terça-feira, 22 de março de 2011

Tocaia dos Mortos - Capítulo 4

         O cacique Taobara saiu fortalecido depois da vitória contra os omáguas e seus planos de se tornar líder maior da região ganharam asas para voar ainda mais longe. Os guerreiros guanavenas aumentaram a confiança absoluta em seu chefe, acatando todas as decisões tomadas por ele, que assim seguia impondo sua vontade ao conselho dos anciãos. O cacique tornara-se soberbo por causa da vitória e perigosamente seguro para lançar a proposta de declarar guerra contra os muras, tribo que habitava também o grande rio Amarelo e era conhecida pela valentia e bravura de seus guerreiros.
         - Nosso povo é de paz, contestou o velho Itaúna, antigo maioral dos guanavenas e maior responsável pela aliança com os caboquenas e bararurus, resultando em tempos de paz na região do lago Canaçari.
         - Esse tempo de paz trouxe prosperidade à nossa tribo, concordou Taobara, por isso agora precisamos ampliar nosso território e assim garantir terras para nosso povo caçar, pescar e plantar.
         Taobara defendia a guerra contra os muras para os guanavenas, já senhores do lago Canaçari, poderem também pescar no grande rio Amarelo, outra fonte com abundância de alimentos e em cujas várzeas a mandioca crescia farta. Mas Itaúna conhecia o sofrimento que as guerras causavam às tribos, porque também já fora um guerreiro valente e disposto a lutar todos os combates; vira com os próprios olhos muito sangue ser derramado por capricho de chefes ambiciosos e trazia no corpo as marcas dessas batalhas.
         - A maior honra de um grande chefe é conduzir seu povo com sabedoria, afirmou Itaúna, com a voz pausada de quem está acostumado a dar conselho. Foi a trégua com nossos amigos que nos trouxe alegria e fartura. E se formos atrás de inimigos só acharemos sofrimento, concluiu o ancião.
         Mas Taobara estava resoluto, pois agora entendia que as honras das batalhas o fortaleceriam perante os outros caciques das tribos, como já demonstrara ao ser capaz de arquitetar os planos de ataque e guiar os guerreiros nas lutas que expulsaram os omáguas do lago Canaçari. O sonho do maioral dos guanavenas era conquistar um território no grande rio Amarelo e, depois, impor seu poder sobre todas as tribos da região, fazendo dos aliados, subordinados, e dos inimigos, escravos. Para isso precisava impor sua vontade ao conselho dos anciãos, a princípio contrário à guerra, pois os índios acostumaram-se às comodidades de muito tempo de paz, o que para o cacique resultara no amolecimento do espírito dos guerreiros, e estes precisavam de ação, de combates, para se cobrirem de honra perante os ancestrais.
         - A velhice trouxe sabedoria ao respeitável Itaúna, comentou Taobara, olhando diretamente para o ancião conselheiro. Mas creio também que teu espírito se amoleceu e estás desencorajado para grandes desafios.
         Itaúna se ofendeu com a injúria de ser tachado de covarde, então ergueu seu rosto marcado pela decrepitude, mas ainda capaz de expressar toda sua fúria, e se dirigiu ao cacique, não com raiva, porém com a altivez de quem se julga superior por ter vivido e sobrevivido a incontáveis confrontos com inimigos valorosos.
         - O guerreiro quando é jovem e de poucas batalhas luta somente com a ajuda da força, mas depois de muitas guerras, percebe que a força está na sabedoria, e sabedoria é conquistar a paz e mantê-la.
         Taobara quis argumentar mais uma vez, explicando a justeza de sua idéia, mas Nahpy tomou a palavra e se colocou favorável à paz, convencido pelas palavras do ancião. Outros conselheiros também apoiaram Itaúna, porque não viam necessidade de levar a tribo para uma guerra contra um inimigo poderoso, como eram os muras, e também porque estes não faziam incursão pelo território dos guanavenas e há muito viviam sem conflitos.
         Ao ser derrotado dentro do conselho dos anciãos, Taobara apelou para o fato de ter a confiança dos guerreiros e afirmou que estes o seguiriam em qualquer guerra a qual fossem chamados para ampliar o território dos guanavenas. Numa última tentativa de mudar a decisão do conselho, o cacique argumentou:
          - Este conselho não fala mais a linguagem do povo.
         - A paixão pela guerra te deixou prepotente, irmão Taobara, advertiu Nahpy, que tomou a defesa dos anciãos do conselho. Por isso, te julgas capaz de ser o portador das palavras da tribo, mas estas não são as palavras e nem a vontade dos guanavenas, concluiu o pajé, acreditando mesmo que seu irmão estava cego pela ganância.
         Taobara não pode mais argumentar e se retirou da cabana, mas seus planos não estavam vencidos em definitivo. Era questão de colocar os guerreiros contra os anciãos da tribo e levá-los à guerra. Era preciso combater as tribos inimigas, se apoderar de suas terras, vencer sua gente, conquistar seus territórios de caça, para a grandeza dos guanavenas e de seu chefe.
         Depois de sair da cabana do conselho, o grande cacique reuniu seus guerreiros mais próximos e os convocou para desafiar a vontade dos anciãos, argumentando que os planos de conquista dos guanavenas estavam sendo rejeitados, por covardia dos antigos maiorais e pelo ardor pacífico de Nahpy.
         - O conselheiro Itaúna está velho demais, por isso seu espírito se esqueceu das honras das batalhas, disse Taobara aos guerreiros. Mas nós, os bravos guanavenas, queremos a guerra para conquistar novos territórios e elevar a glória de nosso povo.
         Os guerreiros ergueram os braços em concordância ao cacique, prometendo segui-lo nas batalhas, seja contra os muras, os omáguas ou qualquer outra tribo inimiga dos guanavenas. Os bravos índios gostavam da guerra, pois desde quando eram pequenos se preparavam para participar delas, seja nas brincadeiras de crianças ou nos jogos de garotos. Também passavam por rituais de iniciação que os faziam ignorar a dor e não temer a morte, porque eram homens, os bravos dos guanavenas, capazes de derrotar os inimigos, conquistar suas terras, se apoderar de suas mulheres e filhas e espalhar a semente de sua tribo em outras gentes, para o sangue dos ancestrais se manter sempre em superioridade diante dos povos conquistados. Agora tinham um cacique corajoso e sagaz, pronto para se bater contra aqueles que impuseram aos guanavenas severas derrotas no passado, obrigando-os a viver em uma ilha, refugiados na imensidão do lago Canaçari, isolados no mundo e tendo como aliados duas tribos de guerreiros exangues, sem brios nas lutas e também vivendo nos esconderijos das cabeceiras dos rios, locais aonde nenhuma outra nação desejava conquistar.
         Para Taobara estava claro ser necessário minar a autoridade do conselho e também a ciência do pajé: os velhos por serem a consciência moral da tribo e Nahpy, representante da sabedoria milenar dos ancestrais, com poder sobrenatural sobre os espíritos dos mortos e a arte de espantar dos vivos os malefícios das doenças. Mas o cacique deveria agir com sabedoria, para não perder o respeito dos guerreiros e nem a admiração do povo, que o considerava um grande guia e protetor dos territórios, como havia provado quando da guerra para expulsar os omáguas.
         Seu primeiro lance nesta batalha foi contra Itaúna, por isso mandou Warypa, um de seus guerreiros mais próximo e exímio rastreador, seguir todos os passos do antigo cacique para saber onde este pescava, quando saía em sua canoa pelos labirintos de ilhas que escondiam os melhores lugares para apanhar o peixe farto. Warypa era como a própria sombra de Itaúna e assim descobriu que o velho seguia até a Ponta Grossa, onde o Canaçari se encontra com o Paraná de Itapiranga e se esvai no rumo do grande rio Amarelo; em seguida cruzava o canal e adentrava no lago Purema, cujas águas ofereciam os maiores pirarucus e tambaquis da região. Mas este era um local perigoso, por estar nas proximidades do grande rio Amarelo e por ser uma terra de ninguém, fronteira imprecisa dos territórios de guanavenas, de omáguas e de muras.
         Taobara também passou a contestar todos os argumentos de Nahpy quando os anciãos se reuniam para decidir os destinos da tribo, sendo o que mais se opôs à idéia do pajé quando este anunciou ao conselho que seu filho Aiauara, prometido para herdar os conhecimentos dos antepassados, receberia treinamento para a guerra, enquanto Tawacã iria ser iniciada nos conhecimentos milenares dos guanavenas.
         - Uma mulher herdando os poderes dos antepassados? questionou o cacique, assustado diante da proposta do pajé.
         - Uma mulher sim, Taobara, mas com grande sabedoria e capacidade para curar os males que afligem nossa gente, disse Nahpy.
         - Nunca em nossa tribo uma mulher alcançou tamanho poder, porque a glória das guerras e a distinção da sabedoria estão predestinadas aos homens, comentou Taobara, protestando com veemência à possibilidade de ver sua sobrinha, a primeira filha do pajé, influenciando nas decisões do conselho dos anciãos. Isto é uma afronta às nossas tradições e um desrespeito aos ancestrais, reclamou o cacique.
         Nahpy sabia que sua luta seria árdua para impor Tawacã como portadora do conhecimento da tribo, pois essa idéia não era aceita pelas lideranças do conselho dos anciãos, onde o pajé gozava de merecido prestígio, além de representar um rompimento nas tradições, tão louvadas e defendidas pelos guanavenas. Mas sua esperança em manter o conhecimento em sua família residia na única filha que manifestara vocação para o ofício, pois Aiauara só pensava em guerra e Byrytyty seguia nos mesmos encantos, sem nunca mostrar curiosidade pelos objetos de culto, embora seus pequenos olhos se mostrassem fascinados diante das armas, assim como fora o primogênito, desde a pequena idade. Já Matepi estava com seu destino traçado desde quando nascera: seria criada para desposar algum guerreiro e para ele geraria filhos.
         Passar o poder do conhecimento para outra pessoa sem sua ascendência era uma possibilidade que atormentava o grande pajé, porque quando recebeu de seu pai o maracá mágico, símbolo da sabedoria e objeto usado para invocar os espíritos, foi alertado que este instrumento de ligação com Paharamim estava em poder de sua família desde quando o mundo fora criado, sendo passado de pai para filho, e todos até este momento souberam honrar a tradição, gerando filhos sábios para absorver os conhecimentos dos ancestrais, traduzir a vontade dos espíritos e curar os males do povo.
         Nahpy não queria decepcionar seus antepassados. Jamais deixou de interpretar corretamente as vontades de Paharamim, guiando a tribo com bons conselhos e decifrando os inigmáticos sinais emanados dos espíritos, numa prova de que os guanavenas eram orientados com justeza e sabedoria. O pajé também ampliara bastante o conhecimento sobre as ervas da floresta ao descobrir novos medicamentos contra as doenças e assim conquistou o respeito e a admiração de todos, se mostrando sempre sereno em situações desesperadas e solidário nas necessidades. Sua fama de bom curador crescera tanto a ponto de extrapolar os limites da ilha Saracá, recebendo doentes de outras tribos, quando lá os pajés se mostravam incapazes de combater os males e só restava a esperança nas mãos do guanavena para restituir a saúde aos desenganados.
         Para Nahpy era fundamental um de seus filhos manter o maracá mágico em poder da família, nem que fosse necessário mudar as tradições, por isso insistiu para o conselho dos anciãos permitir a iniciação de Tawacã na arte da cura e nos altos conhecimentos dos ancestrais, fazendo todos lembrarem da ajuda prestada por sua filha quando chegaram os feridos da última guerra, sem ter nenhum deles morrido depois de receber os tratamentos oferecidos pelo pajé e sua filha.
         - Tawacã já mostrou ter virtude para assumir a missão de pajé, argumentou Nahpy. Todos aqui têm conhecimento de como ela se portou quando foi necessário curar nossos feridos de guerra e também os das tribos aliadas.
         Os anciãos entreolharam-se buscando em cada um algum sinal de aprovação para a proposta do pajé, mas Taobara foi fulminante.
         - Se tu não tens um filho homem para herdar teus conhecimentos, então passe o maracá sagrado a quem saiba honrá-lo, disse o maioral dos guanavenas, olhando para Nahpy com a mesma ira de quando o pajé pôs abaixo sua pretensão de declarar guerra aos muras.
         Mas o pajé havia conquistado muito respeito dentro do conselho dos anciãos para suas propostas serem jogadas de lado, sem qualquer possibilidade de uma análise mais serena, tanto que Itaúna tomou a palavra e procurou um meio termo para a discussão iniciada entre Nahpy e Taobara.
         - Isto é certo. Nossos antepassados nunca permitiram uma mulher assumir tamanha importância dentro da tribo, falou o velho conselheiro, mas também não podemos negar o valor de nossas companheiras na harmonia da tribo...
         Itaúna quis continuar sua explicação, mas Taobara o interpelou bruscamente, questionando sua autoridade, pois já havia se colocado contra a guerra e agora estava perto de aceitar uma mulher como pajé da tribo dos guanavenas.
         - Tome respeito pela minha velhice, disse Itaúna a Taobara, erguendo-se e ameaçando empunhar sua antiga lança contra o cacique da tribo. Eu te vi nascer. Eu te fiz chegar a ser guerreiro e, agora, vou te ensinar a respeitar as palavras de um ancião, continuou o chefe do conselho.
         O cacique sentiu a fúria estampada no rosto de Itaúna e seu sangue gelou diante da ameaça, porque sabia muito bem que poderia vencer todas as guerras, conquistar os territórios dos inimigos, trazer glória para a tribo dos guanavenas, mas jamais conseguiria fazer o povo perder a reverência diante dos anciãos, e Itaúna, o maior de todos e chefe do conselho, poderia destituí-lo do posto de cacique apenas com um gesto. Taobara empalideceu, mas manteve o controle sobre os nervos e chegou e levantar-se para olhar bem nos olhos do velho, ambos se encarando com cólera, mas não ousou dizer mais palavras e ouviu calado o que Itaúna ainda tinha para falar.
         - Nosso irmão Nahpy faz um pleito e por isso devemos discutir com atenção, disse o ancião, e tenho certeza que ele se curvará à decisão deste conselho, assim como Taobara também aceitará, sem restrição, aquilo decidido aqui.
         Itaúna voltou a sentar, encerrou a reunião e então pegou seu cachimbo e fumou um bom trago do tabaco preparado com as ervas mágicas, sem tirar os olhos de Taobara, mas este não ousou desafiar o olhar do chefe dos anciãos e saiu o mais rápido possível da cabana, desvencilhando-se do chamado de Nahpy, que ainda tentou convencê-lo com um gesto de amizade de que Tawacã saberia honrar a função de pajé, deixando satisfeitos Paharamim, os espíritos dos ancestrais e toda a tribo dos guanavenas.
         De manhã, alheia à discussão realizada sobre seu futuro, Tawacã foi à beira do lago acompanhada dos irmãos e outras crianças da mesma idade para o banho matinal. O sol ainda não se levantara da linha do horizonte e a água estava tépida e calma, como era comum o amanhecer nos tempos de longas praias, quando o verão trazia Paharamim em sua canoa vermelha, impulsionada pelas primeiras brisas, que logo espantava o frescor da madrugada recente. As crianças mergulhavam imitando os peixes, gritando de felicidade nas águas sagradas que foram os caminhos pelos quais os antepassados descobriram o mundo, enquanto esperavam o momento de deixar as brincadeiras na casa dos macacos, onde aprendiam os primeiros deveres, integrando-se à sociedade dos adultos, com meninos se transformando em guerreiros, caçadores e pescadores, e as meninas casando, tecendo as cestarias,e cuidando dos filhos e dos roçados.
         As mulheres observavam da praia as brincadeiras das crianças enquanto preparavam o peixe moqueado para a primeira refeição. Xirminja viu Byrytyty trepar no único pé de acapurana ainda dentro da água e do alto do galho mergulhou como uma flecha no lago. Outras crianças subiram na árvore e pularam também. Aiauara e os primos Pajuari e Pikiwaha procuravam chegar nos galhos mais altos, disputando para ver quem daria o mergulho mais profundo. O primogênito de Nahpy se balançou na rama, tomou impulso para cima e se atirou nas águas, sendo seguido pelos parentes. Os três boiaram no mesmo instante, mostrando nas mãos a areia capturada no fundo, sob o grito da criançada.
         Tawacã também subiu na árvore e outras meninas a seguiram, em seguida, para aumentar a balbúrdia, os meninos escalaram a acapuraneira imitando os gritos dos macacos, pulando nos galhos para derrubar as garotas, empurrando aquelas que eles alcançavam. Pajuari foi em direção ao galho onde Tawacã se encontrava e começou a balançar a rama na qual a jovem índia se sustentava, mas ela não caía, chegou mais perto e segurou no braço dela, fazendo um movimento para jogá-la na água. Tawacã conseguiu desvencilhar o corpo e o jovem perdeu o equilíbrio e foi ao encontro do lago.
         Todas as crianças riram de Pajuari quando ele voltou à tona e seu olhar de imediato procurou na árvore a imagem de Tawacã. Ela estava no mais alto galho, iluminada pela luz fantástica dos primeiros raios do sol que se anunciavam no horizonte. Seu corpo ganhou cores diversas, fazendo aumentar ainda mais o deslumbramento de Pajuari, mas seu coração sucumbiu mesmo foi quando ela se jogou da acapuraneira, soltando um grito de satisfação a repercutir em toda a floresta e desenhando no ar um arco-íris que se eternizou para sempre na mente do aprendiz de guerreiro.
         Foi apenas um instante, medido na altura do alto da árvore até a superfície do lago, mas Tawacã o fez com graça e ousadia, pois primeiro deu um salto para cima, elevando seu corpo que por um momento pairou no ar, como se flutuasse amparado por asas de passarinhos, com as pernas sempre justas. Depois rodopiou no vento, curvando a cabeça para baixo, adquirindo o desenho de lança arremessada contra o inimigo, então esticou os braços para frente e se deixou cair retesada contra as águas verdes que a engoliram sem espalhar gotas e sem fazer ruído.
         Por algum tempo todos ficaram esperando Tawacã retornar à superfície, mas ela se demorou um pouco. Quando surgiu, foi numa seqüência de parar a respiração de Pajuari, porque primeiro mostrou os cabelos escorridos, depois os olhos lavados, os lábios carnudos nos quais corriam fios de águas que acompanharam as linhas do pescoço e alcançaram o ombro. Tawacã se ergueu mais um pouco e seu torso despontou em cores brilhantes, refletidas aos milhares pelas gotas escorrendo lisas até atingirem a região dos mamilos, que entumecidos causaram um efeito de corredeira, pois a protuberância dos seios em flor desviou o curso normal do riacho formado em seu corpo. Neste momento se evidenciou a transformação inexorável de sua simetria esguia de menina para os contornos sinuosos de mulher.
         Depois todos saíram da água e foram fazer a primeira refeição, ainda na praia, onde as mulheres assavam peixes e bolos de mandioca para a criançada comer com satisfação. Tawacã pegou sua porção e a de sua irmã Matepi, se afastando do grupo a procura de uma sombra, para comerem tranqüilas enquanto admiravam o sol se erguendo no horizonte. O jovem Pajuari e Aiauara também foram comer na mesma sombra onde se refugiara a pequena guanavena, sentando ambos num tronco caído, de frente para as irmãs. Pajuari não tirava os olhos de Tawacã, observando o cuidado dedicado por ela à irmã mais nova, seus cabelos negros encobrindo todo o ombro, a boca desenhada para proferir sábias palavras e os quadris em formação se alargando para gerar filhos.
         Foi uma contemplação muda, entremeada pelo sonho de Pajuari em realizar logo sua vontade, porque também seu corpo estava em transformação, seus músculos ganhavam formas de homem e sua voz já não tinha o mesmo tom da infância abandonada a cada dia. Não participava mais das brincadeiras na casa dos macacos, reservada apenas às crianças pequenas. O jovem Pajuari treinava para ser guerreiro, aprendia a manejar a borduna, a lança, o arco e a flecha para matar o inimigo, mas também era iniciado na arte da caça e da pesca para nunca deixar sua família passar fome. Desde pequeno ia com os homens da tribo derrubar a mata para os roçados, onde as mulheres cultivavam a mandioca. Manejava a canoa com remadas precisas, levando-a em linha reta, mesmo quando o vento era contrário e o banzeiro impetuoso.
         Terminada a refeição, era o momento de todos procurarem seus afazeres, com as mulheres e as meninas maiores se dirigindo aos roçados, para cuidar da plantação e retirar as ervas que se misturavam à mandioca, sugando os nutrientes da terra, enfraquecendo as raízes e deixando-as sem viço. As crianças menores se dirigiam à casa dos macacos, onde iriam brincar metade do dia, e os garotos já entrando na puberdade iam treinar para a guerra. Os três primos estavam neste último grupo; sonhanhavam com o dia no qual seriam iniciados no ritual de passagem para o mundo dos adultos, quando adquiririam a condição de guerreiros, poderiam desposar e formar a própria família.
         O ritual de passagem dos garotos estava marcado para breve e Taobara o queria em grandes festas devido seu filho estar entre os iniciados, junto com os outros meninos de sua idade. Numa dessas manhãs o cacique foi até Nahpy para tratar dos arranjos para o ritual e Taobara insistiu para serem convidados os maiorais dos caboquenas e dos bararurus, com todos os seus bravos também, para prestigiarem o grande momento dos garotos. O pajé concordou, mas adivinhou que por trás do convite de Taobara se escondia a real intenção de mostrar aos aliados o fortalecimento dos guanavenas com a entrada de novos guerreiros, bem treinados e dispostos a tudo para seguir seu líder.
         Nesta mesma noite, o pai de Pajuari, de nome Malepxi, foi procurar Nahpy para um assunto dos mais importantes, porque trataria do futuro do filho, que seria considerado guerreiro em breve e já procurava uma esposa para formar família.
         - Meu respeitável parente, maior pajé dos guanavenas, venho lhe fazer um pedido, disse Malepxi, com o ar solene exigido para o momento, quero que concedas tua filha Tawacã para ser esposa de meu filho Pajuari.
         O pajé escutou sem surpresa, pois já fora alertado por Aiauara da intenção de Pajuari em desposar Tawacã, mas manteve a compostura e deu à negativa uma importância acima da qual seria necessário.
         - Minha filha ainda é impúbere, admitiu o pajé.
         - Meu filho saberá esperar o momento de desposá-la, argüiu Malepxi.
         - Tu sabes que depois de Tawacã menstruar ainda terá de passar um ciclo das águas na casa das mulheres, argumentou Nahpy, por isso te aconselho a procurar outra esposa para Pajuari.
         Malepxi não aceitou a negativa e passou a desfilar todas as virtudes do filho, explicando ao pajé que Pajuari era o mais forte entre os meninos a serem iniciados no ritual dos guerreiros, que conhecia os segredos das selvas e dos rios de onde não faltaria comida para sua nova família, que era corajoso tanto para a guerra quanto para o trabalho, o que honraria qualquer esposa e aos seus parentes, que remava em boa direção e nadava com a perfeição dos peixes. Mas Nahpy se mostrou irredutível.
         - Conheço muito bem teu filho e prezo a amizade dele para com meu Aiauara, disse o pajé, mas tenho outros planos para minha filha.
         - Pajuari está apaixonado por Tawacã, falou Malepxi, quase como uma súplica.
         - Não tome minha decisão como uma afronta ao seu pedido, meu parente, mas Tawacã ainda terá de passar algum tempo treinando para assumir meu lugar na tribo, por isso não poderá casar tão cedo.
         - Esta é a tua decisão final? quis saber Malepxi.
         - É.