente, chamavam os aliados na esperança deles subirem o barranco, ficando menos protegidos. Os guerreiros contornaram a margens do rio, fustigados por flechas e pedras jogadas ribanceira abaixo, visando infligir baixas na tropa aquarteladas na beira do barranco.
         Em pouco tempo os guerreiros conseguiram chegar ao jauarizal e empreenderam a subida ao morro, mas os muras, motivados por nova perspectiva da guerra, não esperaram os inimigos chegarem até a taba da aldeia e atacaram os aliados ainda no matagal, em escaramuças de surpresas, a fim de enraivecer os bravos, que não tinham como atirar suas flechas ou empunhar a borduna no terreno de cipoal inextrincável. Os caciques ordenaram seus homens a se espalhar pelo mato, evitando assim um confronto em desvantagens à tropa aliada.
         Com muito esforço os grupos conseguiram romper os labirintos do jauari e chegaram em campo aberto, mas encontraram os muras agora no alto do morro, desafiando-os com uma insolência que deveria ser reprimida. Os comandantes não queriam os bravos correndo em direção à luta, ao invés disso, pararam no sopé do barranco e passaram a desafiar os muras, chamando-os para onde estavam. Os muras atenderam aos pedidos dos inimigos e desceram o morro, erguendo suas lanças e depois apontando-as aos aliados.
         Com pequena distância entre as tropas, arqueiros aliados dispararam suas flechas contra o batalhão morro acima, derrubando implacavelmente os primeiros da linha de frente, mas não impedindo o restante dos guerreiros de abaterem os bravos aliados na vanguarda dos combates. A luta feroz retornou e se espalhou no jauarizal e no alto do barranco. Os primeiros muras entraram em combate com suas lanças e foram cercados, mas seus companheiros não davam oportunidade dos aliados passarem a ofensiva, chegando novas levas em gritos aterradores, se lançando contra os adversários determinados a matar ou morrer.
         Todas as tribos se batiam agora tendo como tática apenas a ferocidade, com cada um lutando sua guerra particular, sem espaço entre eles para manobras e nem voz de comando que suplantasse os gritos dos que tombavam feridos, e de júbilos dos agressores. Taobara queria impor sua estratégia de diminuir os espaços, a fim das tribos aliadas fazerem um ataque sucessivo, deixando o restante dos guerreiros descansando da peleja noturna, mas o calor dos combates enfureceu a todos, lançando-os uns contra os outros. Sem ter como articular o ataque, os caciques também entraram na briga, cercados por seus homens de confiança e lutando com determinação, encorajando seus comandados a matar e salvar suas vidas.
         A luta se estendeu por toda a manhã, com sucessivas reveses e vitórias momentâneas de ambos os lados, mas quando o sol se pôs no centro do céu, as forças dos muras não podiam mais conter o ataque de cinco tribos juntas e começaram a ceder espaço barranco acima. Mesmo esgotados, os aliados se redobravam na vontade de vencer o inimigo, agora cedendo terreno por não ter mais condições de resistir ao assalto avassalador dos adversários. Os muras começaram a recuar e foram sendo empurrados ao alto do terreno, tentando se proteger entre as paliçadas que cercavam a aldeia de Itacoatiara.
         A vitória tão esperada contra os muras parecia inevitável, mas uma reviravolta se armou contra os aliados quando os inimigos já se punham em fuga desesperada. Alguns notaram pontos pretos surgindo rapidamente na curva imensa do rio, se aproximando com velocidade na correnteza favorável. Os muras, antes prestes a capitular de sua aldeia, também viram os reforços se aproximando e ganharam ânimo novo diante da possibilidade de resistir e reverter o final da batalha, já totalmente desfavorável a eles.
         Os guerreiros inimigos, antes em fuga, agora retornavam mais ameaçadores, dando seus gritos de guerras para estremecer o coração dos oponentes. A vitória tão próxima e iminente foi se esvaindo na incredulidade dos aliados, pasmos de ver se aproximarem as canoas trazendo muitos guerreiros muras para dar outro destino à batalha. Arawetê chamou os outros caciques e ordenou a retirada rápida para o interior da selva, numa saída estratégica porque todos os bravos estavam extenuados e não suportariam uma luta contra muras descansados.
         - Se recuarmos agora, nunca mais teremos a oportunidade de derrotar os muras, protestou Taobara, cuja coragem e determinação o impulsionava a ficar e lutar até a morte.
         Os guanavenas se prontificaram a seguir seu maioral, mas os outros caciques entenderam que a situação não era de bravatas inúteis e retiraram seus guerreiros do campo de batalha, obrigando Taobara a fazer o mesmo, tanto para proteger seu povo como evitar o contraataque dos muras, já no encalço dos retardatários quando os reforços chegaram na aldeia. Os aliados se retiraram com suas últimas reservas de forças, mas até seus oponentes não tiveram ímpeto de prosseguir na perseguição e deixaram os invasores irem embora. De longe, no interior da selva, os aliados em fuga ouviram os gritos de triunfo dos muras entoados na comemoração de mais uma vitória contra povos desejosos de conquistar seus ricos territórios, porque somente um povo forte poderia ocupar as terras nas margens do grande rio Amarelo.
         A retirada foi penosa, com o moral dos guerreiros em seu nível mais baixo, muitos estavam feridos, alguns não agüentavam o esforço da volta e se deixavam ficar pelo caminho, caindo mortos depois de terem visto a vitória tão próxima. Quem podia ser carregado era levado, mas os ferimentos de alguns eram tão insuportáveis e doíam com intensidade, depois de o sangue esfriar e abrir as chagas recentes que optavam por morrer logo, sem ter de enfrentar seus familiares com o olhar dos derrotados.
         Taobara se aproximou de Arawetê e disse ainda haver a possibilidade de reverter o resultado da guerra, bastava os guerreiros descansarem nas margens do lado Canaçari, recuperando as forças com os peixes abundantes do lago, para em seguida empreender o assalto final contra Itacoatiara. No entanto, maioral saterê estava mais preocupado em levar seus bravos a salvo de um possível ataque dos muras, por isso ordenou a retirada acelerada e embarcaram nas canoas, se pondo sob a proteção do lago e fora de alcance da vingança dos inimigos.
         Embora a decisão fosse uma demonstração da fraqueza, a sensatez prevaleceu sobre os guerreiros em fuga e eles se puseram a correr até chegar nas águas escuras do lago, onde suas canoas estavam posicionadas para a retirada. Mesmo com as muitas baixas sofridas na guerra, a tropa não encontrou acomodação suficiente nas embarcações para tantos guerreiros e feridos. Foi preciso deixar na praia os agonizantes, ato que quebrantou o orgulho dos índios e pôr em dúvida, no peito de alguns, a justeza de seguir as ordens de seus chefes.
         Arawetê tomou o comando da retirada, dando ordens para os guerreiros remarem em direção à ilha Saracá, mas Taobora o destituiu de imediato, arrebatando para si o pouco de autoridade que havia naquela situação. Meyki e Parakatejê tentaram impedir sua ascensão à liderança, mas os guerreiros estavam tão abatidos e a viagem até a ilha seria tão penosa, com ventos contrários e banzeiros altos, que resolveram não seguir a mais ninguém, somente aos seus instintos e se puseram a remar atendendo ao ritmo da batida de seus corações.
         Taobora aos poucos foi impondo sua vontade, indicando a direção das ilhas, onde se esconderiam dos ventos e teriam proteção contra os banzeiros. O dia começou a ceder aos encantos da noite, mas ainda restava no esplendido céu azul os últimos lampejos do sol, traçando aspirais de luz e pintando as nuvens mais baixas com o tom avermelhado do sangue dos guerreiros mortos. Seria preciso ainda remar durante toda a escuridão até chegar à ilha Saracá, mas os guerreiros suportaram estóicos da mesma forma como enfrentaram os inimigos no campo de batalha.
         Venceu a tenacidade quando os primeiros raios da manhã surgiram e os guerreiros puderam enfim divisar no horizonte a silhueta exuberante da ilha Saracá, com seus altos barrancos de luxuriante vegetação, dividindo o caminho do rio Orowo e separando as bacias dos lagos Canaçari e Saracá. Remaram com mais determinação quanto mais se aproximavam das praias, contornando o Mucajatuba e se deparando com a aldeia dos guanavenas, onde o povo aguardava os guerreiros na esperança de ouvir a notícia da grande vitória sobre os muras.
         Não foi preciso esperar o desembarque: a notícia chegou primeiro, bastava ver de longe nas caras dos bravos o desenho do sofrimento e da derrota, sem prisioneiros para oferecer às tribos e sem pilhas de cadáveres a serem sepultadas. Eram evidências muito concretas de uma retirada apressada, de perdas de vidas inúteis, de muitos filhos e maridos sem retornar às suas famílias, tombados em terras desconhecidas, aprisionados por gentes hostis, sofrendo a humilhação de terem sido derrotados e capturados como animais de caça, espancados em vingança por parentes mortos em lutas anteriores e, por fim, devorados em banquetes durante as comemorações pela expulsão dos invasores.
         As canoas se aproximaram lentamente, mais impulsionadas pelas correntes que pela força dos remos, devido a exaustão ter tomado conta dos guerreiros e eles sequer tinham disposição de chegar, retardando ao máximo o encontro com a verdade que os esperava na ilha. Os meninos em terra foram os primeiros a entrar na água e nadaram em direção das embarcações, foram seguidos pelas mulheres, aflitas por conhecer os detalhes da guerra e carpir pelos mortos, parentes ou não. Mas não se aventuraram a seguir além da água nos seios, deixando aos velozes meninos nadadores a tarefa de rebocar as embarcações até a praia.
         O valente Byrytyty foi o primeiro a chegar até as embarcações e foi direto na canoa onde estava seu irmão Aiauara, acompanhado do tio Taobara, o primo Pikiwaha e o cunhado Monawa. Todos os seus parentes mais próximos estavam vivos. Na canoa ia também Yepá, o guerreiro misterioso da tribo dos caboquenas, sem marcas de lutas renhidas e seu rosto era o único sem a expressão da derrota. Byrytyty viu um ar de felicidade no riso imperceptível, sem saber que o irmão de Monawa estava em outro mundo, dopado por substâncias que o levavam a lugares onde os sofrimentos de seus companheiros não podiam chegar.
         O pequeno guanavena segurou a proa da canoa e foi conduzindo-a até a praia, batendo com força os pés na água para dar impulso à embarcação, uma vez que todos os remos foram retirados do lago. Byrytyty estava ansioso de alcansar a praia e aceitou a ajuda de outros meninos, vindos em seu socorro, dando braçadas profundas e fazendo sua nave ser a primeira a tocar na areia. Quando chegaram perto das mulheres receberam suas ajudas e foram caminhando, levantando o cauixi do fundo e toldando a água do lago com tantos pés a desembarcar em busca de descanso aos espíritos destroçados.
         O choro das mulheres se fez ouvir em toda a ilha, rompendo a imensidão do lago e convidando os moradores das comunidades próximas a prantearem os parentes mortos. Logo vieram canoas do Murucutu, do Estreito e da Demanda, com famílias inteiras, mães aflitas em busca de notícias de seus filhos. E se os encontravam vivos, choravam abraçadas a eles como se tivessem nascidos outra vez, mas quando procuravam e não os encontravam entre os bravos, ou entre os poucos feridos, então se desfaziam em gritos sem consolo, correndo pela praia como se podessem ao menos capturar seus espíritos e dar-lhes o abraço maternal que não podiam oferecer a seus corpos.
         Nahpy de imediato deu início ao procedimento de cura aos feridos, ajudado por Tawacã, cujo ventre se avolumava com a aproximação de mais um parto. A situação da esposa envaidecia Monawa em seu retorno da guerra, com histórias de bravura para serem contadas por ele e por seus companheiros, pois sua coragem não passou despercebida a Taobara, que sempre o julgou um fraco diante dos inimigos por retornar sempre ferido, carregado por seus parentes. Agora foi diferente, pois veio com as próprias pernas e amparando Pikiwaha, com o rosto desfigurado devido o impacto do tacape mura que lhe arrancou os dentes da boca, e também Aiauara, cujo desgaste físico o deixou em um estado de torpor, sem forças sequer de abandonar a canoa e desembarcar. O filho de Nahpy foi retirado desmaiado da embarcação, colocado na praia e ali mesmo recebeu os primeiros cuidados do pajé e de sua família.
         Tananta se agarrou ao corpo do marido pensando que o mesmo estava morto, mas foi só recebê-lo em seus braços e os olhos do jovem guerreiro se abriram como se estivessem vendo uma aparição sublime. O bravo tinha lutado com coragem e determinação, sem um momento de fraqueza, empunhou a borduna em defesa de sua vida e dos companheiros, matou quantos muras pode matar, viu o sangue expelido com força de dentro do crânio destroçado pela maça cair como chuva em seu corpo e nos dos combatentes a volta. No entanto, quando se alojou nos braços da esposa, sentindo sua barriga arredondada nas costas, pode então recobrar a ternura de seu espírito e voltou a desfalecer, mas na segurança do colo da mulher a quem tanto amava.
         Não houve festas na volta dos guerreiros. Eles só desejavam comer o quanto pudessem e depois descansar da fatiga imensa de perder uma batalha. Nahpy cuidou dos enfermos, junto com Tawacã, enquanto Monawa dormia na rede armada no espaço da oca destinado à família do pajé, e Aiauara, assim como acompanhou o cunhando na guerra, também estava ao seu lado no momento de descaso. À noite, acenderam as fogueiras, mas os feitos dos guerreiros foram suplantados pelas lembranças de uma batalha cuja vitória esteve muito próxima, mas não se concretizou por falta de disposição de prosseguirem na luta, amedrontados com a chegada de reforços dos muras.
         - Nossos bravos não suportariam um embate com guerreiros descasados, justificou o cacique mundurucu, explicando aos outros maiorais e aos anciãos o porquê de ter dado a ordem de retirada do campo de batalha.
         - Poderíamos ter enfrentado os novos guerreiros se eliminássemos os muras antes do reforço deles desembarcar em Itacoatiara, ponderou Taobara, enfatizando ter se recusado a abandonar a luta, quando os inimigos se encontravam em fuga.
         - Como aniquilaríamos os muras se já os estávamos combatendo um dia inteiro e não conseguíamos superá-los, argüiu Parakatejê, recebendo o apoio de Meyki, ambos considerando a retirada uma estratégia acertada.
         - Estávamos no limite de nossas forças, não agüentaríamos mais tempo no ritmo da luta, disse Jauaraçu, o único cacique ao lado de Taobara, mas também compreendendo ser impossível prolongar a batalha contra os muras.
         O maioral guanavena resmungava, mostrando a determinação de continuar lutando, mas suas bravatas foram descartadas quando Nahpy interviu, argumentando que se a decisão de abandonar a aldeia mura, antes da chegada dos novos guerreiros, serviu para salvar a vida de muitos bravos aliados, então fora acertada. O pajé tinha grande influência no conselho dos anciãos e sua palavra balizou a opinião de todos os presentes, determinando o final da reunião, sem desmerecimento à valentia dos guerreiros e com a convicção de que a guerra estava perdida para os muras.
         Taobara saiu da oca do conselho, indo direto encontrar os bravos guanavenas para tratar do futuro de seu povo. Ainda na saída, Jauaraçu o segurou pelo braço, na tentativa de explicar-lhe melhor sua posição, mas o maioral não lhe deu atenção e soltou-se com descortesia ao aliado de todas as lutas. O cacique andou até a praia do Terceiro, tomando cuidado para seus passos não serem seguido, e lá encontrou os comandados de confiança mais sincera, o estado maior do povo guanavena. Chamou pelo nome de todos e todos atenderam ao chamado. Então transmitiu uma ordem a Warypa, o rastreador mais ladino da ilha Saracá.
         - Tu vais até a aldeia de Itacoatiara e diga ao maioral dos muras que eu, o cacique Taobara, líder da tribo dos guanavenas, desejo ter uma conversa com ele.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Capítulo 17 - Tocaia dos Mortos

         AS COMEMORAÇÕES PELAS PRIMEIRAS VITÓRIAS LOGO DERAM LUGAR ÀS LUTAS INTERNAS entre os caciques. Meyki queria assumir o posto de principal chefe das tropas aliadas por conta do apoio de Paraketejê e de Araweté, e pensando mais adiante em dividendos maiores, quando por fim a vitória sobre os muras fosse definitiva e a paz retornasse à região, mas desta vez sob o domínio dos caboquenas. Meyki tinha alguns trunfos ao seu lado e o principal era Yepá, conhecedor da língua dos mundurucus e capaz de se entender com os saterês. O maioral podia assim manobrar tranqüilamente e fazer valer sua vontade, minando a força de Taobara sobre os aliados do Canaçari.
          Mas se contrapor a Toabara era uma situação distinta de vencê-lo na argumentação, então o cacique caboquena adequou seus planos à realidade e indicou Araweté para comandar as tropas aliadas, por ter mais bravos sob seu comando e conhecer melhor ainda as táticas de luta dos muras. Paraketejê concordou com a proposta de Meyki, numa atitude óbvia por não ser interessante aos principais caciques ficar sob as ordens de um maioral cujo território não ultrapassava os limites do lago Canaçari e com tropa bem menor que a dos guerreiros vindos da Mundurucânia.
         - Esta é uma proposta condizente com a força de meus guerreiros, disse de forma incisiva o maioral mundurucu, rejeitando qualquer argumento de Taobara, que insistia em ficar a frente dos aliados.
         Taobara aceitou resignado a realidade da guerra, mas seu peito afastou qualquer espaço onde pudesse caber consideração por Meyki, e isto deixou bem claro quando, ao final da reunião, abandonou a taba onde estavam os caciques lançando olhares de ódio ao caboquena, que respondeu com riso maroto de satisfação. Parecia ser a primeira vitória política de Meyki sobre Taobara, porque este fora alijado da supremacia sobre as tribos da região do Canaçari, mas o cacique guanavena ainda tinha muita força e também sagacidade por estar acostumado a manipular as situações adversas e conquistar ganhos adiante.
         Foi isso que Taobara resolveu fazer ao aderir com calculado entusiasmo ao novo comando dos guerreiros, tentando ajudar da melhor maneira possível nos preparativos da guerra e oferecendo seus bravos mais próximos para missões de reconhecimento. Numa jogada de grande esperteza, protestou de imediato quando Meyki propôs colocar Yepá na linha de frente dos rastreadores, que deveriam se aproximar muito perigosamente da aldeia dos muras e conhecer suas defesas.
         - Yepá é o melhor rastreador que temos entre nossa gente, mas ele será muito mais útil estando entre nós do que partindo em uma missão de alto risco, disse Taobara durante a reunião dos caciques e recebeu o apoio de todos, evidenciando assim a inexperiência de Meyki na montagem de estratégias.
         O cacique guanavena indicou até o caboquena Zo´é para a missão de reconhecimento nas terras inimigas e explicou tratar-se de um rastreador de visão acurada, deixando claro aos comandantes da guerra que conhecia muito bem sua tropa e a dos caboquenas. Meyki percebeu a intenção de Taobara de diminuí-lo perante o conselho dos caciques, mas não encontrou argumento para contestar o guanavena. Ele tinha razão: Zo´é era o melhor homem entre os caboquenas e daria conta da tarefa, e Yepá era o único entre todos que conseguia se comunicar em todas as línguas faladas entre os aliados.
         O pequeno grupo formado por representantes de todas as tribos aliadas partiu para as terras dos muras com a finalidade de traçar os melhores caminhos de ataque a aldeia Itacoatiara. Eles seguiram em leves canoas pelo lago Canaçari, esgueirando-se pelos igapós até atingir os confins lacustres onde as águas já não tinham dono por estarem localizadas na fronteira indefinida entre os territórios dos povos inimigos. Desembarcaram durante a noite e adentraram na selva em busca de proteção, mas quando se reuniram pela manhã, constataram que estas terras estavam desabrigadas e então seguiram adiante, percorrendo caminhos abandonados pelos muras e encontrando em toda parte sinais visíveis de pessoas terem deixado esta região e se concentrado na aldeia principal.
         - Os muras estão se reunindo em Itacoatiara, disse Zo´é aos demais bravos.
         - Por isso mesmo devemos aumentar nossa vigilância. Os muras são ladinos e vão deixar observadores na região, para impedir um ataque surpresa em sua retaguarda, explicou Warypa, o experiente rastreador guanavena, participante de muitas missões iguais a esta.
         Eles avançavam cautelosos pelas matas, cada um sozinho, porque juntos seriam mais facilmente localizados caso encontrassem os esperados vigias muras. Se comunicavam através de piados de pássaros e estavam atentos a qualquer movimento que pudesse delatar a presença do inimigo. No final da tarde se reuniam nas árvores mais elevadas, onde se escondiam dos perigos da noite e então relatavam suas observações, tramando novos rumos para avançarem até a aldeia principal dos muras.
         As evidências da proximidade dos muras se tornavam claras quanto mais os aliados avançavam no território. Eles viram os índios preparando paliçadas em busca de proteção contra ataques pelos flancos e pela retaguarda. Viram mulheres recolhendo frutas e cuidando dos roçados, enquanto as meninas colhiam mandiocas e estocavam na aldeia. Tiveram muitas vezes de se esconder a fim de não serem descobertos pelas crianças quando brincavam nas proximidades e observaram os muras escondendo muitas canoas nas margens do rio, se precavendo de um possível ataque fluvial.
         Os rastreadores tomaram conhecimento das estratégias de defesa dos muras e então resolveram retornar à ilha Saracá e contar aos seus comandantes sobre a situação do território a ser atacado. Atravessaram a selva até se encontrarem nas margens do lago Canaçari, onde desenterraram as canoas escondidas e embarcaram nelas para a longa viagem de retorno. Quando chegaram na proteção da ilha, diante do conselho dos maiorais, relataram tudo que viram. Que os muras estavam preparados para longas batalhas, reuniam homens de todas as localidades próximas, dispostos a defender a aldeia de Itacoatiara.
         - Vamos atacar rápido e por todos os lados, disse Araweté, recebendo a concordância de todos os outros caciques.
         Taobara desenhou no chão um círculo, representando a aldeia dos muras, e dispôs as tropas no ataque, colocando cada tribo em uma posição. Seus argumentos eram precisos e até Araweté, o comandante dos aliados, concordava com o arranjo dos guerreiros. Somente Meyki não gostou quando se viu no centro da formação que atacaria por terra, deixando o flanco do nascente aos guanavenas, enquanto os bararurus atacariam pelo poente, por onde se supunha os inimigos tentariam fugir caso o ataque dos aliados obtivesse sucesso.
         Parakatejê interveio a favor de Meyki, questionando o posicionamento das tropas que atacariam por terra. Ele considerava os guanavenas, em maior número, mais capazes de atacar pelo centro, auxiliados pelas laterais pelos guerreiros caboquenas e bararurus. Os bravos saterês e mundurucus atacariam pelo rio, por suas destrezas em empreender o assalto nas margens, pois suas canoas eram maiores e podiam carregar muito mais homens.
         - Meus bravos não temem enfrentar o inimigo por nenhuma posição, jactou-se Taobara, aceitando colocar seus homens no lugar dos caboquenas e exortando todos ali a abdicar de seus receios porque seu irmão Nahpy preparava uma porção que protegeria os aliados contra as armas dos muras.
         - Temos de estar unidos na batalha, sem dispersão de objetivos. Qualquer fraqueza será nossa derrota, enfatizou Araweté, reafirmando sua posição de líder no conselho dos maiorais.
         Era preciso preparar os últimos detalhes e partir ao ataque final contra Itacoatiara, a aldeia imensa dos muras, nunca antes cercada e nem posta à prova suas defesas. A quantidade numérica dos aliados os encorajava a tentar uma estratégia perigosa, pois dificilmente poderiam contar com o elemento surpresa e vencer os inimigos concentrados em seu território. Mas a possibilidade de recuo ou tentativa de fazer um acordo de paz era improvável e a única alternativa restante era dizimar os muras, embora eles também estivessem preparados para as piores batalhas, como sempre foram.
         Quando o dia da partida chegou os guerreiros se concentraram na praia e ouviram as orientações dos caciques, depois receberam a porção protetora de Nahpy, cujos ingredientes eram uma mistura de todas as fórmulas mágicas trazidas pelos pajés de todos os povos que compunham a tropa aliada. Nunca na ilha Saracá houve uma concentração tão grande de canoas, ocupando toda a extensão da areia, desde a praia do Terceiro até o igarapé do Mucajatuba.
         Nahpy, Tawacã e outros pajés distribuíram a porção aos guerreiros e todos beberam com a convicção de estar protegidos das armas inimigas. Alguns até gritando palavras de encorajamento à tropa, recebendo em resposta urros de guerra. Estavam todos pintados, mas mesmo assim Nahpy fez questão de passar em cada um deles a tintura vermelha, a cor da profilaxia, entoando a canção de atrair os espíritos da coragem e da bravura, sabendo o pajé que toda a proteção aos guerreiros seria pequena diante do desafio que os aguardava.
         Quando se encontrou diante de Aiauara, Nahpy entornou sobre a cabeça do filho o restante da tintura vermelha da cuia, deixando seus cabelos impregnados do urucum. O cacique olhou nos olhos do filho e invocou proteção ao deus Paharamim, para guardar o corpo do guerreiro que viu nascer, crescer, se tornar homem e por quem seu coração se estilhaçava todas às vezes quando o via partir para a guerra.
         - Vai meu filho, e os espíritos de nossos ancestrais te acompanhem durante a luta, soluçou Nahpy ao filho. Saiba honrar o sangue do teu povo, pediu por fim.
         Taobara se aproximou do irmão tentanto evitar que a encenação do Nahpy afrouxasse a determinação dos outros guerreiros. Era um exemplo ruim do pajé, demonstrar sentimentos. Ao cacique custara inserir nos comandados atitudes de coragem e desprendimento com a própria vida, mas o pajé estava se mostrando pouco honrado ao dedicar ao filho maiores cuidados que aos outros guerreiros. Taobara segurou seu irmão pelo braço e o mandou continuar a cerimônia de proteção, sem gestos de fraqueza e sem contaminar seus bravos.
         - O quê tu pretendes com sentimentos de mulher? questionou o cacique ao irmão. Por acaso queres desmoralizar o sangue guanavena?
         - Este é meu filho e não gostaria de vê-lo voltar morto da guerra, explicou o pajé, quase soluçando.
         - Ele lutará ao meu lado e de seu primo Pikiwaha e cada um de nós trará uma cabeça de mura como troféu de guerra, prometeu Taobara ao pajé.
         Nahpy venceu suas emoções e terminou o ritual com o orgulho recuperado, oferecendo a cada guerreiro o escudo das porções mágicas criadas em conjunto com os outros pajés.
         Quando o sol da tarde começou a descida rumo às cabeceiras do rio Orowo, os bravos iniciaram as danças ritualísticas, que invocavam a proteção de seus deuses. Antes da noite se estender sobre o mundo eles embarcariam nas canoas, rumo à batalha da qual nem todos retornavam. Lá, os aguardavam as incertezas de lutas ferozes, e estas plantavam dúvidas na coragem dos mais valorosos guerreiros, fazendo-os temer o destino de cruel de ser feito prisioneiro dos inimigos. Os bravos dançaram até o sol se esconder e então tomaram o rumo do lago Canaçari, saindo em muitas canoas rumo ao destino incerto.
         Antes, Monawa fora se despedir de sua esposa e prometeu a ela retornar trazendo um grande botim da aldeia de Itacoatiara, para encher-lhe de orgulho pelo marido honrado que sabia lutar e não temia os perigos das guerras. Tawacã levou as mãos de Monawa à sua barriga e o fez prometer não a ela, mas à criança em seu ventre. O caboquena sentiu as pulsações da pele de sua esposa e garantiu um retorno rápido, a tempo de ver a família receber mais um membro de sua gente. Depois ele embarcou com a tropa dos guanavenas, remando junto do cunhado Aiauara e seu primo Pikiwaha, ao lado da embarcação onde seguia o cacique Taobara.
         As canoas sumiram na escuridão do lago, contornando as últimas árvores do Mucajatuba até estarem todas enfrentando as águas do lago, num alvoroço de gritos de exaltação e de remadas. Mas só foi a tropa deixar os contornos da ilha e o silêncio invadiu o ambiente, quebrado apenas pelas batidas dos corações dos guerreiros, agora todos em um mesmo pensamento, concentrados em imaginar como seria a batalha e pedindo a Paharamim para não tombarem durante a luta.
         Era um momento de tensão, no qual cada guerreiro se fechava absorto, procurando concentrar-se no destino mais próximo a cada remada, a cada banzeiro vencido, e o inimigo espreitando a frente, também tenso na longa noite que traria a morte ao campo de batalha. Os aliados avançavam protegidos pelo silêncio e pela noite, até atingirem o canal que liga o lago ao grande rio Amarelo, onde se separariam até o cerco à aldeia dos muras, logo nas primeiras luzes da aurora.
         Assim como estava planejado, os guerreiros das tribos mundurucu e saterê adentraram no imenso rio, remando com fúria e vencendo a correnteza contrária até Itacoatiara. Pelo lago seguiu o restante da tropa, sob o comando de Taobara, cuja experiência em guerras o transformara na esperança de vitória fácil.
         Taobara mandou seus guerreiros apressarem as remadas porque queria surpreender o inimigo antes mesmo de mundurucus e saterês atingirem a aldeia e os bravos obedeceram com entusiasmo. Eles também estavam ansiosos pelo início da batalha, para superarem os momentos de angústia do pré-combate. O cacique sabia da aflição de cada um dequales índios e, por isso, quanto logo se iniciasse a batalha, mais rápido estariam livre da agonia de esperar o seu momento decisivo.
         A tropa aliada estava nas margens do lago Canaçari, na retaguarda da aldeia dos muras, mas quando desembarcaram não encontraram nenhuma resistência por parte dos inimigos. Os caciques então reuniram seus homens e avançaram pelo território em marcha acelerada, com os primeiros pássaros já iniciando o alvoroço do despertar e a tropa devendo completar o cerco antes das primeiras luzes da manhã, surpreendendo assim os adversários quando eles estivessem acordando.
         Mas os muras não dormiam nesta noite, assim como deixaram de descansar nas muitas noites que antecederam esta madrugada. Os primeiros conflitos se deram em emboscadas preparadas pelos defensores, com rajadas de flechas zunindo da escuridão da floresta até surpreender os combatentes invasores. Essas escaramuças foram apenas para retardar o avanço dos aliados, mas estes continuavam a seguir em frente, penetrando na selva a caminho de Itacoatiara, buscando agora mais proteção entre as árvores, mas com o único e definido objetivo de esmagar os muras.
         Mesmo enfrentando os ataques esporádicos dos inimigos, os aliados foram diante das primeiras paliçadas da grande aldeia mura e encontraram uma fortificação capaz de deter seu avanço, mas não o suficiente de conter o ímpeto dos guerreiros. Taobara posicionou sua tropa e recebeu a informação de que Meyki estava pronto para o ataque, assim como Jauaraçu e os guerreiros bararurus. O golpe final contra os muras estava armado, a claridade da aurora se anunciava no horizonte e os homens posicionados, todos com objetivo de matar e não morrer.
         - O momento da verdade é agora, chegou o dia de cada um mostrar sua coragem e honra, gritou Taobara aos índios, erguendo a clava e avançando contra os muras.
         Os guanavenas seguiram seu cacique no ataque e as outras tribos também iniciaram o avanço, no entanto, a primeira linha de atacantes tombou diante das flechas inimigas, mas as hordas conseguiram se esgueirar entre as árvores, levando os primeiros guerreiros a atingir as paredes da paliçada. Na retaguarda, uma linha de arqueiros disparou suas flechas contra a defesa dos muras, reduzindo um pouco a ferocidade dos defensores. Taobara ordenou o avanço de outra turma às paliçadas e novamente as flechas cruzaram os céus de ambos os lados, atingindo aqueles que corriam e também os escondidos atrás das paredes protetoras da aldeia.
         Pelo lado da nascente, Meyki mandou seus homens rastejarem e procurarem a proteção das cercas, mas mesmo assim eram atingidos pelas flechas, enquanto seus arqueiros também atiravam contra a fortificação. Jauaraçu atacou apenas com flechas, evitando expor seus guerreiros a um assalto em franca desvantagem. Mesmo assim, os bararurus fustigavam as defesas dos muras e apoiavam o avanço dos guanavenas com novas saraivadas de setas.
         Os invasores estavam concentrando seus guerreiros em torno da cerca que protegia a aldeia, mas venciam com dificuldades o descampado entre a floresta e a paliçada, perdendo muitos bravos sob as flechas dos muras. Taobara estava ansioso pelo início do ataque no rio, com mundurucus e satarês, mas estes estavam atrasados na luta e ainda não formaram a outra frente de batalha, fortalecendo a defesa dos muras. Então Taobara mandou um aviso aos outros caciques, de retardar o assalto à cerca e a invasão da aldeia, e ficaram trocando flechas, muitas vezes devolvendo as mesmas lanças atiradas pelos adversários.
         A luta estagnou por um momento a ferocidade, mas o ímpeto dos aliados voltou a crescer quando gritos vindos das margens do grande rio foram ouvidos e percebeu-se uma correria nas defesas dos inimigos. O aviso chegou primeiro a Meyki e este mandou passar logo a informação a Taobara: os mundurucus e os saterês estavam invadindo as margens do grande rio Amarelo e pressionando os muras por todos os lados. A grande batalha ia ter início e, dela, somente os mais valorosos sairiam com vida.
         Taobara mandou outra linha de guerreiros avançar até a paliçada e os bravos seguiram adiante, enfrentando agora menos resistência por parte dos defensores. Os guanavenas foram rastejando e todos agora atingiram o objetivo, sem o perigo das flechas muras. O cacique ordenou que outro grupo avançasse, e depois mais outro, até chegar a vez de Pikiwaha, Aiauara e Monawa assumirem posição no ataque.
         O cacique sentiu a respiração arfante dos jovens guerreiros e lembrou rápido do filho pequeno, brincando nas areias da praia, nadando no Canaçari e correndo para abraçá-lo. No entanto, sua posição de chefe se desfez desses pensamentos e mandou Monawa, o bravo caboquena sob seu comando direto, assumir a liderança do grupo e deu a ordem de avançar.
         Por um instante o cacique esqueceu a responsabilidade da guerra e observou o grupo correndo até chegar na paliçada. Viu Pikiwaha se esgueirando entre as árvores, seguido por seu primo Aiauara. Viu os dois jovens desprotegidos na floresta entrarem em campo aberto, e ambos se jogaram no chão, rastejando para evitar a picada mortal das flechas. Taobara teve um momento de pânico ao ver os muras aparecerem no alto da cerca, apontando seus arcos contra os atacantes, num ângulo capaz de atingir os bravos guanavenas no chão.
         - Atirem contra o alto da paliçada, ordenou Taobara à linha de flecheiros na retaguarda guanavena.
         Uma saraivada de setas foi lançada contra os muras, atingindo alguns no alto da cerca e diminuindo assim o ímpeto da defesa adversária, que tinha de atirar do próprio chão contra os inimigos rastejantes. O cacique ficou aliviado quando os bravos conseguiram a proteção da cerca, mas agora estavam em iminente perigo porque os muras poderiam sair para a luta direta. O maioral ordenou e mais guerreiros avançaram contra as fortificações. O assalto contra a paliçada seria imediatamente, com luta direta e na força bruta, dentro da inexpugnável Itacoatiara.
         Taobara enviou emissários com ordens aos outros caciques, esperando apenas suas palavras serem transmitidas, e obedecidas, e correu com a tropa inteira contra as defesas adversárias. Deixou na retaguarda uma linha de flecheiros dando proteção, enquanto avançavam até a paliçada, com as bordunas erguidas em sinal de fúria e gritos medonhos de calar a defesa dos inimigos.
         Mas os muras não se intimidaram e mesmos cercados e sob ataque cerrado esperaram os inimigos romperem suas linhas e então se mostraram por completos, com as caras pintadas de vermelho e negro, as cores da guerra, e eram muitos, agrupados em diversas frentes, prontos para empreender a defesa de sua aldeia invicta, em cujo solo jamais o inimigo pisara com objetivo de conquista. Esperaram com paciência o cerca se fechar contra eles e quando viram os inimigos avançando, saltaram de suas defesas, com gritos ferozes e uma determinação de pôr à prova a vontade dos aliados em empreender a luta.
         Os bravos aliados foram ao encontro dos muras, ostentando no ar suas armas até chegarem a uma distância da qual não mais poderiam recuar, impulsionados por outra leva de guerreiros avançando na retaguarda, forçando a corrente humana à batalha. Os primeiros confrontos se deram com lanças e cada grupo atingiu o inimigo com igual ímpeto, espetando os que não conseguiam se desvencilhar da morte. Mas em pouco tempo as lanças se tornaram inúteis, tal era a multidão compacta se engalfinhando até mesmo com as mãos.
         A partir desse ponto, todo o comando perdeu sentido e ninguém mais cumpria ordens no campo de batalha, com os bravos guiados apenas pelo instinto de matar e empenhados em eliminar o inimigo sem perder a própria vida. Taobara gritava aos seus homens, mas não era mais ouvido. O eco de seus comandos retornava até ele, deixando-o exaltado por tantas ordens descumpridas, até que a vontade de lutar suplantou sua razão e a ele se atirou com ódio contra os inimigos, vendo em sua frente os muras a serem derrubados pela força de sua borduna.
         Pikiwaha e Aiauara lutavam ao seu lado e a empolgação do cacique contagiou o espírito dos jovens guerreiros. Monawa também abandonou seu receio cauteloso, esquecendo por um momento os aconchegos de Tawacã e a felicidade de Waiãpi e se entregou ao fragor da luta, com uma coragem intrépida. Chegou a salvar seu cunhado de um golpe mortal quando um guerreiro mura levantou a borduna e ia atingir a cabeça de Aiauara, que se embatia com outro inimigo, golpeando-o mortalmente as costas do atacante e impedindo o mesmo de desferir seu ódio contra o irmão de Tawacã.
         Aiauara ouviu o estalido do baque e sentiu o corpo do mura tombando atrás de si, num esgar de morte súbita. Isso o fez recuar da luta contra o adversário a frente e pode contemplar o desfecho da cena, com a borduna de Monawa ainda guardando a posição de ataque contra o inimigo morto. O guanavena compreendeu que seu cunhado salvara-lhe a vida, e olhou agradecido a Monawa e se voltou com fúria contra o adversário, na certeza de que sua retaguarda estava protegida pelo bravo caboquena.
         Pikiwaha estava dominado pela força do grande cacique guanavena, investindo com coragem contra o bloco cerrado de muras, lavado no sangue e no suor que respingava de seu pai a cada golpe certeiro da clava do maioral, que neste momento comandava mais pelo exemplo do que com palavras. O filho de Taobara mostrava determinação ao se deixar ver por todos que o sangue do pai corria em sua veia e acirrava a luta toda vez que a borduna atingia o inimigo, mesmo que apenas servisse para afastá-lo, mas sentiu a sabor da morte quando um mura entrou em seu raio de ação e a força da arma foi lançada contra ele.
         Num primeiro momento, o adversário conseguiu se desvencilhar e tentou o contragolpe, mas com agilidade felina Pikiwaha se pôs a salvo do ataque, desviando-se da borduna inimiga e, ato contínuo, erguendo sua clava em precisão assassina. O bravo guanavena ameaçou com o golpe pelo alto, mas um rodopio em seu corpo desnorteou a defesa do adversário e o ataque saiu pelos flancos, ainda na altura de atingir sua cabeça com tanta precisão que o jogou no solo, enquanto o sangue inimigo espalhado ao vento atingiu com abundância o peito de Pikiwaha, respingando até mais além em seu primo e em seu pai. O filho do maioral guanavena se inebriou com o sangue adversário em seu corpo. Passou a mão em seu rosto encoberto pela morte e bradou aos seus companheiros.
         - Vamos valentes guanavenas. Ao ataque contra os muras infames.
         A exortação de Pikiwaha levantou o moral dos demais guerreiros e seu pai viu neste gesto um ato de valentia tal, a ponto de o filho garantir neste momento o direito de herdar a liderança de seu povo, mas ao cacique também não escapou o pressentimento de o brado do jovem ter sido uma primeira tentativa de usurpação, e a dualidade de suas emoções o colocou novamente no posto de comando.
         Taobara recuou da linha de frente para melhor compreender o instante da guerra, observando os índios indo ao encontro do inimigo que usava a tática de se fechar em círculo e enfrentar o adversário no menor espaço. Procurou seu filho e Aiauara na confusão da luta e os encontrou lado a lado, brigando com coragem. Chamou-os para próximo de si, porque entendia que a guerra seria vencida com inteligência e não com desprendimento de valentes.
         O maioral de todas as tribos do lago ordenou seus comandados conterem o ânimo da luta e investirem contra os muras com menor ferocidade, posto que o inimigo se agrupara e os ataques não estavam resultando em vantagem aos aliados. Deixou seus bravos fustigando os adversários e mandou seu filho procurar Jauaraçu, enquanto Aiauara foi em busca de Meyki. Logo os caciques estavam reunidos e, juntos, se dirigiram às margens do grande rio Amarelo, na esperança de conjecturarem com os chefes mundurucu e saterê, que combatiam os muras ainda nas barrancas.
         Encontraram Arawetê ainda montado em sua canoa, no meio do rio, comandando seus bravos no cerco à fortaleza dos muras, no alto do barranco. Paraketejê e os bravos saterês entraram por um jauarizal e subiam o morro, mas eram detidos não por ferozes guerreiros, e sim pelo intricado cipoal e galhos, além de formigas vorazes, que não respeitavam as tinturas e nem as essências repelentes usadas justamente para se livrarem dos insetos.
         Taobara mandou recados aos aliados, pedindo que evitassem fechar o cerco sobre os muras, porque eles eram em bom número e estavam esperando a oportunidade de se lançarem contra seus atacantes, numa decisão de tudo ou nada, apenas confiando em sua capacidade de retaliação. O cacique guanavena conhecia está tática, já a havia usado quando fora cercado pelos muras, com resultados, senão de sucesso, porém menos trágico. Era preciso ter paciência, fustigar o inimigo em seu cercado, causar medo nos corações de guerreiros ferozes, que enquanto estivessem no controle da situação, resistiriam com tenacidade.
         Os caciques decidiram se reunir e traçar a nova estratégia de combate, mas de início ordenaram que a luta deixasse de ser a bordunas e passasse à troca de ofensas, com os guerreiros desferindo insultos, ao invés de golpes mortais, mostrando suas forças, correndo até quase a linha de combate e retornando rápido, porque as flechas de súbito rompiam o ar em busca de um alvo. A trégua momentânea serviu também para tirar do campo de batalha os feridos de ambos os lados, enquanto os mortos continuavam a sangrar no chão da aldeia dos muras.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Capítulo 16 - Tocaia dos Mortos


MEYKI REFEZ SEUS PLANOS E REVELOU A TAOBARA A ALIANÇA COM OS MUNDURUCUS, deixando ser vencido pela realidade. Todos os caboquenas reunidos não eram capazes de formar o contigente necessário para selar o acordo com os novos aliados. Os índios do Orowo não poderiam sozinhos abrir uma frente de guerra contra os muras por falta de guerreiros, ainda mais tendo de combater em território tão vasto. Era preciso reunir os antigos aliados, criar uma grande tropa com as três tribos e atacar o inimigo pelo grande rio Amarelo, na fronteira com o lago Canaçari, impedindo os muras de remeter reforços à boca do Mawé, por onde avançariam os guerreiros mundurucus e seus aliados saterês.
         Os planos foram relatados por Meyki a Taobara, que escutou muito atento, demonstrando surpresa a cada detalhe, embora soubesse de antemão sobre a aliança entre os caboquenas e uma grande nação inimiga dos muras, planejada por Meyki e executada pelo guerreiro Yepá. O cacique guanavena queria o comando das operações, mas o caboquena se mostrou irredutível às pretensões de Taobara, argumentando ter sido dele a iniciativa de buscar aliados poderosos na luta contra o inimigo comum.
         - Tu não podes enfrentar os muras sozinho e nem firmar aliança com os mundurucus devido teu pequeno grupo de bravos, disse Taobara a Meyki.
         - Mas fui eu quem buscou novas alianças para a guerra, enquanto tu e teus bravos ficaram acovardados neste território, contestou o cacique caboquena.
         - No entanto, somente comigo os bararurus participarão da luta, concluiu Taobara.
         Esta era uma verdade aceita, mas não assimilada, por Meyki. Ele sabia ser impossível levar Jauaraçu aos combates sem o aval e a influência de Taobara, mas não estava disposto a ceder o comando ao cacique adversário, mesmo tendo de enjeitar o apoio dos bararurus, que somente lutariam sob o comando do guanavena. Meyki ainda era um jovem maioral e tinha pouco destaque entre os bravos das três tribos aliadas, embora fosse muito respeitado entre sua gente, no meio dos quais era visto como o legítimo sucessor de seu tio Uataçara, o venerado cacique morto nos combates contra os muras.
         Taobara tentava convencer o cacique caboquena conclamando a memória de Uataçara, que sempre fora fiel aliado e compartilhava do desejo comum de todas as tribos da região do Canaçari, de expandir o território até o grande rio Amarelo, rico em alimento e em recursos. “Nossos povos sempre se uniram em busca desse sonho”, repetia o guanavena, buscando nas recordações de tantas batalhas a força capaz de dissuadir Meyki a enfrentar os muras comandando a tropa aliada.
         - Uma guerra exige grande experiência, disse Taobara a Meyki. Mas um dia chagará a tua vez de comandar tantos bravos e eu ficarei orgulhoso de ver-te capaz de tal glória, acrescentava o guanavena ao outro cacique, que fazia o possível de não concordar com seu opositor.
         Meyki insistia em tomar a frente da tropa porque era o elo de ligação com os mundurucus, mas este argumento foi posto abaixo quando Taobara disse conhecer os detalhes do acordo e na insistência de Araweté em ter um grande número de bravos na aliança, condição que o caboquena não podia oferecer. Taobara ofereceu a Meyki o segundo posto na hierarquia da guerra, destacando o jovem maioral e ajeitando as coisas para os dois lados: não usurpava a condição de líder do guanavena, nem diminuía a importância do caboquena diante de seus comandados.
         Depois de selar o acordo com Meyki, saindo vitorioso na argumentação, Taobara convocou o conselho dos anciãos e anunciou que um novo tempo de guerras estava por começar, desta vez com aliados poderosos e condições palpáveis de uma vitória sobre o inimigo de tantas lutas anteriores. Para convencer os conselheiros da justeza da guerra, o cacique acenou com a possibilidade de recuperação das filhas guanavenas entregues aos muras como compensação no último embate, acarretando assim grandes problemas à tribo, ao se desfazer muitos casamentos marcados e gerando desconforto entre as famílias que não puderam honrar seus compromissos matrimoniais.
         Desta vez o cacique não teve dificuldade de receber o consentimento dos anciãos, devido agora não ter a lhe fazer oposição a voz de Itaúna. Nahpy não se interessou em opor-se à luta, pois vislumbrou dessa forma a possibilidade de trazer Tawacã para sua companhia, não importando a ele o destino do esposo da filha. Ao final da reunião, o pajé chamou seu irmão Taobara a um canto da oca e lá pediu por seu filho Aiauara, agora um homem casado e com uma família para cuidar.
         - Ele vai lutar sempre ao meu lado, na companhia de meu filho Pikiwaha, prometeu o maioral a Nahpy.
         O pajé se deu por satisfeito e foi até junto de sua família contar as notícias de reunião, mas, como sempre ocorria, os boatos chegaram primeiro e Nahpy apenas confirmou o que as mulheres e crianças já sabiam. Aiauara se mostrou animado com a iminente partida para as batalhas, mas Matepi vislumbrou a má sorte de perder algum dos inúmeros pretendentes que queriam se casar com ela, enquanto Byrytyty se angustiava por não ser consagrado ainda um guerreiro e não poder partir junto com combatentes. Somente Xirminja ouviu com pesar as notícias do esposo, sabendo que sofrimentos viriam ao seu povo, derrotado ou sendo vencedor.
         Em pouco tempo, de todas as partes começaram a chegar os guerreiros na ilha Saracá, ponto de encontro em todas as batalhas neste mundo. Vindos do rio Sanabani, as tropas dos bararurus eram chefiadas pelo cacique Jauaraçu, enfeitado com vistosas penas tremulando ao alto da cabeça. Os bararurus entraram pelo lago Saracá e se apresentaram na praia em frente da aldeia dos guanavenas, enquanto Meyki e seus bravos chegaram pelo Canaçari, contornando as ilhas do Marupá, aproveitando-se de ventos favoráveis, que neste dia sopravam rio abaixo, em meio a tanta euforia que o fato nem foi considerado um mau agouro. Quando o cacique caboquena pisou na areia da ilha, exortou os comandados à luta.
         - O grande Paharamim esté conosco e até mandou ventos favoráveis para apressar nossa vitória, gritou Meyki aos caboquenas, num tom capaz de ser ouvido por guanavenas e bararurus, felicitando-se todos pelos bons augúrios lembrados pelo jovem maioral.
         Taobara foi recebê-los com felicidade na praia, fazendo grande reverência a Meyki e entregando-lhe ali mesmo o posto de segundo na hierarquia. O guanavena proferiu mais algumas palavras de agravo ao cacique caboquena, lembrando a descendência direta dele do grande Uataçara e fazendo crer a todos que o jovem maioral conquistara o posto de líder de seu povo por merecimento, assim como se cobriu de glória antes de estar no subcomando das tropas aliadas.
         Os outros guerreiros reconheceram a liderança de Meyki dando brados de viva e gritando o nome do maioral caboquena, que batia no peito em sinal de reverência, com um sorriso de vitória nos lábios e a expressão de quem ainda quer conquistar muito mais fama. Meyki foi até Taobara e lhe fez o juramento de segui-lo nas batalhas, lutando sob seu comando, enfrentando o inimigo comum e morrendo, se possível, pela glória das três tribos.
         Aguardando a ordem de partir, os guerreiros se mostravam ansiosos de entrar em combate, por isso todos os dias treinavam lutas entre si, testando suas forças e habilidades no manejo de arcos e flechas e também na borduna. Nahpy não parava um só instante preparando remédios para proteger os guerreiros na guerra, fazia defumação, lançava suas infusões sobre os corpos dos bravos e dava-lhes de beber os chás que deveriam fortalecer seus espíritos e atiçar-lhes a coragem. O pajé mandava seus ajudantes buscar mais raízes e folhas com as quais deveria fazer novos preparos e, quando a noite caía, contava aos guerreiros reunidos sob a claridade da fogueira as histórias de sua gente.
         Yepá e Monawa chegaram na ilha com outros guerreiros vindos das regiões mais acima do rio Orowo. Com eles vieram Tawacã e a pequena Waiãpi, que ficariam com seus parentes guanavenas durante o desenrolar das batalhas. Yepá apresentou a Nahpy algumas sementes de guaraná e disse tratar-se de uma fruta do território da Mundurucânia, que renovava as forças e deixava alerta aos mofinos. O pajé não conhecia como aquelas sementes poderiam revigorar aos guerreiros, mas mesmo assim as recebeu com interesse e de pronto se dispôs a preparar uma cabaça cheia com infusão daquelas sementes.
         - São sementes mágicas, que nos fazem sentir o esplendor de nossas forças, disse Tawacã ao pai, pegando um pilão e transformando em pó, ela mesma, os caroços oferecidos pelo cunhado.
         Nahpy se inteirou de seu preparo e foi também o primeiro a provar o suco quando a filha misturou à água o pó extraído do pilão. Ele saboreou seu frescor e mordeu os pedaços maiores das sementes, triturando no dente aquilo que a força do tacape não pode fazer. Depois distribuiu entre os guerreiros e todos ficaram excitados, alguns correndo pela praia, outros simulando brigas corporais de teste dos reflexos. Alguns estavam tão ansiosos pela guerra que remavam suas canoas até as margens opostas do lago, nas proximidades do grande rio Amarelo, na intenção de encontrar os muras e desafiá-los à luta.
         Enfim chegou a notícia da invasão dos mundurucus e dos saterês pela foz do Mawé, que tinham postos em fuga os muras moradores das proximidades desse rio. Os aliados se prepararam para interceptar tanto os esforços inimigos, quando descessem o rio, quanto os fugitivos que subiriam em direção ao interior do território dos muras. Eles ficaram entrincheirados nas ilhas, nas proximidades do furo que dá acesso do lago Canaçari ao grande rio Amarelo, dispostos a impedir a passagem do inimigo.
         Passaram-se alguns dias de espera na trincheira insular quando enfim as primeiras canoas com muras em fuga surgiram no horizonte, rio abaixo. Eram em sua maioria mulheres e crianças, protegidas por alguns guerreiros que buscavam se reagrupar e voltar mais fortes para combater os invasores da Mundurucânia. Mesmo assim os aliados atacaram com fúria repentina, surpreendendo os fugitivos em um cerco inescapável. Cercaram as canoas e atiravam suas flechas, forçando uma rendição dos muras, que aconteceu imediatamente devido à impossibilidade de resistência.
         Os bravos aliados fizeram a abordagem e prenderam os inimigos, depois separaram dentre os capturados mulheres e crianças dos homens, estes postos amarrados em uma canoa maior e levados às margens das ilhas, enquanto o outro grupo seguiu rumo à entrada do furo ligando o rio ao lago Canaçari. Eram os primeiros troféus de guerra e seriam encaminhados até a ilha Saracá, enquanto os homens foram sacrificados na solidão dos igapós das ilhas, como um sinal de que a guerra era para enfraquecer a superioridade numérica dos muras e expulsá-los das margens do grande rio Amarelo, onde habitavam apenas as tribos mais belicosas, capazes de defender o território ambicionado por outras nações menores.
         Esta primeira vitória sem luta deu ânimo aos aliados de se exporem ao inimigo, ainda mais que em poucos dias outras canoas surgiram, desta vez descendo o rio, e eram tantas o suficiente para formar uma linha de embarcações e ocupar todo o leito do grande rio. Era uma tropa enviada com objetivo de conter a invasão dos mundurucus, vinda da aldeia principal dos muras, Itacoatiara, e reforçada por bravos de outras aldeias menores, que se juntavam ao comboio ao longo do rio. A formação dos inimigos incitou os aliados à luta e eles logo deixaram as ilhas e se coloram prontos a interceptar os muras e impedir sua passagem em direção à foz do Mawé.
         Esta primeira batalha seria travada em canoas e as tropas inimigas remaram em direção de confronto, procurando contato e colocando-se em posição de atirar suas flechas. Quando estavam próximos e dentro do raio de ação das armas, as remadas diminuíram e as embarcações tomaram posição de combate. Primeiro foi uma saraivada de flechas atiradas em ambas as direções, buscando atingir o maior número de inimigos. Os muras receberam o primeiro golpe com a carga aliada caindo sobre eles como uma chuva da morte, então seu comandante percebeu que a luta com arcos lhes seria inadequada e partiu ao confronto corpo a corpo, mandando seus guerreiros remarem com todo ímpeto até as canoas ficaram tão próximas quanto à distância entre as bordunas.
         Foi uma decisão temerária. Os aliados também tomaram posição de batalha, porém deixando menos guerreiros remando e mais atirando suas flechas em direção à esquadra dos muras. Quando mais as tropas se aproximavam uma das outra, maior era a carga de flechas atirada contra as canoas e mais guerreiros tombaram nas águas barrentas, tingindo de sangue o grande rio Amarelo. Quando os adversários estavam tão próximos, os arcos foram deixados de lado e os guerreiros pegaram suas bordunas e partiran à luta final.
         Eram tantas as embarcações e tantos os gritos que a fauna enlouquecida das ilhas próximas se calou e apenas se ouvia o brandir das armas e os lamentos dos feridos. Os bravos pulavam das canoas para as dos adversários, matando e morrendo e os corpos eram atirados no rio, alguns ainda tentavam alcançar novamente as embarcações, mas eram atingidos com novos golpes e não retornavam mais a tona. A luta era rápida, com o conflito se resolvendo na base da força bruta, onde quem matasse mais estaria a salvo e poderia comemorar a vitória.
         Taobara incentivava seus guerreiros ordenando-os a não deixar os muras romperem a linha de defesa, assim mandou alguns bravos permanecerem remando enquanto outros travavam a luta, cercando os inimigos e atacando com fúria. Meyki estava no centro da batalha, empunhando sua borduna e brigando ao lado de seus homens, na mesma canoa onde se encontravam os irmãos Yepá e Monawa, enquanto o cacique bararuru atacava pela margem esquerda do rio, procurando causar o maior número de mortos em sua investida.
         Os muras logo descobriram a impossibilidade de romper a linha dos aliados e tentaram um recuo, mas as tropas comandadas por Taobara não queriam o fim da luta, ainda mais quando estavam em superioridade numérica e aplicando severas baixas ao inimigo. Os muras sentiram as dificuldades e empreenderam a fuga, mas precisavam remar contra a correnteza e seus flancos estavam desprotegidos, com os aliados em seus encalços, atirando flechas nos remadores e dizimando a força de locomoção das enormes canoas, que se mostravam boas para avançar rio abaixo, mas inadequadas no momento de escapar sob ataque cerrado.
         O sentimento dos aliados estava concentrado nas últimas batalhas contra os muras e por isso exacerbavam na vingança, com os bravos no maior esforço para derrotar os inimigos e assim purgar a humilhação anterior de terem entregado suas filhas, irmãs e prometidas aos oponentes. Uma vitória incontestável mostraria aos muras que seu tempo de domínio sobre as terras do grande rio Amarelo chegara ao fim, por isso Taobara não concedeu aos inimigos a indulgência da fuga, partindo em perseguição aos derrotados mesmo quando eles já se jogavam na água, tentando escapar a nado das armas de seus perseguidores.
         Os maiorais das tribos aliadas mandaram seus guerreiros investir contra os muras, matando-os até quando fosse preciso penetrar na mata e capturar aqueles que conseguiram nadar até as margens. Quanto mais sangue inimigo era derramado, mais o frenesi dos bravos se intensificava, com alguns caindo na água e buscando nos barrancos os adversários protegidos nas encostas. A perseguição se transferiu também ao alto das árvores, onde alguns índios se refugiaram e, mesmo lá, não encontraram clemência, sendo derrubados dos galhos, a flechadas, e uma vez no chão eram golpeados pelas bordunas dos inimigos.
         O alarido da guerra só cessou quando os muras estavam mortos e mesmo aqueles capturados ainda vivos eram executados sumariamente, fornecendo ainda mais sangue à comemoração da vitória dos aliados. Quando a noite caiu sob a selva, os vencedores dessa primeira batalha acenderam grandes fogueiras e dançaram em honra a Paharamim, agradecendo aos ancestrais que os encorajaram na luta, levando suas tribos a empreender uma vitória avassaladora sobre os muras.
         Os índios passaram a noite se vangloriando de seus feitos, contando diversas vezes como mataram os muras, valorizando os golpes para quando a história fosse contada nos outros dias resplandecesse de mais triunfos ainda. Até aqueles que se encontravam feridos com menos gravidade participavam da festa na qual o insulto ao inimigo morto era o auge da celebração. E o desejo de vingança era tão exacerbado que não bastava apenas a morte dos muras, mas o vilipêndio de seus cadáveres também e assim foram empilhados nas margens e espancados até a dilaceração dos membros. Outros tiveram as cabeças arrancadas e espetadas em varas e seus órgãos serviram para aumentar a alegria da festa, sendo atirados uns contar os outros, no auge da celabração.
         Os muras foram servidos grelhados, comidos com farinha em desgraça e humilhação completadas e também forneceram aos guerreiros vitoriosos a essência daquela gente, conhecida pela coragem incomensurável e a valentia assustadora, que garantiram a eles o território cobiçado do grande rio Amarelo.
         Na manhã seguinte, Taobara ordenou que os corpos dos bravos aliados tombados na batalha fossem levados até a ilha Saracá, juntamente com os feridos, para Nahpy proceder aos primeiros um funeral honroso e aos segundos, a bênção de seus remédios. Algumas canoas se dirigiram ao lago Canaçari, enquanto o restante da tropa manteve sua posição, sabendo que em breve os guerreiros muras estariam de volta, em combates mais renhidos.
         Taobara queria manter o moral de seus guerreiros em alta, pois tinha certeza de que uma vitória tão espetacular contra os muras, resultando em dizimação completa de sua tropa, logo mereceria retaliações, uma vez que os habitantes do grande rio Amarelo tinham a fama, sempre comprovada, de nunca deixar sem resposta um ataque no qual fossem vencidos. O maioral guanavena reuniu os outros caciques e traçou novas estratégias de luta, na certeza de em breve os combates seriam mais acirrados, quando os muras soubessem que os ataques aos seus territórios eram coordenados, tendo agora a dimensão exata dos inimigos e sabendo como proceder para expulsá-los do rio onde eram senhores.
         Os dias se passaram e os muras não voltaram, até os aliados avistarem se aproximando rio abaixo algumas canoas no horizonte e logo em seguida outras tantas a pontilhar de preto a imensidão amarela do rio. Mas não eram os inimigos tão aguardados e sim a tropa de assalto formada por mundurucus e saterês, subindo o rio sem encontrar oponentes a impedir-lhe a passagem. Traziam muitos prisioneiros capturados ao longo do rio, a maioria mulheres e crianças, e poucos guerreiros, vez que estes resistiam até a morte e os poucos capturados vivos eram amarrados e humilhados, como de praxe se devia fazer com aqueles que capitulam.
         Para surpresa de Taobara sua filha Mauri estava entre os prisioneiros trazidos pelos aliados. Ela morava em uma pequena aldeia dos muras nas proximidades da foz do rio Jacarandá, onde os guerreiros do grande rio Amarelo mantinham um posto avançado de proteção de seus territórios contra o avanço de tribos vindas do centro da floresta. O cacique guanavena a reconheceu de imediato entre as mulheres aprisionadas porque conservava ainda intacta a beleza de sua gente.
         O cacique soltou as cordas que mantinha a filha cativa e ela deixou cair lágrimas vastas em seu rosto, pedindo que as outras mulheres e crianças também fossem libertas. Taobara hesitou por um momento, mas atendeu ao pedido da filha que há muito tempo perdera a esperança de encontrar e quando a viu livre de seu destino também não pode conter as lágrimas em seu rosto.
         - Me perdoe, minha filha! Disse o cacique a Mauri, carregando naquele momento todo o peso de sua decisão de entregar as mulheres de sua tribo aos muras, e aplacar-lhes a sanha de vingança contra seu povo.
         - Eles mataram meu marido, respondeu Mauri ao pai, com o coração estraçalhado pelas mágoas de perder o homem que a fizera feliz, embora houvesse sido entregue a ele como um butim de guerra.
         Quando Taobara ainda estava sob o forte impacto do encontro com a filha fora chamado por Meyki para uma conversa com os caciques Araweté e Parakatejê, o maioral saterê, que venceram os muras e conquistaram-lhes vastos territórios. Taobara mandou sua filha e as outras mulheres e crianças serem levadas até a ilha Saracá, enquanto os guerreiros aprisionados deveriam ficar vigiados, porque o destino deles seria resolvido na reunião dos maiorais.
         Quando o guanavena chegou ao local da reunião se dirigiu até onde estavam Araweté e Parakatejê e os dois ficaram impressionados com a vitalidade de Taobara, que trazia muitas cicatrizes de guerras, mas inspirava temor devido sua compleição física avantajada.
         - Este é Taobara, disse Meyki aos dois novos caciques aliados.
         - É o maioral dos guanavenas e líder das tribos da região do Canaçari, completou Jauaraçu, com suas palavras sendo traduzidas por Yepá, o intérprete na reunião dos caciques.
         Os líderes fizeram um balanço dos combates e concluíram que os muras não estavam vencidos por completos, visto sua gente se espalhar por muitas terras ao longo do grande rio Amarelo, chegando até à região onde se aliavam com os parintintins, guerreiros conhecidos pelos mundurucus e saterês, com os quais já haviam se embatido e sempre foram derrotados por eles.
         - Os muras podem rapidamente formar alianças com as tribos ao longo do grande rio, como os omáguas e parintintins, disse Parakatejê, o cacique saterê, temeroso de uma reviravolta na guerra e por conhecer o poder de retaliação dos inimigos.
         Os outros caciques concordaram com a afirmação do saterê, mas agora não era o momento de temer mais lutas, se o desafio fora lançado a um grande grupo tribal, deviam agora estar preparados para enfrentar batalhas ferozes, contra adversários tão aguerridos quanto eles. A nova aliança fortalecia a vontade de continuar os combates contra os muras até a destruição total deles e, para isso, era preciso um ataque à sua aldeia principal, e desta forma Itacoatiara foi colocada como o objetivo final dos aliados. Era preciso tomar a aldeia mura e destruir o símbolo de seu domínio, mostrando aos outros índios da região que um novo poder estava surgindo ao conquistar as terras férteis da várzea, numa aliança de guerreiros fortes e caciques corajosos, que jamais temeriam impor a vontade de suas nações a usufruir as riquezas abundantes das margens do grande rio Amarelo.
         A reunião dos caciques aliados terminou em júbilo e a nenhum deles pairava qualquer dúvida sobre a vitória iminente e definitiva contra os muras. Todas as oportunidades apontavam um desfecho favorável aos guerreiros vencedores da primeira batalha: eram cinco tribos dispostas a por fim ao domínio dos muras sobre a região, estavam inebriados pelos resultados de uma vitória fácil contra inimigos em fuga, já haviam conquistado parte considerável de seus territórios e reuniam tropas bastantes para vencer quantas guerras fossem preciso e manter as terras tomadas.
         Taobara ofereceu uma grande festa aos aliados, quando repartiram as mulheres e as crianças aprisionadas dos muras e praticaram o ritual da vitória, numa noite iluminada por imensas fogueiras nas quais assaram muitas tartarugas e peixes, também trouxeram as caças da região do Canaçari, ofereceram caxiri aos guerreiros e serviram retalhados os muras aprisionados.
         - Aproveitem esta grande festa, meus amigos, e preparem-se para mais farturas quando tivermos vencidos nossos inimigos, prometeu Taobara aos aliados quando já se encontrava entorpecido pelo efeito da bebida dos índios.