quarta-feira, 15 de junho de 2011

Capítulo 7 - Tocaia dos Mortos

          A NOTÍCIA DA MORTE DE ITAÚNA CHEGOU RAPIDAMENTE a todas as aldeias aliadas e delas vieram os guerreiros atendendo ao chamado de Taobara. A guerra agora era questão de honra, de defender os territórios e os lugares de onde as tribos tiravam o sustento. Uataçara chegou com muitas canoas repletas de bravos caboquenas e Jauaraçu veio com seus guerreiros bararurus. Se encontraram na ilha Saracá, reuniram suas forças e aguardaram pelas informações sobre os muras que foram buscar os três melhores rastreadores aliados. O cacique guanavena acolheu a todos em cabanas erguidas na pressa da guerra, enquanto grupos se aventuravam dia e noite em busca de comida para alimentar as tropas de bravos.
         Alguns dias depois chegaram Waripa, Pariti e Utami trazendo notícias sobre os muras. Eles chegaram ao grande rio Amarelo na mais escura das noites, remando a canoa com tanto cuidado que levaram quase a madrugada toda para cruzar as mesmas águas que em situações diferentes não levariam mais de algumas remadas. No entanto, com exagerada segurança eles seguiam mais a correnteza, mas mesmo assim conseguiram avançar pelas margens até o coração do território inimigo.
         Para não deixar pistas aos oponentes, eles cavaram um buraco na argila, enterraram ali a canoa e, sob a proteção ainda das trevas da madrugada, se esconderam nas matas até o dia inteiro amanhecer, mas só saíram do esconderijo após se certificarem de nenhuma gente estar por ali. Fizeram o reconhecimento do terreno na beira onde caminharam, escondidos na vegetação como pequenos animais, atentos a todos os ruídos. Eles temiam mais encontrar o inimigo que as feras da floresta. Depois se embrenharam na mata, seguindo a descida da correnteza do rio, mas não chegaram a percorrer grandes distâncias, porque o temor tornava seus passos precavidos e curtos, observando mais que andando.
       Dias se passaram nesta aflição, sem qualquer contato com a gente mura. No entanto, quanto mais rastejavam pelas trilhas da floresta, mais evidente se tornava a presença dos donos daquelas margens. Encontraram roçados deixados ao mato e aldeias abandonadas há tempos, nas quais a distribuição das cabanas dava a impressão de ter abrigado grande população. Também viram armadilhas armadas para a caça e deduziram que estavam em área de perambulação dos muras. Dias depois se depararam com uma derrubada recente, aguardando dias de verão pleno para arder no fogo. Próximo dela, eles encontraram ferramentas e utensílios pessoais guardados dentro de uma choça de palha. Havia indícios evidentes de gente vivendo ali, ou passando dias, porque uma fogueira ainda guardava o calor dos últimos fogos, nos quais se escondiam pequenas brasas.
         Rapidamente os batedores recuaram para dentro da mata, tratando de subir nas árvores mais altas, escolhidas conforme sua posição estratégica, para melhor observar a movimentação na floresta. Passaram o resto do dia no alto dos galhos e foi pelo lado onde se encontrava Waripa, já no fim da tarde, que um barulho estranho denunciou a aproximação de um grupo de guerreiros. Eram no total de três, entre eles um bem mais velho, que poderia ser o pai dos dois mais novos. Traziam caça nova e se dirigiram à choça onde estavam abrigados. O batedor guanavena deixou que passassem por ele e do alto do galho onde estava tentou comunicação com seus parceiros aliados.
         Ele palrou como um periquito, porque se tentasse o canto de um pássaro maior poderia atrair a atenção dos muras. Seus sons se perderam na algazarra da selva, então tentou o piar do anum, e logo recebeu de volta a resposta de Utami. O sinal era tão claro que o guanavena pode até localizar o aliado bararuru escondido entre as ramas de uma samaumeira, na direção da margem do rio. Waripa lhe fez um gesto e Utami confirmou também ter visto o grupo inimigo se deslocando na selva. O guanavena perguntou por Pariti, mas o outro não sabia.
         Quando a noite caiu, Waripa e Utami desceram das árvores e foram em busca de Pariti, que deveria estar nas proximidades, não sendo difícil encontrá-lo no matagal, mesmo agachado e silencioso, como se fosse apenas um toco na paisagem úmida da selva. Os três então se reuniram e conversaram sobre os próximos passos a seguir, enquanto espreitavam o grupo mura. Decidiram ficar nas proximidades, mas um seria encarregado de vigiar cada movimento dos inimigos, verificando o deslocamento e avisando aos demais toda as vezes quando se afastassem da choça.
         - Tu, Pariti, ficas aqui e não tiras os olhos dos muras, ordenou Waripa. Enquanto eu e Utami vamos percorrer a área, procurando descobrir se não há mais gentes deles nas redondezas.
         Assim que amanheceu, Waripa e Utami saíram para vasculhar cada canto da floresta, mas não encontraram rastros de outros muras, levando-os a concluir que aquele era um grupo isolado, talvez de caçadores se aventurando mais fundo na selva, procurando um lugar onde o restante da tribo um dia pudesse ocupar, por isso deram início ao roçado, preparando o terreno para uma futura aldeia.
         - Esta é uma prática dos muras, comentou Utami, que se dizia o maior conhecedor dessa gente, porque costumava caçar nesta margem do grande rio Amarelo. Eles se deslocam com freqüência, sempre construindo novas aldeias e assim se espalhando pelo território, afirmou o bararuru.
         Ao final da tarde se encontraram com Pariti e este relatou que os muras saíram para pescar e já havia retornado. Estavam agora aumentando o fogo para assar o pescado e não desconfiavam da presença de seus observadores. Pelas palavras do caboquena se confirmaram as suspeitas dos outros batedores, de que os guerreiros muras formavam um grupo de exploradores em busca de um local propício para o levantamento de nova aldeia, por isso tinham derrubado parte da floresta para um roçado e faziam expedição na mata para conhecer seu potencial de caça, assim como no rio, se havia peixe em abundância. Waripa propôs matar os três guerreiros muras quando eles estivessem dormindo, mas Utami e Pariti o fizeram ver ser esta uma atitude desastrosa.
         - Não é uma boa idéia, porque quando derem pela falta deles então os muras vão descobrir que outras gentes estão fazendo incursão em suas terras, advertiu Utami.
         Resolveram continuar descendo o rio na tentativa de encontrar as aldeias dos muras e assim o fizeram já na manhã seguinte, quando deixaram os três guerreiros inimigos em suas ocupações e foram em busca de novas descobertas. Para isso andaram por mais outros dias, se esgueirando na floresta, com a atenção redobrada para cada som ou algo que destoasse do ambiente, até começarem a perceber sinais de movimentação de pessoas pela mata, pois estava se tornando comum galhos de árvores quebrados e mesmo pegadas, tão visíveis como se o pé que a fizera ainda pisasse pelo caminho.
         Adiante, cheiros vieram até aos rastreadores, que acostumados à vida na selva e às suas dificuldades, logo sentiram o aroma de carne de capivara assando em fogo brando, deixando neles a lembrança de que já há muitos dias estavam comendo somente carne de macaco crua, porque nem acendiam fogo para não atrair a atenção de inimigos. Eles estavam próximos de uma aldeia mura e até os risos das crianças chegavam aos seus ouvidos, mas estavam com medo, pois sabiam que, se descobertos, a morte seria o destino final de todos.
         Waripa tomou a iniciativa de subir na árvore mais alta que encontrou, um angelim branco de tronco grosso, o qual a peconha ligeira do guanavena não encontrou resistência na escalada. Ao atingir a copa, ele vislumbrou uma grande aldeia, com muitas cabanas e fortes guerreiros a protegê-la, quase duas vezes o tamanho da taba de sua gente. Viu também a oca principal gigantesca, capaz de abrigar inúmeras famílias em seu interior. Nas proximidades das margens do grande rio Amarelo, Waripa identificou a paliçada protetora contra invasões. Não era muito alta, mas poderia se mostrar um obstáculo intransponível em caso de um ataque por água, ainda mais protegidas por torres elevadas, onde poderiam se abrigar mais de dez guerreiros, oferecendo posições privilegiadas para repelir os invasores, com chuva de flechas.
         A aldeia estava bem protegida na margem do rio, mas pela floresta os rastreadores identificaram algumas facilidades de ataque. Os muras sempre enfrentaram invasões vindas das águas. A floresta em volta da taba não merecia maior vigilância, embora algumas cabanas isoladas estivessem ali erguidas, como a linha extrema de defesa, onde não moravam famílias e sim macacos treinados para iniciar a gritaria ao menor sinal de aproximação de qualquer pessoa.
         Os três rastreadores ficaram ainda mais alguns dias observando a vida da aldeia e quando tiveram informações suficientes sobre os muras retornaram ao local onde desembarcaram, seguindo ao contrário da correnteza do rio, mas sem relaxar na atenção ao inimigo, tanto que quando já se encontravam a apenas um dia de caminhada de onde pretendiam chegar, perceberam três guerreiros muras se aproximando. Eles passaram sem notar a presença de estranhos e nem os olhos que os observavam com a precisão de felino.
         Retornaram à ilha Saracá e foram recebidos pelos maiorais das tribos aliadas, reunidos para escutar o relato dos rastreadores. Eles contaram tudo, acrescentando detalhes sobre as margens do rio Amarelo, sua grande oferta de caça e a fartura de peixes, pescados até nos barrancos. Falaram que viram piracemas fervilhando nas águas, com peixes saltando para dentro das canoas ou indo de encontro das margens até serem recolhidos pelos muras com as próprias mãos. Disseram que os inimigos estavam explorando uma área na intenção de construir nova aldeia, muito próxima das terras dos guanavenas, que poriam em risco a posse do Purema e do Jauara, pois bastavam essas gentes caminhar alguns passos e estariam na beira do lago Canaçari, de frente para o território sagrado das tribos aliadas. Relataram sobre a facilidade de um ataque pela retaguarda da aldeia, pois os muras defendiam apenas as margens do rio e apontaram a direção onde estava localizada a aldeia dos inimigos.
         - Basta seguirmos rio abaixo e em duas noites de navegação a favor da correnteza estaremos nas proximidades da aldeia, informou orgulhoso Waripa, recebendo a confirmação dos demais rastreadores.
         Não precisaram de maiores explicações. Os caciques rapidamente convocaram seus bravos e deram a ordem para a guerra. Que se preparassem, porque na manhã seguinte iniciariam a marcha até a aldeia dos muras.
         Quando a noite caiu, Nahpy reuniu os guerreiros e iniciou o ritual de proteção. Colocou todos sentados em volta da grande fogueira acessa na praia, dançou para os espíritos protegerem seus corpos contra os ferimentos de morte, baforando sobre eles a fumaça de seu cachimbo e os envolvendo na nuvem que serviria de escudo contra as lanças, as flechas e os porretes dos muras. Sobre o corpo de Aiauara, Nahpy lançou uma porção maior de fumo e solicitou dos ancestrais cuidado redobrado ao jovem guerreiro, seu filho, menino ansioso pela primeira batalha.
         Os guerreiros foram levados à dança, ritual para invocar coragem e força de Paharamim, necessárias quando a batalha se iniciasse. Os três caciques estavam reunidos na cabana de Taobara, junto com seus homens de maior confiança, traçando os planos do ataque. Depois de ouvirem pela última vez o relato dos rastreadores, acertaram os detalhes e então foram participar da festa. Até mesmo eles precisavam da proteção dos espíritos. Quando o ritual terminou, os guerreiros foram para suas redes dormir, alguns sonharam com conquistas e triunfos, outros atormeramram-se nas agonias da pré-batalha, mas todos foram levados para o mesmo sofrimento da proximidade da morte.
          De manhã, os guerreiros embarcaram nas muitas canoas, atulhadas de gentes e de armas, outras levavam os víveres para os dias de campanha e eram conduzidas com rapidez por remos velozes, em direção à Ponta Grossa. A tropa seguiu o paraná de Itapiranga, até chegar ao canal que desemboca no grande rio Amarelo. Eles partiram em tumultuada alegria, disfarçando o medo de que muitos tombariam sob as armas dos inimigos. Sentiriam a dor das lanças, a espetada das flechas e o baque mortal das bordunas. Conheciam o sofrimento da dor, mas estavam preparados para isso, afinal nasceram homens e, como tais, sabiam das obrigações de seus destinos.
         Na praia ficaram as mulheres e as crianças. Nahpy também estava no grupo que permaneceu na ilha. Junto com sua família, o pajé viu Aiauara pintado de vermelho e negro remando a canoa com destemor. Na mesma embarcação iam Pajuari e Pikiwaha, os três recém saídos do ritual de iniciação dos guerreiros. Portavam arcos e flechas atravessados sobre o peito, ostentando com orgulho os apanágios de homem com os quais participariam da primeira luta. Quando começaram a se distanciar da praia, os três olharam ao mesmo tempo para trás, como impulsionados por uma vontade irresistível de guardar na memória a beleza da ilha. Então se surpreenderam com o gesto de Tawacã, que ao lado da mãe, ergueu os braços e acenou em direção da canoa em que estavam.
        Remaram o dia todo, ajudados pela correnteza a favor e quando o sol começou a se deitar atrás dos altos morros, Taobara, à frente do comboio junto com os outros caciques, avistou a samaumeira perfilada na margem. Ele conhecia a árvore e sabia que estava posicionada na entrada do canal que levava ao grande rio Amarelo. Então se pôs de pé na embarcação e fez o sinal para as canoas se agruparem. Os bravos iriam acampar esta noite na praia e só na manhã seguinte seguiriam rumo à aldeia dos muras, mas com o cuidado de lá chegarem na escuridão da noite, para evitar serem vistos pelos inimigos.
         Os guerreiros obedeceram às ordens de Taobara e não acenderam fogueira para iluminar a noite, pois qualquer claridade poderia ser vista por olhos inimigos, delatando assim a presença dos aliados nas proximidades. Quando amanheceu, tomaram novamente o lugar nas embarcações e começaram a remar rumo ao grande rio Amarelo, mas por sugestão de Jauaraçu, acolhida pelos caciques, um grupo partiu na frente para sondar o caminho e manter informado o comboio sobre qualquer presença dos muras. Eles remaram até o começo da tarde seguidos apenas por imensos botos, que não deixavam de acompanhar os guerreiros.
         Nesta outra noite, os bravos chegaram às margens do grande rio Amarelo e se aproveitaram da escuridão sem lua para empreender a aproximação à aldeia inimiga. Esta operação se mostrou desastrosa devido à correnteza bravia que arrastava as canoas, forçando os remadores a empenhar grande força para manter unido o comboio. Mesmo assim conseguiram chegar próximo da aldeia mura, denunciada pelas luzes das fogueiras acessas na taba e iluminando até o céu, dando uma visão clara de que deveriam iniciar o ataque ao desembarcarem na praia.
         Os bravos foram saindo das canoas e se escondendo na mata, enquanto Waripe, Pariti e Utami indicavam as posições para melhor empreender o assalto à aldeia. Era ainda madrugada, mas mesmo assim os guerreiros enveredaram na selva para a batalha e o barulho provocado pelo deslocamento de tão numeroso exército despertou a atenção dos inimigos. Embora os muras tenham primeiro pensado se tratar de uma vara de porcos se aproximando da aldeia, aos poucos se deram conta da verdadeira ameaça. De imediato se prepararam para a guerra, buscando proteger o flanco de onde vinha a horda das tribos aliadas.
         Os muras correram a apanhar suas armas e formaram a primeira coluna de flecheiros para surpreender os atacantes quando estes ainda imaginavam realizar o assalto de surpresa, ilusão desfeita quando uma flecha certeira atravessou o peito do guerreiro aliado mais afoito, fazendo-o recuar alguns passos antes de cair lavado em sangue. Em seguida, outras flechas cortaram a madrugada, zumbindo no ar e caindo impiedosas sobre os bravos do grupo da frente, fazendo-os recuarem em busca de abrigo nas árvores. Logo os de trás receberam a ordem de deter o avanço, dada por Uataçara, comandante da linha de frente dos guerreiros caboquenas.
         Taobara seguia logo atrás, comandando os guerreiros guanavenas. Ele mandou seus bravos se espalharem na mata, procurando fazer o cerco à aldeia dos muras. O cacique chamou Waripa e o ordenou ir ao encontro de Jauaraçu comunicar que o ataque havia sido descoberto. Assim, o maioral bararuru deveria contornar o mais que pudesse a área de conflito para atacar os inimigos pela retaguarda, se aproximando da aldeia pelo outro lado. Waripa encontrou Jauaraçu ainda na praia onde haviam desembarcado e transmitiu o recado. O cacique bararuru chamou seus guerreiros e os mandou se embrenharem na mata para dar início ao combate.
         Na linha de frente, guanavenas e caboquenas avançavam com cuidado, rastejando para evitar as flechas dos muras, mas como estavam em maior número puderam seguir adiante, forçando os defensores a recuar. No entanto, os inimigos tinham outra técnica de luta e formavam colunas de flecheiros que se sucediam na frente enquanto a primeira recuava depois de despejar os dardos contra os invasores. Isto dificultava o avanço, mas não impedia os aliados de conquistar terreno e se aproximar cada vez mais da aldeia sitiada.
         Quando o dia clareou, os muras perderam a única vantagem para conter a invasão dos aliados: a escuridão. Por isso tiveram de colocar todo o contigente de guerreiros numa única frente, deixando a retaguarda sem a proteção devida. Por ela avançaram os bararurus e surpreenderam os muras que até o momento evitavam o combate corpo a corpo, como gostavam de lutar os invasores. Ao se sentirem cercados, os guerreiros do grande rio Amarelo se puseram em fuga, correndo em busca de proteção no interior de sua aldeia, mas incorreram no erro de buscar refúgio em campo aberto, aonde o maior número da tropa atacante iria se impor com facilidade.
         Os muras travaram uma batalha árdua para defender os arredores da aldeia e permitir às mulheres e às crianças abandonarem o local antes da queda. Enquanto os guerreiros despejavam flechas em direção aos oponentes, uma multidão embarcava em canoas e seguia para o meio do rio, onde estaria protegida do ataque de flechas quando os aliados chegassem nas margens. Os muras foram cedendo espaço cada vez mais rápido, até não poderam mais conter o assalto final e então iniciaram a retirada, se debandando, correndo com todas as forças para chegar nas canoas e escapar à captura de morte. Alguns conseguiram pular nas embarcações, outros as alcançaram a nado, mas alguns não tiveram tempo de empreender a fuga e só restou a luta desesperada contra a horda invasora, partindo para o tudo ou nada, com a borduna na mão, mas sem nenhuma esperança de vitória. Os aliados não deixaram ninguém em pé e ainda foram até a margem e atiraram suas flechas em direção das canoas em fuga, mas não mais as podiam alcançar suas armas, apenas as palavras de insulto, proferidas de ambos os lados.
         Foi uma vitória fácil e surpreendente, com poucas baixas ou feridos, pois não aconteceu o conflito corpo a corpo e os muras evitaram ao máximo a guerra aberta, mantendo o inimigo à distância imposta por suas flechas. Mas os caciques aliados, de posse da aldeia mura, sabiam que a retaliação não tardaria a acontecer, pois os muras eram uma grande nação e tinham outras aldeias espalhadas pela margem do grande rio Amarelo, da qual eram os senhores incontestáveis. De imediato, os maiorais se reuniram na taba principal e decidiram ampliar a paliçada, para terem mais proteção não só na frente como em todos os flancos da aldeia. Rapidamente os guerreiros descansaram suas armas e foram buscar lenha para realizar a tarefa. Era preciso urgência na construção da cerca. Nenhum deles ali tinha esperança de que o próximo combate, muito mais acirrado, não iria acontecer em questão de dias.
         Enquanto durou a paz na aldeia conquistada, os aliados estocaram o máximo de alimento, por isso eram incessantes a pescarias nas margens e as caçadas aos animais das proximidades. Os caciques ordenaram às sentinelas para manterem-se alertas contra os muras a uma distância de até quatro gritos, enquanto outros afiavam pontas das lanças, com as quais esperavam conter o ataque em massa dos muras para reconquistar a aldeia perdida.
         Os conquistadores não tiveram de esperar por muito tempo a aguardada retaliação. Antes mesmo da lua passar do crescente à cheia as canoas dos muras começaram a singrar insolentes o rio, navegando correnteza acima e depois voltando rio abaixo, apenas para mostrar aos aliados a disposição de tomar de volta sua aldeia. Quando surpreenderam um grupo aliado pescando mais ao largo, efetuaram um ataque feroz e mataram todos os ocupantes da canoa, depois retalharam seus corpos e fizeram a embarcação atracar em frente da aldeia, espalhando o terror entre as três tribos.
         O ataque dos muras era eminente e ocorreu no dia em que centenas de canoas aportaram nas margens e delas desembarcou o exército dos guerreiros do rio Amarelo, ávido por vingar a invasão de suas terras. Eles cercaram a paliçada onde se protegiam os bravos aliados das terras do Canaçari, depois atearam fogo na cerca e quando só restavam brasas invadiram a aldeia com fúria imponente. Foram recebidos pelas pontas das lanças, enquanto flechas zuniam para todos os lados, até os adversários se encontrarem tão juntos que somente o porrete poderia ser usado na luta. Deixou de existir a estratégia e só a força prevaleceu no campo de batalha.
         Os caciques aliados dispuseram seus guerreiros na formação de um grande círculo, em cujo interior outros guerreiros esperavam a vez para substituir aqueles tombados na briga. Esta estratégia permitiu minimizar o cerco dos inimigos, que avançaram de todas as direções, mas convergiam todos ao encontro dos aliados, concentrados no centro da aldeia. Assim, apenas poucos muras conseguiam entrar em contato com os oponentes, diminuindo a força de seu ataque. A primeira fileira resistia com bravura, repelindo os inimigos e obrigando-os a recuar, embora os muras da retaguarda forçassem os primeiros contra a massa compacta formada por guanavenas, caboquenas e bararurus.
         A linha de frente dos aliados era formada por guerreiros fortes e experientes, ficando os mais jovens a espera do momento de entrar na luta em substituição aos feridos ou mortos. No início do combate o interior do círculo era reduzido, porque os guerreiros se agrupavam para impedir o inimigo de romper a frente aliada, mas no decorrer na luta, os muras diminuíram o ímpeto do ataque e o espaço foi se ampliando, levando os defensores, empolgados pelo fragor do combate, a avançar contra os atacantes, que recuavam, levando os aliados para o campo aberto, onde poderia prevalecer a superioridade numérica dos muras.
         Vendo seus bravos avançar contra os adversários, Taobara gritava ordens para manterem a posição original e era seguido por Uataçara e Jauaraçu, já convencidos da autoridade do cacique guanavena sobre seus comandados. Os aliados recuavam, forçando os muras a iniciativa do ataque. No centro do campo de batalha, mas sem participar até o momento da luta, os guerreiros mais novos aguardavam impacientes um lugar na linha de frente. Entre eles estavam Aiauara, Pajuari e Pikiwaha.
         A estratégia de Taobara fez a luta se prolongar por quase todo o dia, pois mesmo quando os guerreiros aliados tombavam pelas armas dos muras, outros prontamente ocupavam seus lugares, não deixando ao inimigo a oportunidade de furar a linha defensiva. Quando por fim o sol iniciou seu caminho em direção ao poente, os adversários renderam-se à extenuante realidade da luta e foram abrandando os golpes e a fúria, fazendo uma guerra mais com palavras e ameaças do que com armas. Os muras já não tinham forças para desfechar o ataque final e tampouco os aliados pretendiam prolongar o combate, partindo para a luta franca contra os oponentes, assim deixaram os atacantes recuarem sem perseguição.
         A luta terminou sem vencedores, embora aos aliados restou a certeza de ter repelido um ataque dos guerreiros mais temidos da região do grande rio Amarelo, cujo território se estendia, em alguns pontos do vale pelas duas margens. O cacique Taobara trazia no corpo ferimentos profundos, mas ainda com força suficiente para manter a liderança sobre os bravos. Uataçara foi encontrado morto, o peito atravessado por uma lança, o crânio partido e sem maxilar, arrancado pela força da borduna inimiga, e Jauaraçu também estava ferido, mas com esperança, embora o olho direito estivesse totalmente fechado.
         Os muras se foram navegando e deixaram aos aliados tempo de empreender a retirada da aldeia, com Taobara mandando recolher mortos e feridos e preparar o retorno à região do Canaçari. Embora tivessem repelido o primeiro ataque dos inimigos, um segundo cerco era eminente. Os aliados sabiam que os muras não atacaram com toda a força, mas da próxima vez, encontrariam resistência menos brava, depois de os aliados perderem o melhor de suas forças resistindo ao assalto desse dia.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Capítulo 6 - Tocaia dos Mortos

         Três guerreiros caboquena foram obrigados a procurar refúgio na ilha Saracá depois de serem surpreendidos por um temporal que se aproximou pelas bandas de onde o sol nasce, nos tempos das grandes chuvas. Os irmãos Yepá e Monawa, com o primo Benry, saíram da aldeia caboquena ainda nas primeiras luzes da manhã e foram descendo o rio Orowo, parando algumas vezes nos melhores pontos de pescaria ou nas praias onde costumavam fazer boa caça. Monawa e Benry remavam manso, com o remo quase acariciando a água, enquanto em pé, bem na ponta da proa, Yepá apontava seu arco na espreita de algum peixe aparecer no fundo. Se avistasse algum reflexo na água, então disparava a flecha, que quase nunca voltava sem a presa. Embora a época fosse de muito peixe, os animais de caça estavam escondidos, porque as chuvas tornavam o amanhecer bastante úmido.
         Quando o sol já tinha iniciado seu caminho para o poente, os três caboquenas alcançaram a foz do Orowo, no encontro com o lago Saracá. Eles avistaram a ilha onde viviam os guanavenas. Como Monawa não havia pensado em outra coisa a não ser em Tawacã, desde quando iniciara a viagem, a visão da aldeia onde vivia a jovem com quem sonhava foi um sentimento de angústia. O jovem guerreiro era o que tinha menor idade entre os companheiros, mas mesmo assim tentou convencê-los a parar na ilha para um descanso, conversar com os amigos e, só então, seguir viagem até a Ponta Grossa, uma travessia difícil em qualquer momento.
         - É muito arriscado atravessar o lago Saracá, saindo pela ilha, porque o encontro com as águas do Canaçari provoca muito banzeiro, comentou Benry, que conhecia os segredos dessas correntes. Junto com Yepá, já haviam ido muitas vezes ao Purema, mas agora se acompanhavam de Monawa, ainda inexperiente em guerras, caçadas e pescarias.
          Os três passaram pelo Estreito e seguiram na margem esquerda do Sanabani, navegando próximo da beira, sem correr risco de cruzar o lago para em seguida atravessá-lo de novo. Mas quando já contornavam a orla do lago, espremidos entre o barranco da Demanda e as águas do Saracá, avistaram a imensa tempestade surgindo no horizonte e, em pouco tempo, empurrada por ventos violentos, saiu dos confins do Canaçari e rapidamente encobriu todo o céu. Nuvens escuras voavam com rapidez e foi possível ver os banzeiros provocados pelos primeiros ventos já batendo forte contra a costa da Demanda. O temporal era um obstáculo intransponível entre os guerreiros e a Ponta Grossa, porque os vagalhões de águas jamais deixariam os caboquenas cruzarem o lago naquele momento. Os experientes guerreiros foram obrigados a aceitar o palpite de Monawa, optando por seguir em direção à ilha.
         De qualquer forma era uma travessia arriscada. Mesmo protegidos dos ventos vindos do Canaçari pelos barrancos da ilha, tiveram de dar muito impulso ao remo para vencer as correntes revoltas. Os caboquenas eram bons navegadores e tinham braços fortes, mas somente com muito esforço chegaram na praia da ilha, debaixo de chuva grossa, assustados com a ferocidade dos raios e o estrondo pavoroso dos trovões. Desembarcaram em terra e empurraram a canoa para o alto da praia, protegendo-a contra o açoite dos banzeiros.  Saíram correndo em direção à taba dos guanavenas, que não os aguardavam, mas mesmo assim os receberam sem surpresa.
         - Entrem rápido, bravos amigos! disse Nahpy, quando reconheceu os recém-chegados como membros da valorosa nação caboquena, seus aliados. O pajé ofereceu a hospitalidade habitual de sua gente, dando aos visitantes um lugar próximo à fogueira, ardendo no centro da oca, para eles se aquecerem, pois estavam encharcados da chuva torrencial. Os caboquenas agradeciam as gentilezas prometendo deixar alguns peixes ou caças quando retornassem, mas Monawa só se preocupava em encontrar os olhos de Tawacã, que deveria estar por ali, em qualquer lugar, deitada em alguma rede.
         A tempestade entrou pela noite e Nahpy convidou os caboquenas para dormir na oca dos visitantes. Eles aceitaram, como também receberam com gratidão a comida servida pelos anfitriões e ouviram com sincera atenção as histórias contadas pelo pajé dos guanavenas. Como sempre acontecia nestas ocasiões, reforçaram a fogueira com nova lenha, tomando o cuidado para as brasas substituírem as chamas, e Nahpy relatou com todo o espetacular efeito cênico as glórias dos seus ancestrais. Contou como as formigas ergueram a ilha Saracá e depois a entregaram aos primeiros guanavenas, que depois foram buscar seus parentes, trazendo as margens dos lagos, onde foram morar caboquenas e bararurus.
         Monawa não conseguia divisar Tawacã entre o emaranhado de redes armadas na oca, nas quais deitavam as mulheres, junto com as crianças, mas à jovem guanavena não passou despercebida à visita inesperada de três jovens guerreiros aliados, que pediram abrigo na aldeia para se proteger das chuvas enormes. Desde quando se iniciou o temporal, Nahpy recolhera a família para o lado onde dormiam, perto de uma fogueira numa extremidade da oca, mas se dirigiu ao centro da construção quando ofereceu um lugar aos convidados. Nesta mesma distribuição jantaram e ouviram os relatos do pajé. Depois os caboquenas foram se abrigar na cabana oferecida a eles por Nahpy e dormiram sono leve, como é aconselhável mesmo para visitantes em lar aliado, ouvindo a música acalentadora da chuva, que tocou implacável durante toda a madrugada.
         Ao amanhecer, o temporal tinha passado e o lago era um espelho refletindo as luzes da aurora, sem uma brisa sequer para perturbar a calidez de suas águas. Era um ótimo tempo para navegar da ilha em direção à Ponta Grossa, porque não havia banzeiro nem ventos soprando de frente. Os caboquenas então despertaram e foram se despedir dos anfitriões, encontrando Nahpy no pátio da aldeia, já dando as primeiras instruções às mulheres para assarem peixes e bolachas de mandioca e servirem alimentação farta aos visitantes.
         Tawacã e Aiauara estavam ao lado do pajé. O garoto agora era um guerreiro impaciente pela falta de guerras, mas a menina se mostrava em uma beleza a ponto de explodir. Monawa a olhou com o mesmo desejo com o qual sempre a viu. Enquanto para Yepá e Benry, mais velhos que o guerreiro apaixonado, a jovem guanavena não passava de uma criança, que precisaria ainda crescer muito para poder desposar. No entanto, para Tawacã, a figura de Yepá desenhou em seu espírito uma sensação estranha, que ela não soube compreender, mas adivinhou tratar-se de atração. Quando foi servida a comida, ela se encarregou de levar aos guerreiros as porções de frutas, uma hospitalidade guanavena, mas seu corpo sentiu pela primeira vez o raio louco do desejo quando seus olhos encontraram, de tão perto, os olhos de caçador de Yepá. Ambos se fitaram como se estivessem mirando uma fera a ser abatida.
         Depois de comerem, os caboquenas agradeceram a hospitalidade dos aliados, prometeram deixar na volta parte do que conseguissem pescar e caçar e foram em direção à praia, para colocar a canoa de volta na água. Eles arrumaram a carga a bordo e empurraram a embarcação para o leito do lago, que se encontrava estático pela falta de ventos. Foram caminhando até a canoa se desprender totalmente do fundo e poder navegar sem risco de encalhe, mas foi neste momento que Monawa sentiu a ferroada atroz rasgar seu calcanhar quando pisou no dorso lodoso de uma arraia, escondida no fundo do lago. Ele soltou o grito após sentir a picada, pois imediatamente seu rosto se contorceu em dores e não pode mais nem chorar. Estava entorpecido pela ação do veneno, causando uma dor tão intensa que poucos guerreiros conseguiam manter as tripas sob controle depois de sentir o ferrão da arraia penetrando na carne.
         Tiveram de socorrer Monawa e a viagem foi atrasada mais um tempo, porque os primos colocaram o ferido no colo e o levaram até a taba, onde se encontrava Nahpy.
         - Ajude meu irmão, grande pajé! suplicou Yepá, que conhecia de outra época o poder de cura do xamã dos guanavenas.
         Nahpy ordenou que pusessem o caboquena deitado na rede, dentro da taba onde realizava o ritual de cura. Monawa já começava a delirar com as primeiras febres e a dor lhe era tão intensa que seus olhos contemplavam o céu para não saltarem da cara, enquanto sua boca era um esgar de louco. Ele não tinha forças para gemer, apenas conseguia tremer a perna ferroada, babando saliva grossa e contorcendo o corpo em espasmos cada vez mais brutos. De imediato, Nahpy solicitou ajuda para dispor de uma mecha de pêlos pubianos, a qual o pajé enrolou em chumaço e pôs fogo. Depois o xamã recolheu a cinza gretada e passou na ferida de Monawa e este se aliviou das dores e o corpo desfaleceu reconfortado pela terapia certeira de Nahpy.
          - Agora ele vai ficar bom, disse o pajé aos primos, que olhavam incrédulos Nahpy manusear com tanta eficácia sua ciência.
          Os caboquenas nunca antes tinham visto a manifestação tão rápida de uma terapia, como a ministrada por Nahpy ao parente. Depois o ganavena limpou a ferida, aplicou emplastros com essências da selva, untou com óleos e seiva, acendeu seu cachimbo e baforou rolos de fumo sobre o doente, realizando as últimas preces aos espíritos curandeiros e despachou Yepá e Benry para a caça.
         - Não podem fazer mais nada por seu parente, disse-lhes Nahpy. Agora peguem sua canoa e vão pescar e caçar, que quando voltarem o guerreiro já estará restabelecido, ordenou o pajé dos guanavenas.
         Os primos foram confiantes e tranqüilos, deixando Monawa sob os cuidados do pajé, mas quando já estavam singrando com segurança as margens opostas do Saracá, Yepá não pode deixar de comentar com seu primo.
          - Nunca imaginei que pentelho fosse remédio, falou com sarcasmo.
          - Nem eu, confirmou Benry. E Ambos explodiram em risadas.
         Dias depois Monawa estava curado, mas a ferida ainda merecia cuidados que Tawacã ajudava o pai a dispensar, aplicando ervas e óleos. Para o caboquena não podia ser melhor o tratamento, porque deixara de sentir as dores terríveis e ainda tinha sempre por perto a jovem por quem estava cada vez mais decidido a desposar. Outros dias se passarem e a preocupação se transferiu para os dois primos que não retornaram de suas caçadas, obrigando Taobara mandar um dos seus bravos até a aldeia caboquena para buscar notícias dos dois, mas quando estes voltaram as notícias não foram de ânimo, porque o cacique Uataçara, também preocupado com a demora de seus guerreiros, já preparava uma expedição de busca para encontrar os caçadores perdidos.
         Foram dias de buscas infrutíferas nas matas, lagos e rios, e nenhum sinal dos primos. As três tribos aliadas se uniram na procura dos índios e só encontraram algumas pegadas numa praia formada nas margens oposta do paraná de Itapiranga, mas mesmo assim já estavam meio borradas pelas chuvas constantes daqueles dias. Umas foram feitas por pés pequenos, que desenhavam na areia marcas suaves, outras eram pisadas fortes, como se quisessem fugir, de desespero, afundando no chão sob o peso do medo.
         No fim de uma tarde de buscas encontraram a canoa abandonada e semi alagada numa enseada e, então, não restavam dúvidas de que Yepá e Benry foram seqüestrados por guerreiros inimigos.
          - Foram os muras, gritou convicto Taobara.
         O maioral guanavena encontrara o motivo que buscava para declarar guerra aos seus inimigos, principalmente quando o correto seria a participação de Uataçara, cujos comandados encontraram o fim nas mãos desses índios. Também era justo esperar o engajamento de Jauaraçu e dos guerreiros bararurus, porque os acordos firmados entre as três tribos determinavam a defesa de todos, quando qualquer um fosse atacado.
         - Se não reagirmos, em breve não poderemos mais pescar nem caçar nestes lagos e matas, afirmou Taobara.
         Os outros caciques concordaram e exortaram seus bravos para seguir as lideranças nas lutas que seriam travadas contra o inimigo mura. Era preciso preparar o ataque, para não deixar sem respostas esta agressão contra a terra sagrada dos aliados.
         - As margens direitas do grande rio foram dadas aos nossos ancestrais pelo grande Paharamim, por isso é nossa obrigação defendê-las com o nosso sangue, falou Uataçara, arrancando gritos de bravura de todos os guerreiros.
         Os bravos aliados seguiram em direção a ilha Saracá, morada dos guanavenas, para traçarem os planos de ataque. Foram remando as canoas que participaram das buscas, e a reboque, a embarcação dos guerreiros desaparecidos, como prova incontestável de seus destinos cruéis. Remaram no rumo da praia, em frente à grande taba, já com os gritos de desespero das mulheres, que adivinharam na canoa vazia o sinal de maus presságios. Na chegada, a confirmação só fez explodir os lamentos: não havia dúvidas, os jovens caboquenas, que passaram uma noite inteira gozando da hospitalidade dos guanavenas, estavam mortos.
         Monawa ainda se convalescia sob o cuidado de Nahpy e recebeu a notícia com dores mais lancinantes do que lhe provocara a ferroada da arraia. De pronto se colocou ao lado de seu maioral, Uataçara, disposto a vingar as mortes do irmão e do primo. Neste momento, o jovem caboquena esqueceu seus amores por Tawacã e só pensava que também poderia ter encontrado o mesmo fim, caso a fatalidade não o surpreendesse antes e o tivesse obrigado a se separar dos parentes e ficar na ilha para recuperar a saúde.
         Taobara e os outros maiorais aliados, juntamente com o conselho dos anciãos e Nahpy, se reuniram na oca das reuniões para decidir como seria feita a guerra contra os inimigos muras. Era preciso preparar as estratégias e a primeira seria colocar batedores para vigiar os passos dos adversários, conhecendo a localização de suas aldeias e seus costumes, visando um ataque fulminante, que não deixasse meios de defesa nem de resposta por parte dos muras.
         - Indico de minha parte o meu batedor mais experiente, Waripa, que vai encontrar as aldeias dos muras e nos passar as informações precisas, disse Taobara, apontando para seu aliado mais dedicado.
         Waripa era seu homem de confiança, capaz de realizar qualquer tarefa, desde que fosse ordenado pelo cacique, por isso se pôs de pé, esperando as determinações. Para ele não havia missão perigosa nem desonrada. Se fosse preciso dar sua vida para a glória de seu povo, estava pronto para o sacrifício. Taobara mandou ele sentar novamente, porque teria de ser ajudado por outros rastreadores a serem indicados pelos maiorais aliados. Uataçara recomendou o seu, um índio já de boa idade, mas respeitado na aldeia dos caboquenas, Pariti, e Jauaraçu mandou que se levantasse o guerreiro Utami, que faria parte do grupo de batedores. “Este bravo é capaz de seguir até as aves no céu”, enalteceu o cacique dos bararurus.
         - Isto é precipitação, bradou Itaúna, que se opunha a todas as guerras. Não temos certeza sequer de que os valorosos guerreiros caboquenas estão realmente mortos, e mais ainda se foram capturados pelos muras, que há bastante tempo não cruzam o grande rio Amarelo para caçar nas terras do Purema, concluiu o velho conselheiro.
         - Até quando vamos ter de esperar para termos certeza de que os muras estão entrando em nossos territórios? questionou Taobara, se dirigindo aos outros maiorais. Depois apontou seus olhos em direção ao velho Itaúna e o encarou com fúria. Será que vamos esperar os muras entrarem em nossa ilha, raptar as mulheres guanavenas para, aí sim, tomarmos uma atitude de homens?
         Itaúna conhecia o ímpeto dos jovens para as guerras, por isso não divergiu mais contra os argumentos de Taobara, mas pediu para dar um conselho aos presentes.
         - Se querem a guerra que a façam, mas serei sempre contrário a elas, sejam por motivos de vingança ou por vaidade pessoal, declarou o velho conselheiro. Portanto, peço permissão para me retirar do conselho, porque minha voz não agrada aos presentes aqui e meu coração sentirá as dores antecipadas pelas quais muitos jovens ainda irão passar.
         O ancião se levantou e saiu da cabana, deixando em Taobara um ar triunfante, que não era compartilhado com os demais caciques, pois as palavras de Itaúna acertaram os corações dos outros maiorais, plantando dúvidas sobre a justeza da guerra. O cacique guanavena compreendeu ser melhor encerrar a reunião, recomendando a todos voltarem às suas aldeias, para refletir melhor sobre os motivos da guerra. Deviam preparar suas gentes para os dias difíceis que se seguiriam, mas afirmando ser o sacrifício imprescindível. Vencer os muras era abrir às tribos aliadas novos e imensos territórios, uma licença para explorar as margens do grande rio Amarelo, conhecidas por sua abundância de caça e de recursos vegetais.
         No entanto, o grupo de batedores estava formado e Taobara convenceu aos outros caciques de que Pariti e Utami deveriam ficar na ilha e iniciar incursões nas terras dos muras. Mesmo que a guerra não fosse levada adiante, mesmo assim eles poderiam colher informações preciosas sobre o poder e a força dos inimigos, conhecer seus modos de vida, suas regiões de caça e os lugares mais apropriados para a pesca. Era precioso para os planos de Taobara, identificar a localização das aldeias e, o mais importante, saber suas fraquezas. Os caciques concordaram e deixaram seus batedores sob as ordens diretas de Taobara, desejando ao maioral guanavena sabedoria para dirigir os guerreiros no melhor proveito das tribos aliadas.
         Alguns dias se passaram desde quando Taobara incitara os caciques aliados à guerra. Durante este tempo não houve maiores tensões na aldeia guanavena, mas era consenso geral de que o conflito seria realizado a qualquer momento. Este sentimento era agravado ainda por serem bem recentes as lembranças dos jovens guerreiros caboquenas, que passaram sua última noite de tranqüilidade na paz da aldeia, comendo com sua gente, dividindo o calor da fogueira e ouvindo com atenção as histórias dos ancestrais contadas por Nahpy.
         Desgostoso com a decisão do cacique, Itaúna saiu para pescar, pois sua maneira de encontrar os melhores argumentos e os sábios conselhos para sua tribo era na solidão dos lagos, quando podia refletir sobre as coisas. O ancião juntou seu puçá, sua rede de enviras, alguns anzóis, o arco e as flechas e o arpão certeiro, colocou tudo em sua canoa e seguiu o rumo do Purema, onde a pescaria era farta, principalmente se realizadas pelas mãos experientes de Itaúna, conhecedor de todos os segredos e sobrevivente de muitos perigos. Remava sozinho, mas com determinação para alcançar rápido a Ponta Grossa, antes do vento da manhã tornar os banzeiros tão ferozes que navegar ao contrário deles era impossível.
         Taobara não deixou de observar o velho se afastar da aldeia e calculou seu rumo através das marcas deixadas na superfície do lago pelo cortar certeiro de sua canoa. Um momento depois Waripa estava na cabana do cacique esperando as ordens com a determinação de quem as cumpriria sem vacilar. Taobara se acercou do ouvido de seu homem de confiança e soprou as palavras dramáticas, e o batedor ouviu a determinação que jamais supunha ser possível de ser proferida. Ele entendeu cada palavra e em todas colocou sua lealdade como fiança de que o resultado seria o esperado. Então aguardou as sombras da noite camuflarem seus passos e embarcou em sua canoa, saindo da ilha sem nenhum olho o ver, rumando em busca dos rastros de Itaúna.
         O batedor remou toda a noite guiado por seu apurado sentido de localização até dobrar a Ponta Grossa, depois continuou navegando até cruzar o paraná de Itapiranga e chegar na entrada do Purena. Dentro do lago, Waripa se embrenhou pelo igapó, farejando os movimentos do ancião e atento a qualquer som que fosse estranho ao cantar dos pássaros noturnos ou ao zunir dos insetos. O remo de sua canoa apenas tocava nas águas, mas seu impulso era forte, arremessando a embarcação para frente, que se desviava com destreza das árvores submersas, sem um ruído denunciador da presença do batedor de Taobara.
         Logo depois Waripa concentrou sua atenção no cheiro forte de tabaco que a brisa de vez em quando anunciava no ar. Ele seguiu o rastro de fumo, a cada momento se tornando mais presente, até a claridade de uma baforada denunciar com precisão o local exato onde se encontrava Itaúna. O chefe do conselho dos anciãos estava sentado na proa de sua canoa, aguardando algum peixe fisgar a isca posta em lugar estratégico, sem perceber a outra canoa se aproximar sorrateira, escondida pelas trevas da noite sem lua e sem outro ruído que superasse a algazarra dos bichos da floresta.
         O velho não se deu conta do perigo. Tudo aconteceu com uma rapidez de raio quando Waripa pulou da canoa onde estava e embarcou na de Itaúna, pela popa, e com apenas dois passos precisos já estava com os braços enroscados no pescoço de sua vítima, com a faca em posição de degola, tentando imobilizar o corpo do ancião para este não reagir ao enforcamento inicial e tornar mais fácil o golpe mortal. Tentando se desvencilhar do ataque traiçoeiro, Itaúna retirou o caniço da água e tentou acertar na cabeça do agressor, mas as forças foram se esvaindo ante o poderoso abraço de sucuri de Waripa, até se render totalmente e oferecer o corpo ao sacrifício.
         Quando Itaúna não demonstrava mais nenhuma resistência, o guerreiro afrouxou o abraço, segurou os cabelos do velho, puxando a cabeça para trás e, então, encostou a lâmina na veia da garganta. Neste momento, o ancião recobrou os sentidos, mas só lhe restou tempo de proferir metade de sua frase.
         - Maldito és tu, assass...
         Um jorro de sangue interrompeu a frase de Itaúna, enquanto Waripa terminava seu serviço cortando por inteiro o pescoço da vítima. Em seguida jogou o corpo do velho nas águas do lago Purema, enquanto a cabeça ficou pendurada no galho de uma árvore, para testemunhar sobre o crime.
         Quando os guanavenas deram pela falta do sábio conselheiro, foram em expedição até o Purema procurar qual destino tivera Itaúna, que saíra para pescar e há dias não retornara à aldeia. Vários grupos se formaram e passaram a vasculhar os igapós do lago, mas logo identificaram a canoa do ancião encostada embaixo das árvores e, para desespero de todos, sua cabeça repousava pendurada nos galhos, sendo devorada lentamente por formigas carnívoras.
         Os guanavenas mergulharam nas águas do lago e resgataram o resto do corpo de Itaúna, levando-o para a aldeia, onde seria sepultado com todas as honras merecidas ao chefe do conselho dos anciãos. Foi uma comoção geral na tribo. Itaúna era muito respeitado, tanto por sua sabedoria quanto pela coragem sem limites que tivera quando cacique dos guanavenas, por isso o prantearam por dias e seus parentes prometeram vingança, embora o próprio Itaúna fosse contra atos intempestivos.
         Mais uma vez Taobara convocou seus bravos para proclamar guerra contra os muras e desta vez nenhuma voz ousou contestar-lhe as razões. O cacique prometia uma ação severa contra os inimigos, que deveriam pagar pelas injúrias cometidas contra as gentes das tribos aliadas e, mais ainda, pela crueldade como tiraram a vida de Itaúna, o mais sábio dos anciãos. Os guerreiros guanavenas se armaram e se colocaram diante de seu chefe, prontos para as ordens, mas Taobara mandou a notícia ser levada ao conhecimento dos outros caciques primeiro, para só então determinar o avanço contra os inimigos que estavam violando as sagradas terras do Canaçari.
         Nahpy depois pediu para ter uma conversa a sós com Taobara. Os irmãos, um chefe guerreiro e o outro detentor do conhecimento dos ancestrais, se reuniram na cabana do cacique e discutiram sobre as verdadeiras razões da guerra, e outra vez Taobara tentou convencer o pajé de ser isto assunto terminado, mas Nahpy não se deixou impressionar pelas forças das palavras do cacique, pedindo vingança como se realmente estivesse disposto a lutar devido a morte de Itaúna.
         - Vejo com tristeza meu irmão não querer que vingamos a morte do ancião mais respeitado de nossa aldeia, disse Taobara, olhando para Nahpy como se não acreditasse que a reação do pajé pudesse ser outra.
      - Itaúna era contra a guerra, comentou o pajé, segurando o cacique pelo braço para obrigá-lo a permanecer na cabana, de onde Taobara pretendia sair para encerrar a discussão.
          - Mas foram os muras que o mataram.
         - Não me julgues um tolo, irmão Taobara, porque a faca que cortou o pescoço do velho Itaúna não era mura, mas guanavena! sentenciou Nahpy, encarando com desprezo o cacique.

Capítulo 6 - Tocaia dos Mortos

     Três guerreiros caboquena foram obrigados a procurar refúgio na ilha Saracá depois de serem surpreendidos por um temporal que se aproximou pelas bandas de onde o sol nasce, nos tempos das grandes chuvas. Os irmãos Yepá e Monawa e o primo dos dois, Benry, saíram da aldeia caboquena ainda nas primeiras luzes da manhã e foram descendo o rio Orowo, parando algumas vezes nos melhores pontos de pescaria ou nas praias onde costumavam fazer boa caça. Monawa e Benry remavam manso, com o remo quase acariciando a água, enquanto em pé, bem na ponta da proa, Yepá apontava seu arco na espreita de algum peixe aparecer no fundo. Se avistasse algum reflexo na água, então disparava a flecha, que quase nunca voltava sem a presa. Embora a época fosse de muito peixe, os animais de caça estavam escondidos, porque as chuvas tornavam o amanhecer bastante úmido.
         Quando o sol já tinha iniciado seu caminho para o poente, os três caboquenas alcançaram a foz do Orowo, no encontro com o lago Saracá. Eles avistaram a ilha onde viviam os guanavenas. Como Monawa não havia pensado em outra coisa a não ser em Tawacã, desde quando iniciara a viagem, a visão da aldeia onde vivia a jovem com quem sonhava foi um sentimento de angústia. O jovem guerreiro era o que tinha menor idade entre os companheiros, mas mesmo assim tentou convencê-los a parar na ilha para um descanso, conversar com os amigos e, só então, seguir viagem até a Ponta Grossa, uma travessia difícil em qualquer momento.
         - É muito arriscado atravessar o lago Saracá, saindo pela ilha, porque o encontro com as águas do Canaçari provoca muito banzeiro, comentou Benry, que conhecia os segredos dessas correntes. Junto com Yepá, já haviam ido muitas vezes ao Purema, mas agora se acompanhavam de Monawa, ainda inexperiente em guerras, caçadas e pescarias.
          Os três passaram pelo Estreito e seguiram na margem esquerda do Sanabani, navegando próximo da beira, sem correr risco de cruzar o lago para em seguida atravessá-lo de novo. Mas quando já contornavam a orla do lago, espremidos entre o barranco da Demanda e as águas do Saracá, avistaram a imensa tempestade surgindo no horizonte e, em pouco tempo, empurrada por ventos violentos, saiu dos confins do Canaçari e rapidamente encobriu todo o céu. Nuvens escuras voavam com rapidez e foi possível ver os banzeiros provocados pelos primeiros ventos já batendo forte contra a costa da Demanda. O temporal era um obstáculo intransponível entre os guerreiros e a Ponta Grossa, porque os vagalhões de águas jamais deixariam os caboquenas cruzarem o lago naquele momento. Os experientes guerreiros foram obrigados a aceitar o palpite de Monawa, optando por seguir em direção à ilha.
         De qualquer forma era uma travessia arriscada. Mesmo protegidos dos ventos vindos do Canaçari pelos barrancos da ilha, tiveram de dar muito impulso ao remo para vencer as correntes revoltas. Os caboquenas eram bons navegadores e tinham braços fortes, mas somente com muito esforço chegaram na praia da ilha, debaixo de chuva grossa, assustados com a ferocidade dos raios e o estrondo pavoroso dos trovões. Desembarcaram em terra e empurraram a canoa para o alto da praia, protegendo-a contra o açoite dos banzeiros.  Saíram correndo em direção à taba dos guanavenas, que não os aguardavam, mas mesmo assim os receberam sem surpresa.
         - Entrem rápido, bravos amigos! disse Nahpy, quando reconheceu os recém-chegados como membros da valorosa nação caboquena, seus aliados. O pajé ofereceu a hospitalidade habitual de sua gente, dando aos visitantes um lugar próximo à fogueira, ardendo no centro da oca, para eles se aquecerem, pois estavam encharcados da chuva torrencial. Os caboquenas agradeciam as gentilezas prometendo deixar alguns peixes ou caças quando retornassem, mas Monawa só se preocupava em encontrar os olhos de Tawacã, que deveria estar por ali, em qualquer lugar, deitada em alguma rede.
         A tempestade entrou pela noite e Nahpy convidou os caboquenas para dormir na oca dos visitantes. Eles aceitaram, como também receberam com gratidão a comida servida pelos anfitriões e ouviram com sincera atenção as histórias contadas pelo pajé dos guanavenas. Como sempre acontecia nestas ocasiões, reforçaram a fogueira com nova lenha, tomando o cuidado para as brasas substituírem as chamas, e Nahpy relatou com todo o espetacular efeito cênico as glórias dos seus ancestrais. Contou como as formigas ergueram a ilha Saracá e depois a entregaram aos primeiros guanavenas, que depois foram buscar seus parentes, trazendo as margens dos lagos, onde foram morar caboquenas e bararurus.
         Monawa não conseguia divisar Tawacã entre o emaranhado de redes armadas na oca, nas quais deitavam as mulheres, junto com as crianças, mas à jovem guanavena não passou despercebida à visita inesperada de três jovens guerreiros aliados, que pediram abrigo na aldeia para se proteger das chuvas enormes. Desde quando se iniciou o temporal, Nahpy recolhera a família para o lado onde dormiam, perto de uma fogueira numa extremidade da oca, mas se dirigiu ao centro da construção quando ofereceu um lugar aos convidados. Nesta mesma distribuição jantaram e ouviram os relatos do pajé. Depois os caboquenas foram se abrigar na cabana oferecida a eles por Nahpy e dormiram sono leve, como é aconselhável mesmo para visitantes em lar aliado, ouvindo a música acalentadora da chuva, que tocou implacável durante toda a madrugada.
         Ao amanhecer, o temporal tinha passado e o lago era um espelho refletindo as luzes da aurora, sem uma brisa sequer para perturbar a calidez de suas águas. Era um ótimo tempo para navegar da ilha em direção à Ponta Grossa, porque não havia banzeiro nem ventos soprando de frente. Os caboquenas então despertaram e foram se despedir dos anfitriões, encontrando Nahpy no pátio da aldeia, já dando as primeiras instruções às mulheres para assarem peixes e bolachas de mandioca e servirem alimentação farta aos visitantes.
         Tawacã e Aiauara estavam ao lado do pajé. O garoto agora era um guerreiro impaciente pela falta de guerras, mas a menina se mostrava em uma beleza a ponto de explodir. Monawa a olhou com o mesmo desejo com o qual sempre a viu. Enquanto para Yepá e Benry, mais velhos que o guerreiro apaixonado, a jovem guanavena não passava de uma criança, que precisaria ainda crescer muito para poder desposar. No entanto, para Tawacã, a figura de Yepá desenhou em seu espírito uma sensação estranha, que ela não soube compreender, mas adivinhou tratar-se de atração. Quando foi servida a comida, ela se encarregou de levar aos guerreiros as porções de frutas, uma hospitalidade guanavena, mas seu corpo sentiu pela primeira vez o raio louco do desejo quando seus olhos encontraram, de tão perto, os olhos de caçador de Yepá. Ambos se fitaram como se estivessem mirando uma fera a ser abatida.
         Depois de comerem, os caboquenas agradeceram a hospitalidade dos aliados, prometeram deixar na volta parte do que conseguissem pescar e caçar e foram em direção à praia, para colocar a canoa de volta na água. Eles arrumaram a carga a bordo e empurraram a embarcação para o leito do lago, que se encontrava estático pela falta de ventos. Foram caminhando até a canoa se desprender totalmente do fundo e poder navegar sem risco de encalhe, mas foi neste momento que Monawa sentiu a ferroada atroz rasgar seu calcanhar quando pisou no dorso lodoso de uma arraia, escondida no fundo do lago. Ele soltou o grito após sentir a picada, pois imediatamente seu rosto se contorceu em dores e não pode mais nem chorar. Estava entorpecido pela ação do veneno, causando uma dor tão intensa que poucos guerreiros conseguiam manter as tripas sob controle depois de sentir o ferrão da arraia penetrando na carne.
         Tiveram de socorrer Monawa e a viagem foi atrasada mais um tempo, porque os primos colocaram o ferido no colo e o levaram até a taba, onde se encontrava Nahpy.
         - Ajude meu irmão, grande pajé! suplicou Yepá, que conhecia de outra época o poder de cura do xamã dos guanavenas.
         Nahpy ordenou que pusessem o caboquena deitado na rede, dentro da taba onde realizava o ritual de cura. Monawa já começava a delirar com as primeiras febres e a dor lhe era tão intensa que seus olhos contemplavam o céu para não saltarem da cara, enquanto sua boca era um esgar de louco. Ele não tinha forças para gemer, apenas conseguia tremer a perna ferroada, babando saliva grossa e contorcendo o corpo em espasmos cada vez mais brutos. De imediato, Nahpy solicitou ajuda para dispor de uma mecha de pêlos pubianos, a qual o pajé enrolou em chumaço e pôs fogo. Depois o xamã recolheu a cinza gretada e passou na ferida de Monawa e este se aliviou das dores e o corpo desfaleceu reconfortado pela terapia certeira de Nahpy.
          - Agora ele vai ficar bom, disse o pajé aos primos, que olhavam incrédulos Nahpy manusear com tanta eficácia sua ciência.
          Os caboquenas nunca antes tinham visto a manifestação tão rápida de uma terapia, como a ministrada por Nahpy ao parente. Depois o ganavena limpou a ferida, aplicou emplastros com essências da selva, untou com óleos e seiva, acendeu seu cachimbo e baforou rolos de fumo sobre o doente, realizando as últimas preces aos espíritos curandeiros e despachou Yepá e Benry para a caça.
         - Não podem fazer mais nada por seu parente, disse-lhes Nahpy. Agora peguem sua canoa e vão pescar e caçar, que quando voltarem o guerreiro já estará restabelecido, ordenou o pajé dos guanavenas.
         Os primos foram confiantes e tranqüilos, deixando Monawa sob os cuidados do pajé, mas quando já estavam singrando com segurança as margens opostas do Saracá, Yepá não pode deixar de comentar com seu primo.
          - Nunca imaginei que pentelho fosse remédio, falou com sarcasmo.
          - Nem eu, confirmou Benry. E Ambos explodiram em risadas.
         Dias depois Monawa estava curado, mas a ferida ainda merecia cuidados que Tawacã ajudava o pai a dispensar, aplicando ervas e óleos. Para o caboquena não podia ser melhor o tratamento, porque deixara de sentir as dores terríveis e ainda tinha sempre por perto a jovem por quem estava cada vez mais decidido a desposar. Outros dias se passarem e a preocupação se transferiu para os dois primos que não retornaram de suas caçadas, obrigando Taobara mandar um dos seus bravos até a aldeia caboquena para buscar notícias dos dois, mas quando estes voltaram as notícias não foram de ânimo, porque o cacique Uataçara, também preocupado com a demora de seus guerreiros, já preparava uma expedição de busca para encontrar os caçadores perdidos.
         Foram dias de buscas infrutíferas nas matas, lagos e rios, e nenhum sinal dos primos. As três tribos aliadas se uniram na procura dos índios e só encontraram algumas pegadas numa praia formada nas margens oposta do paraná de Itapiranga, mas mesmo assim já estavam meio borradas pelas chuvas constantes daqueles dias. Umas foram feitas por pés pequenos, que desenhavam na areia marcas suaves, outras eram pisadas fortes, como se quisessem fugir, de desespero, afundando no chão sob o peso do medo.
         No fim de uma tarde de buscas encontraram a canoa abandonada e semi alagada numa enseada e, então, não restavam dúvidas de que Yepá e Benry foram seqüestrados por guerreiros inimigos.
          - Foram os muras, gritou convicto Taobara.
         O maioral guanavena encontrara o motivo que buscava para declarar guerra aos seus inimigos, principalmente quando o correto seria a participação de Uataçara, cujos comandados encontraram o fim nas mãos desses índios. Também era justo esperar o engajamento de Jauaraçu e dos guerreiros bararurus, porque os acordos firmados entre as três tribos determinavam a defesa de todos, quando qualquer um fosse atacado.
         - Se não reagirmos, em breve não poderemos mais pescar nem caçar nestes lagos e matas, afirmou Taobara.
         Os outros caciques concordaram e exortaram seus bravos para seguir as lideranças nas lutas que seriam travadas contra o inimigo mura. Era preciso preparar o ataque, para não deixar sem respostas esta agressão contra a terra sagrada dos aliados.
         - As margens direitas do grande rio foram dadas aos nossos ancestrais pelo grande Paharamim, por isso é nossa obrigação defendê-las com o nosso sangue, falou Uataçara, arrancando gritos de bravura de todos os guerreiros.
         Os bravos aliados seguiram em direção a ilha Saracá, morada dos guanavenas, para traçarem os planos de ataque. Foram remando as canoas que participaram das buscas, e a reboque, a embarcação dos guerreiros desaparecidos, como prova incontestável de seus destinos cruéis. Remaram no rumo da praia, em frente à grande taba, já com os gritos de desespero das mulheres, que adivinharam na canoa vazia o sinal de maus presságios. Na chegada, a confirmação só fez explodir os lamentos: não havia dúvidas, os jovens caboquenas, que passaram uma noite inteira gozando da hospitalidade dos guanavenas, estavam mortos.
         Monawa ainda se convalescia sob o cuidado de Nahpy e recebeu a notícia com dores mais lancinantes do que lhe provocara a ferroada da arraia. De pronto se colocou ao lado de seu maioral, Uataçara, disposto a vingar as mortes do irmão e do primo. Neste momento, o jovem caboquena esqueceu seus amores por Tawacã e só pensava que também poderia ter encontrado o mesmo fim, caso a fatalidade não o surpreendesse antes e o tivesse obrigado a se separar dos parentes e ficar na ilha para recuperar a saúde.
         Taobara e os outros maiorais aliados, juntamente com o conselho dos anciãos e Nahpy, se reuniram na oca das reuniões para decidir como seria feita a guerra contra os inimigos muras. Era preciso preparar as estratégias e a primeira seria colocar batedores para vigiar os passos dos adversários, conhecendo a localização de suas aldeias e seus costumes, visando um ataque fulminante, que não deixasse meios de defesa nem de resposta por parte dos muras.
         - Indico de minha parte o meu batedor mais experiente, Waripa, que vai encontrar as aldeias dos muras e nos passar as informações precisas, disse Taobara, apontando para seu aliado mais dedicado.
         Waripa era seu homem de confiança, capaz de realizar qualquer tarefa, desde que fosse ordenado pelo cacique, por isso se pôs de pé, esperando as determinações. Para ele não havia missão perigosa nem desonrada. Se fosse preciso dar sua vida para a glória de seu povo, estava pronto para o sacrifício. Taobara mandou ele sentar novamente, porque teria de ser ajudado por outros rastreadores a serem indicados pelos maiorais aliados. Uataçara recomendou o seu, um índio já de boa idade, mas respeitado na aldeia dos caboquenas, Pariti, e Jauaraçu mandou que se levantasse o guerreiro Utami, que faria parte do grupo de batedores. “Este bravo é capaz de seguir até as aves no céu”, enalteceu o cacique dos bararurus.
         - Isto é precipitação, bradou Itaúna, que se opunha a todas as guerras. Não temos certeza sequer de que os valorosos guerreiros caboquenas estão realmente mortos, e mais ainda se foram capturados pelos muras, que há bastante tempo não cruzam o grande rio Amarelo para caçar nas terras do Purema, concluiu o velho conselheiro.
         - Até quando vamos ter de esperar para termos certeza de que os muras estão entrando em nossos territórios? questionou Taobara, se dirigindo aos outros maiorais. Depois apontou seus olhos em direção ao velho Itaúna e o encarou com fúria. Será que vamos esperar os muras entrarem em nossa ilha, raptar as mulheres guanavenas para, aí sim, tomarmos uma atitude de homens?
         Itaúna conhecia o ímpeto dos jovens para as guerras, por isso não divergiu mais contra os argumentos de Taobara, mas pediu para dar um conselho aos presentes.
         - Se querem a guerra que a façam, mas serei sempre contrário a elas, sejam por motivos de vingança ou por vaidade pessoal, declarou o velho conselheiro. Portanto, peço permissão para me retirar do conselho, porque minha voz não agrada aos presentes aqui e meu coração sentirá as dores antecipadas pelas quais muitos jovens ainda irão passar.
         O ancião se levantou e saiu da cabana, deixando em Taobara um ar triunfante, que não era compartilhado com os demais caciques, pois as palavras de Itaúna acertaram os corações dos outros maiorais, plantando dúvidas sobre a justeza da guerra. O cacique guanavena compreendeu ser melhor encerrar a reunião, recomendando a todos voltarem às suas aldeias, para refletir melhor sobre os motivos da guerra. Deviam preparar suas gentes para os dias difíceis que se seguiriam, mas afirmando ser o sacrifício imprescindível. Vencer os muras era abrir às tribos aliadas novos e imensos territórios, uma licença para explorar as margens do grande rio Amarelo, conhecidas por sua abundância de caça e de recursos vegetais.
         No entanto, o grupo de batedores estava formado e Taobara convenceu aos outros caciques de que Pariti e Utami deveriam ficar na ilha e iniciar incursões nas terras dos muras. Mesmo que a guerra não fosse levada adiante, mesmo assim eles poderiam colher informações preciosas sobre o poder e a força dos inimigos, conhecer seus modos de vida, suas regiões de caça e os lugares mais apropriados para a pesca. Era precioso para os planos de Taobara, identificar a localização das aldeias e, o mais importante, saber suas fraquezas. Os caciques concordaram e deixaram seus batedores sob as ordens diretas de Taobara, desejando ao maioral guanavena sabedoria para dirigir os guerreiros no melhor proveito das tribos aliadas.
         Alguns dias se passaram desde quando Taobara incitara os caciques aliados à guerra. Durante este tempo não houve maiores tensões na aldeia guanavena, mas era consenso geral de que o conflito seria realizado a qualquer momento. Este sentimento era agravado ainda por serem bem recentes as lembranças dos jovens guerreiros caboquenas, que passaram sua última noite de tranqüilidade na paz da aldeia, comendo com sua gente, dividindo o calor da fogueira e ouvindo com atenção as histórias dos ancestrais contadas por Nahpy.
         Desgostoso com a decisão do cacique, Itaúna saiu para pescar, pois sua maneira de encontrar os melhores argumentos e os sábios conselhos para sua tribo era na solidão dos lagos, quando podia refletir sobre as coisas. O ancião juntou seu puçá, sua rede de enviras, alguns anzóis, o arco e as flechas e o arpão certeiro, colocou tudo em sua canoa e seguiu o rumo do Purema, onde a pescaria era farta, principalmente se realizadas pelas mãos experientes de Itaúna, conhecedor de todos os segredos e sobrevivente de muitos perigos. Remava sozinho, mas com determinação para alcançar rápido a Ponta Grossa, antes do vento da manhã tornar os banzeiros tão ferozes que navegar ao contrário deles era impossível.
         Taobara não deixou de observar o velho se afastar da aldeia e calculou seu rumo através das marcas deixadas na superfície do lago pelo cortar certeiro de sua canoa. Um momento depois Waripa estava na cabana do cacique esperando as ordens com a determinação de quem as cumpriria sem vacilar. Taobara se acercou do ouvido de seu homem de confiança e soprou as palavras dramáticas, e o batedor ouviu a determinação que jamais supunha ser possível de ser proferida. Ele entendeu cada palavra e em todas colocou sua lealdade como fiança de que o resultado seria o esperado. Então aguardou as sombras da noite camuflarem seus passos e embarcou em sua canoa, saindo da ilha sem nenhum olho o ver, rumando em busca dos rastros de Itaúna.
         O batedor remou toda a noite guiado por seu apurado sentido de localização até dobrar a Ponta Grossa, depois continuou navegando até cruzar o paraná de Itapiranga e chegar na entrada do Purena. Dentro do lago, Waripa se embrenhou pelo igapó, farejando os movimentos do ancião e atento a qualquer som que fosse estranho ao cantar dos pássaros noturnos ou ao zunir dos insetos. O remo de sua canoa apenas tocava nas águas, mas seu impulso era forte, arremessando a embarcação para frente, que se desviava com destreza das árvores submersas, sem um ruído denunciador da presença do batedor de Taobara.
         Logo depois Waripa concentrou sua atenção no cheiro forte de tabaco que a brisa de vez em quando anunciava no ar. Ele seguiu o rastro de fumo, a cada momento se tornando mais presente, até a claridade de uma baforada denunciar com precisão o local exato onde se encontrava Itaúna. O chefe do conselho dos anciãos estava sentado na proa de sua canoa, aguardando algum peixe fisgar a isca posta em lugar estratégico, sem perceber a outra canoa se aproximar sorrateira, escondida pelas trevas da noite sem lua e sem outro ruído que superasse a algazarra dos bichos da floresta.
         O velho não se deu conta do perigo. Tudo aconteceu com uma rapidez de raio quando Waripa pulou da canoa onde estava e embarcou na de Itaúna, pela popa, e com apenas dois passos precisos já estava com os braços enroscados no pescoço de sua vítima, com a faca em posição de degola, tentando imobilizar o corpo do ancião para este não reagir ao enforcamento inicial e tornar mais fácil o golpe mortal. Tentando se desvencilhar do ataque traiçoeiro, Itaúna retirou o caniço da água e tentou acertar na cabeça do agressor, mas as forças foram se esvaindo ante o poderoso abraço de sucuri de Waripa, até se render totalmente e oferecer o corpo ao sacrifício.
         Quando Itaúna não demonstrava mais nenhuma resistência, o guerreiro afrouxou o abraço, segurou os cabelos do velho, puxando a cabeça para trás e, então, encostou a lâmina na veia da garganta. Neste momento, o ancião recobrou os sentidos, mas só lhe restou tempo de proferir metade de sua frase.
         - Maldito és tu, assass...
         Um jorro de sangue interrompeu a frase de Itaúna, enquanto Waripa terminava seu serviço cortando por inteiro o pescoço da vítima. Em seguida jogou o corpo do velho nas águas do lago Purema, enquanto a cabeça ficou pendurada no galho de uma árvore, para testemunhar sobre o crime.
         Quando os guanavenas deram pela falta do sábio conselheiro, foram em expedição até o Purema procurar qual destino tivera Itaúna, que saíra para pescar e há dias não retornara à aldeia. Vários grupos se formaram e passaram a vasculhar os igapós do lago, mas logo identificaram a canoa do ancião encostada embaixo das árvores e, para desespero de todos, sua cabeça repousava pendurada nos galhos, sendo devorada lentamente por formigas carnívoras.
         Os guanavenas mergulharam nas águas do lago e resgataram o resto do corpo de Itaúna, levando-o para a aldeia, onde seria sepultado com todas as honras merecidas ao chefe do conselho dos anciãos. Foi uma comoção geral na tribo. Itaúna era muito respeitado, tanto por sua sabedoria quanto pela coragem sem limites que tivera quando cacique dos guanavenas, por isso o prantearam por dias e seus parentes prometeram vingança, embora o próprio Itaúna fosse contra atos intempestivos.
         Mais uma vez Taobara convocou seus bravos para proclamar guerra contra os muras e desta vez nenhuma voz ousou contestar-lhe as razões. O cacique prometia uma ação severa contra os inimigos, que deveriam pagar pelas injúrias cometidas contra as gentes das tribos aliadas e, mais ainda, pela crueldade como tiraram a vida de Itaúna, o mais sábio dos anciãos. Os guerreiros guanavenas se armaram e se colocaram diante de seu chefe, prontos para as ordens, mas Taobara mandou a notícia ser levada ao conhecimento dos outros caciques primeiro, para só então determinar o avanço contra os inimigos que estavam violando as sagradas terras do Canaçari.
         Nahpy depois pediu para ter uma conversa a sós com Taobara. Os irmãos, um chefe guerreiro e o outro detentor do conhecimento dos ancestrais, se reuniram na cabana do cacique e discutiram sobre as verdadeiras razões da guerra, e outra vez Taobara tentou convencer o pajé de ser isto assunto terminado, mas Nahpy não se deixou impressionar pelas forças das palavras do cacique, pedindo vingança como se realmente estivesse disposto a lutar devido a morte de Itaúna.
         - Vejo com tristeza meu irmão não querer que vingamos a morte do ancião mais respeitado de nossa aldeia, disse Taobara, olhando para Nahpy como se não acreditasse que a reação do pajé pudesse ser outra.
      - Itaúna era contra a guerra, comentou o pajé, segurando o cacique pelo braço para obrigá-lo a permanecer na cabana, de onde Taobara pretendia sair para encerrar a discussão.
          - Mas foram os muras que o mataram.
         - Não me julgues um tolo, irmão Taobara, porque a faca que cortou o pescoço do velho Itaúna não era mura, mas guanavena! sentenciou Nahpy, encarando com desprezo o cacique.