domingo, 12 de dezembro de 2010

Tocaia dos Mortos - Capítulo 2

Os guerreiros omáguas dominavam a margem esquerda do grande rio Amarelo e neste tempo faziam incursão, cada vez mais ousadas, dentro do lago Canaçari. Guanavenas, caboquenas e bararurus haviam acordado entre si que o lago seria compartilhado no interesse comum das três tribos da região. Havia necessidade de rechaçar esta invasão de inimigos poderosos, porque o Canaçari era território de pesca e principal fonte de alimento deles. Para tanto, o cacique Taobara, maioral dos guanavenas, convocou o conselho de guerra de sua gente e decidiram chamar as tribos aliadas e garantir a defesa da região.
         Taobara enviou emissários aos caciques amigos e estes deixaram a taba principal dos guanavenas, de frente para a imensidão do lago, e seguiram a pé até a comunidade do Estreito, no lado oposto da ilha. Esta localidade fora estabelecida como posto avançado de defesa da ilha Saracá, porque era ali onde o lar dos guanavenas se separava da terra firme por uma fina faixa de água. Lá, o grupo se separou em dois, com cada um singrando suas canoas em direções opostas: um deles tomou o rumo do rio Sanabani, margeando pela esquerda, porque assim estaria protegido dos ventos constantes, e foi em busca dos bararurus. O outro grupo subiu o rio Orowo, território dos caboquenas, em canoas impulsionadas por remos possantes e ventos a favor, que serviam melhor aos bravos remadores.
         Em seus destinos, os emissários comunicaram aos caciques a aflição de Taobara com as invasões dos omáguas, dentro do lago Canaçari. Os guerreiros aliados, reunidos nas tabas, se colocaram a favor da guerra com as lanças erguidas, os tacapes brandindo, os arcos e as flechas esperando a pontaria em direção ao inimigo. Depois dessa demonstração de força, foram todos para as canoas e com remadas profundas e apressadas seguiram em direção à ilha Saracá, morada dos guanavenas, de onde partiriam para expulsar os omáguas do território ancestral.
         O chefe dos bararurus, cacique Jauaraçu, foi o primeiro a chegar na ilha com muitas canoas, todas repletas de guerreiros, pintados e armados para os combates e prontos a se juntarem aos guanavenas. Depois chegou Uataçara, grande chefe dos caboquenas, com os bravos montados em suas conhecidas e velozes cembarcações. Eles empunhavam lanças afiadas e pesadas bordunas, em manifestação ruidosa de coragem e valentia. Estes desembarcaram na praia em frente à taba principal dos guanavenas e saíram correndo em direção aos outros guerreiros, exaltando os gritos de guerra, com as armas em riste. À frente ia seu maioral, que parou diante de Taobara e Jauaraçu.
         - Aqui estou, irmão Taobara e irmão Jauaraçu, declarou firme Uataçara, pronto para morrer em defesa da terra de nossos ancestrais e também de nossos filhos.
         Os dois caciques receberam com honras o recém-chegado, confraternizando a amizade que os levaria a combater e vencer guerreiros tão valentes, como eram os omáguas. Os outros índios também se saudaram, observados pelo povo guanavenas: velhos, mulheres e crianças, pois todos acorreram à praia esperando a chegada dos reforços, que ajudariam a expulsar o inimigo do território comum.
         Entre os caboquenas, liderados por Uataçara, veio um jovem que havia passado há pouco tempo pelos rituais de iniciação, tornando-se guerreiro. Era Monawa. Trazia o rosto pintado de vermelho e listras negras, uma borduna de boa lenha, um arco flexível e flechas com pontas afiadas. Seus olhos reluziam o espanto de quem vai para o primeiro combate, sem esconderem o temor da morte. Em seu peito tremia uma dúvida de coragem que era superada apenas pela gritaria de seus companheiros, mas seu punho agarrava a arma com uma força capaz de parti-la apenas com a pressão dos dedos. Era sua primeira visita à ilha Saracá, quando mantinha contato direto com o povo guanavena, por isso observava tudo com interessado espanto. Seus olhos perscrutavam o ambiente, como se ele estivesse na mais medonha selva e não em aldeia amiga, e foi assim que encontrou outros olhos no meio das pessoas que os observavam. Eram os de Tawacã, de toda graça e curiosidade. Seus olhares se encontraram por pouco tempo, mas o mistério desse encontro causou em ambos sensações diferentes.
         O jovem guerreiro se tornou cativo do olhar da cunhantã, cuja idade ainda não lhe dera as chances de ser mulher, embora seu corpo já despontasse para grande beleza. Enquanto dançava os passos da coragem, Monawa não tirou de sua mira a imagem de Tawacã e mesmo quando acompanhava os companheiros na evocação da força para vencerem o inimigo, era na bela guanavena onde pousava seu pensamento. Para Tawacã, foi como se olhasse o infinito, pois não distinguiu, no meio de tantos guerreiros de fortes músculos e bravura experimentada nos mais difíceis combates, aquele jovem pintado pela primeira vez para a luta e que seria, no futuro próximo, seu marido.
         De noite, em volta da fogueira crepitando no centro da taba, os caciques reuniram-se com os bravos para traçar os planos da luta. Taobara propôs que fossem na frente hábeis rastejadores para localizar o inimigo, quantificar seus guerreiros e medir suas forças. Os outros chefes concordaram e indicaram, entre seus bravos, os de melhor aptidão para a tarefa. Formaram-se vários grupos; uns com a missão de espreitar o inimigo, navegando sorrateiramente por igapós, e outros para caminhar nas matas em busca dos rastros dos omáguas, para conhecer suas defesas e descobrir suas fraquezas. Partiram de manhã em todas as direções para onde o lago levava, seguiram pelo labirinto de ilhas, esquivando-se em arquipélagos, devassando as margens opostas do Canaçari, pesquisando os furos do Marupá e entrincheirando-se por entre árvores, dia e noite, sem descanso, sem alimento, mas com força de espírito capaz de subjugar as inconveniências.
         Depois de quatro dias de buscas incessantes o inimigo fora localizado. Os omáguas se concentravam na foz do rio Puru, onde armaram uma paliçada e dali pretendiam estender o domínio sobre todo o lago, vencendo as três tribos e conquistando seus territórios. Esses índios não contavam ainda com toda a força de sua nação, mas mesmo assim tinham boas defesas e estavam preparados para longas batalhas. Estas informações foram levadas para o conselho de guerra das tribos e os caciques decidiram que era urgente atacar o inimigo, enquanto eles ainda não contavam com a plenitude de suas forças.
         Dicidiram partir para o ataque no dia seguinte. Então o pajé Nahpy passou a madrugada na cabana mágica, realizando seus rituais, invocando os antepassados para proteger os guerreiros dos perigos da luta, se aconselhando com os espíritos, bebendo caxiri e fumando seu cachimbo. Quando o dia estava por amanhecer, ainda em transe pela força da bebida, Nahpy saiu da cabana em compasso da dança de guerra, se dirigiu ao centro da taba, brandindo seu maracá para chamar os guerreiros, exortando em todos a coragem dos antepassados e aconselhando os bravos a se pintarem para a guerra.
         Os índios das três nações realizaram a pintura corporal, com cada grupo traçando as linhas com os símbolos de suas tribos. Quando todos estavam preparados para a luta, entoaram as canções da coragem e da honra, também dançaram para os espíritos dos ancestrais os passos da guerra, para não temer o inimigo e nem a morte. Também incorporaram a valentia dos grandes guerreiros. Depois, cada um se paramentou com suas armas: lanças, bordunas, arcos e flechas e embarcou nas canoas, ainda entoando os cantos mágicos que invocavam a proteção a sua vida.
         Enquanto os outros índios mantinham o pensamento voltado apenas no inimigo, Monawa estava fechado em seu próprio transe, porque nos dias em que passou aquartelado na ilha dos guanavenas, esperando os rastejadores voltarem com notícias sobre o inimigo, seus olhos não perderam nunca de vista os passos de Tawacã. Ele a observara muitas vezes quando a pequena índia ia à praia, para o primeiro banho; quando comia com as outras mulheres ou se dirigia aos roçados. Monawa era ainda um jovem guerreiro e não comentava seus sentimentos com ninguém, preferindo viver a reclusão de seu mundo, no qual cabiam apenas ele e a jovem guanavena. Quando embarcou na canoa com os outros guerreiros de sua tribo, para lutar contra os omáguas, olhou fixo na praia e encontrou Tawacã na areia, ao lado de sua mãe e irmãos, junto com as outras mulheres da tribo, e guardou em seu espírito aquela visão de sua amada, jurando a si mesmo voltar vivo dos combates para se casar com a filha do pajé Nahpy.
         Os guerreiros remaram as canoas até a costa do Marupá e lá se dividiram. Uataçara e Taobara, liderando seus homens, buscaram caminho entre os furos, para surpreender por trás os inimigos, porque entrando nos labirintos de ilhas do Marupá, se alcançava a foz do rio Puru pela retaguarda. Enquanto Jauaraçu, com os bravos bararurus, foram esgueirando-se nos igapós do Canaçari, com o objetivo de surpreender em plena fuga os ómaguas, quando estes, atacados pelas costas por guanavenas e caboquenas, buscassem o lago como única rota de escape.
         Ficou acertado entre os três caciques que o ataque seria realizado ao raiar do dia, por isso era necessário tomar posição e aguardar o momento certo. Jauaraçu liderou seus guerreiros até as proximidades da foz do rio Puru e ali esperou escurecer, dando ordem para metade de sua tropa, agora protegida pelas trevas, remar até a outra margem do rio e passar despercebida em frente à aldeia inimiga, que se preparava para mais uma noite iluminada pelas fogueiras acesas na taba.
         No outro lado, ainda nas luzes do dia, guanavenas e caboquenas deixaram as canoas na margem do Marupá e agora marchavam por terra, no silêncio das onças, entrincheirando-se entre árvores, rastejando entre as folhas, picados de carapanãs e feridos por espinhos. Mas estavam decididos, com Taobara e Uataçara à frente, mostrando os melhores caminhos, até avistarem os primeiros sinais do inimigo.
         Neste momento pararam e, quando anoiteceu, os guerreiros retomaram o movimento, se aproximando da aldeia furtivamente, com os passos medidos, usando cada árvore como trincheira, protegidos pelas folhagens e pelas sombras. Estavam agora preparados para o combate, esperando apenas a ordem de atacar. Uataçara chegou perto de Taobara, para acertar os últimos detalhes da guerra. Quis saber quando seria o momento, para que uma tribo não antecipasse o avanço e permitisse ao inimigo evitar o fator surpresa.
         - Qual será o sinal? quis saber o chefe dos caboquenas.
         - Assim que acordarem os papagaios, respondeu um resoluto Taobara.
         A noite foi longa. Os guerreiros tiveram de enfrentar seus medos, que se ampliavam ainda mais com as picadas dos insetos e faziam o suor escorrer pelo corpo, desmanchando a pintura protetora contra a morte. No entanto, a madrugada afinal cedeu sua escuridão à força invencível dos raios de sol e foi apenas surgir os primeiros tons vermelhos no céu para os papagaios começarem a palrar nas árvores. Era o sinal esperado para o ataque. Na penumbra da selva, um grito medonho de muitas bocas rasgou a tranqüilidade do orvalho, abafando a algazarra dos pássaros e fazendo gelar os corações dos ómaguas com o pressentimento repentino da morte.
         Os guerreiros avançaram contra o inimigo pego de surpresa, muitos ainda dormindo nas redes, outros chegando das pescarias noturnas, cansados pelo trabalho. As poucas mulheres da tribo começavam a preparar a mandioca para a primeira refeição dos ómáguas quando ouviram o grito de ataque e viram rasgar no ar as flechas, cujas pontas, untadas com a bosta dos oponentes, carregavam o veneno mortal das infecções incuráveis. Ainda na linha de defesa formada às pressas, sem esboçar qualquer reação, tombaram os primeiros omáguas atingidos pelas flechas de guanavenas e caboquenas. Estes avançaram aos gritos, com os arcos em pontaria e as bordunas trançadas no peito, para quando chegasse o momento da luta corpo a corpo.
         Os omáguas estavam desorganizados porque não esperavam pelo ataque das tribos da região. Desta forma, correram em busca de seus arcos e flechas para conter o avanço dos oponentes, mas não tiveram tempo de impedir que guanavenas e caboquenas, cada tribo entrando na taba por flancos opostos, invadissem a aldeia e tomassem as cabanas mais próximas da mata. Lá, os atacantes encontraram proteção e fustigaram os omáguas com flechas, tentando cercar a grande oca, onde buscaram refúgio mulheres e crianças, o que forçou a maior parte dos guerreiros a se dirigir ao local para dar proteção à sua gente.
         As duas tribos aliadas, em maior número, penetravam sem dificuldade na aldeia inimiga, tomando posições e enfrentando adversários ainda surpresos pelo ataque. Uataçara comandava seus guerreiros, mostrando coragem e disposição de luta. Os inimigos já estavam próximos um dos outros e então o maioral dos caboquenas largou seu arco no chão e empunhou a borduna para brigar corpo a corpo com os adversários. Logo seu grupo cercou uma cabana, que parecia ser a do pajé, e Uataçara foi o primeiro a entrar, com a arma no alto, pronta para desferir o golpe, mas foi atacado primeiro por um omágua, que empunhava uma lança. O inimigo mirou na direção do cacique e arremessou a arma contra seu corpo. No entanto, com um movimento rápido, Uataçara conseguiu se desvencilhar, mas não evitou que seu braço fosse atingido de raspão. Ao ver um fio de sangue escorrer pelo braço, o maioral caboquena ergueu sua borduna e investiu contra o inimigo. Foi um único golpe e o crânio do omágua se abriu em um ruído seco, tombando ao chão.
         Do outro lado da aldeia, os guanavenas abriam espaço atirando suas flechas e pondo em retirada os invasores, que abandonavam suas trincheiras e procuravam se esconder na oca principal, no centro da taba, concentrando todos os seus esforços na última tentativa de resistência. A luta final se anunciava rápida e seria realizada com bordunas e lanças, onde o mais forte sobrepujaria o mais fraco. Os omáguas recuaram até onde puderam, no limite da entrada da grande oca, mas se viram cercados. Neste momento saiu da cabana o maioral do omáguas, cacique Ubiqüera, e conclamou seus guerreiros a lutar até a morte em defesa do sangue de sua tribo e em honra dos seus ancestrais.
         Os índios invasores possuíam um vasto território na margem do grande rio Amarelo e eram respeitados como valorosos guerreiros, mas em menor número e pegos de surpresa, só restava aos omáguas morrer lutando, ou então furar o cerco dos oponentes e empreender a fuga pelo lago. Ubiqüera entoou um poderoso grito e seus bravos partiram para a luta, com lanças pontiagudas mirando os inimigos, que também aguardavam o momento final com as bordunas em posição mortal. Somente a valentia tinha lugar no campo de batalha.
         A luta logo se tornou feroz, com guerreiros se enfrentando cara a cara e lanças furando ventres e bordunas rachando cabeças. Taobara e Uataçara guerreavam com coragem, seguidos de igual exemplo por seus comandados. O cacique guanavena teve as costas rasgadas por uma lança, sem muita gravidade, e mesmo assim continuou lutando com determinação, sem dar chance para o inimigo reverter a situação de inferioridade. À frente de seus guerreiros, Taobara perseguia o adversário, encurralando-o dentro das cabanas, expulsando-o para o centro da taba, onde o combate era mortal.
         Os omáguas rompiam o cerco com dificuldade, escapando apenas uns poucos, que eram perseguidos e de novo retornavam para o centro da luta. Com os guerreiros já exaustos, os combates passaram a ser travados na força bruta dos braços, porque as lanças se partiram e as bordunas se perderam em tantos golpes. Taobara sangrava por vários ferimentos espalhados no corpo, mas empunhava ainda sua arma, com a qual combatia o inimigo. Quando lutava com um omágua, no centro da taba, o cacique guanavena viu o maioral dos invasores enfrentando um bravo caboquena, em quem não teve dificuldade em cravar no peito sua lança.
         Taobara investiu contra Ubiqüera e este, no momento de retirar a lança do peito do guerreiro que acabara de matar, teve sua arma partida ao meio, ficando em suas mãos apenas um pedaço de vara, com a qual não teria chance alguma de enfrentar a borduna do cacique guanavena. O omágua não se sentiu intimidade e esperou o ataque de Taobara, mas este, se vendo em grande vantagem, largou de lado sua arma e combateu o inimigo com as próprias mãos, de igual para igual. Os dois caciques se atracaram no meio da taba, com os corpos molhados de sangue e suor. O guanavena cruzou os braços sobre as costas de Ubiqüera e o ergueu do chão, fazendo-o tombar, mas sem dar chance para o adversário se soltar de seu abraço sólido. O cacique omágua também envolveu Taobara em um laço de músculos, retirando o ar dos pulmões do guanavena. Os dois ficaram no chão, cada um apertando o outro com mais força, como se fossem duas cobras sucuris a esmagar a presa, enquanto os guerreiros lutavam no centro da taba, agora vermelha pelo sangue dos bravos mortos.
         Alguns omáguas conseguiram chegar até a margem do lago e embarcaram nas canoas, partindo em fuga com uns restos de força para remar e escapar da morte, mas foram perseguidos por velozes remadores bararurus, que aguardavam este momento para entrar em combate. Exaustos e sem armas, alguns até feridos mortalmente, só restou aos omáguas a rendição, mesmo sabendo que tal atitude apenas prolongaria a agonia da morte. Os invasores então largaram os remos e se colocaram de pé nas canoas. Uns, impulsionados por intensa bravura, jogaram-se nas águas verdes do lago Canaçari e ali mesmo encontraram seus túmulos, morrendo sem se entregar ao inimigo.
         No centro da taba os combates havia cessado, apenas travavam sua luta Taobara e Ubiqüera, agarrados um ao outro num abraço do qual sairia apenas um vencedor. Os guerreiros cercaram os combatentes, gritando o nome de Taobara para este buscar as últimas forças a fim de sobrepujar o oponente. Então, revigorado pelo clamor de seus guerreiros, o cacique guanavena, quase sem ar para respirar, num esforço sobrehumano, contraiu os músculos dos braços nas costas do inimigo, esmagando contra seu corpo o corpo de Ubiqüera. Taobara e sentiu a tenaz de víbora do cacique omágua se afrouxar sobre seu peito. Apertou outra vez as costas de Ubiqüera, desta vez sem encontrar resistência do adversário, cujos braços moles se desgrudaram das costas de Taobara e este, se sentindo liberto, buscou todo o ar que fazia falta aos seus pulmões e começou a afrouxar também seu aperto, que desmaiara o cacique omágua, conseguindo assim sua rendição.
         Era o fim dos combates. Os guerreiros omáguas que escaparam com vida estavam aprisionados, pois nenhum conseguiu fugir, enquanto o cacique inimigo, vencido pelo abraço titânico de Taobara, permanecia deitado no chão da foz do rio Puru, envolvido numa crosta de poeira, suor e sangue. Ubiqüera não estava morto, apenas desmaiado. Ao recobrar os sentidos foi amarrado junto com os outros prisioneiros. Em seguida, os bravos vitoriosos recolheram os feridos aliados, embarcando-os nas canoas, junto com os corpos dos que tombaram em combate, para serem transportados até a aldeia dos guanavenas, pelas remadas rápidas dos descansados bararurus. O restante da tropa seguiu a pé pela floresta, arrastando os prisioneiros até onde estavam guardadas as canoas, mas margens do Marupá, e então obrigaram os vencidos a remar até a ilha Saracá. Na ilha, o povo aguardava para a grande festa de confraternização das tribos aliadas.
         Quando chegaram na ilha Saracá, os feridos foram recebidos por Nahpy, que de imediato começou o ritual de cura, ajudado pela sua filha Tawacã. A jovem índia, de tão ocupada no preparo das infusões, não reconheceu entre os feridos o jovem Monawa, o guerreiro caboquena que passara os quatro dias antes da batalha, enfeitiçado por seus encantos. A filha do pajé não dispensou tratamento diferenciado para nenhum dos guerreiros, não distinguindo entre eles aqueles que eram de sua tribo e os das outras, porque a todos levava sua atenção, procurando fazer da melhor maneira possível os curativos indicados por Nahpy. O pajé defumava os feridos, passava ervas nas chagas, enquanto entoava cantos para os espíritos protetores trazerem saúde aos bravos guerreiros e invocando a proteção do grande Paharamim sobre o território das tribos aliadas.
         Houve um momento de grande euforia quando desembarcaram na ilha Saracá os guerreiros vitoriosos, trazendo os prisioneiros amarrados para o ritual de humilhação. Mas antes da festa iniciar, foi permitido às famílias dos guerreiros mortos chorarem seus parentes. A cerimônia funerária foi realizada nas margens do Murucutu, no outro lado do lago, da qual participaram todas as gentes.
         Os prisioneiros omáguas estavam amarrados em grandes postes armados no centro da taba para as mulheres e as crianças realizarem a humilhação. As gentes das tribos vencedoras fizeram longa fila e todos passavam em frente dos vencidos, cuspindo-lhes no rosto, jogando-lhes lama, proferindo insultos e ofendendo-os, a eles e a seus parentes, porque ousaram invadir as terras sagradas dos guanavenas, caboquenas e bararurus. Os omáguas retribuíam também com insulto, mas como estavam amarrados não podiam impedir as velhas esfregarem areia em suas caras e as crianças investirem contra eles armados de paus, com os quais batiam forte, simulando um combate para o qual não tinham idade de lutar.
         Enquanto isso, os bravos traziam lenha para fazer fogueiras de grandes assados, amontoando no local de cerimônia feixes de gravetos e toras de madeira para arder durante dias. Guerreiros e anciões também estavam excitados pelas doses fartas de caxiri, servidas em cuias que passavam de mão em mão entre os vitoriosos. Também fumavam ervas mágicas e tossiam ao impacto da fumaça em seus peitos, explodindo em risos, em gargalhadas, em choros. Com olhos vermelhos e bocas secas, os guerreiros se vangloriavam de seus feitos na batalha, de como haviam matado vários inimigos e posto para correr os sobreviventes. Alguns até aproveitaram a ocasião para resolver cismas antigas, chamando desafetos para a briga e gerando confusão no terreiro.
         Na cabana onde Nahpy curava os feridos da guerra também imperava a agitação, com os ajudantes do pajé acendendo incenso para purificar o ambiente e atrair bons fluidos. Deitado em sua rede e com o peito aberto por uma lança, o jovem Monawa delirava em febres, suando como um rio e implorando para não ser levado ao reino da morte. Ao ouvir seus gemidos, Tawacã trouxe ao jovem guerreiro um emplastro de copaíba e aplicou em seu peito, massageando com suavidade em volta da ferida para ajudar a absorver o remédio. Monawa então despertou ao toque dos dedos da índia e se encontrou em um mundo de assombro, porque, embriagado pela dor da febre e diante da visão do rosto da jovem guanavena, não sabia se estava sonhando, se estava lúcido ou se havia morrido.
         O guerreiro caboquena balbuciou algumas palavras, mas não foram entendidas por Tawacã. Ele tentou erguer o peito para se aproximar mais perto dela, mas a dor lancinante impediu seu impulso e então só restou a Monawa agarrar o braço da pequena índia, fazendo com que ela sentisse o impacto de uma força descomunal que por pouco não partiu seus frágeis ossos de menina. Tawacã se assustou diante da investida do guerreiro e tentou soltar o braço, mas Monawa segurou com mais vigor ainda e a puxou para próximo de si, encostando a cabeça da guanavena junto a sua e dizendo na sua língua uma frase da qual a jovem filha de Nahpy só compreendeu as palavras minha esposa, porque estas eram comuns aos dois idiomas. Depois desse esforço tremendo, Monawa desmaiou, mas em seus lábios restaram um sorriso de quem havia cumprido uma promessa.
          Lá fora, no terreiro da aldeia, os guerreiros vitoriosos dançavam de alegria e festejavam a vitória diante do inimigo poderoso. Foi quando surgiram os três caciques vencedores, seguidos pelo conselho de anciãos, que estava reunido na cabana do grande chefe dos guanavenas para tratar dos novos acordos e reafirmar a paz entre as tribos aliadas. Uataçara trazia o braço ainda com a ferida sangrando, mas já não demonstrava dor, porque fora benzido por Nahpy. Taobara trazia nas costas a chaga da lança traiçoeira dos omáguas, mas sem correr perigo, porque recebera a infusão do grande pajé e aguardava a cura certa. No meio dos dois caciques feridos, estava Jauaraçu, que não participara diretamente da batalha, mas cuja atuação foi decisiva para a grande vitória dos aliados.
         Os caciques anunciaram aos guerreiros as decisões tomadas pelo conselho dos anciãos e foi uma salva de gritos, com todos festejando os novos tempos de paz e oferecendo as cuias de caxiri e os cachimbos de ervas mágicas. Então, uma parte dos guerreiros correu para acender as fogueiras, enquanto a outra foi em direção aos prisioneiros. Soltaram primeiro um e os outros omáguas começaram a gritar palavras incompreensíveis do seu idioma, mas que para os vitoriosos era claro que se tratavam de ameaças e juras de vingança. O prisioneiro solto protestava, batia os punhos fechados contra o próprio peito para mostrar sua bravura, tentava fugir correndo, mas era perseguido pela multidão e jogado no chão. Foi arrastado de volta para o centro da taba; se pôs de pé, ameaçando enfrentar seus oponentes, enquanto as gentes da aldeia gritavam insultos ao invasor derrotado. O omágua quis se defender brigando, mas uma borduna veio por trás e atingiu sua cabeça, jogando-o ao solo com o impacto seco e fazendo pedaços de seu cérebro pulsarem na poeira, para delírio dos vitoriosos.
         Soltaram outro prisioneiro e o ritual se repetiu. Um a um os derrotados foram mortos, sob o impacto das bordunas e aos gritos delirantes do povo; crianças corriam para juntar fragmentos de miolos, que colocavam na palma da mão, para sentir a pulsação quente dos vencidos, enquanto as mulheres, as mais velhas principalmente, gritavam honra à vingança por tantos parentes que tiveram o mesmo fim quando prisioneiros dos omáguas. O último a morrer foi Ubiqüera. Esperou sem desespero seu momento, sem protestar ou tentar uma fuga impossível, que apenas excitaria ainda mais seus inimigos. Não ameaçou ninguém nem jurou vingança e foi golpeado com a fronte erguida, mas não tombou ao primeiro golpe, sendo alvejado pelo segundo, agora mortal, quando cambaleava pelo terreiro.
         Em seguida, os guerreiros mortos foram esquartejados e jogados na fogueira para serem assados, enquanto a festa continuava na aldeia guanavena, com caxiri nas cuias e ervas mágicas nos cachimbos. Os vencedores estavam num transe comemorativo e não paravam de dançar agradecendo aos ancestrais por esta vitória. Invocavam os espíritos dos sábios para que a honra predominasse nos territórios sagrados, nas águas de lagos e rios, para nunca faltar caça e nem peixe, para a terra sempre oferecer em abundância a mandioca, as frutas de estação e as sementes das palmeiras com as quais saciavam a sede com seus vinhos.
         Agora seriam servidos os assados. Todas as gentes das tribos aliadas se colocaram em volta das fogueiras, desde velhos e crianças, observando pedaços de carne crepitando nas grelhas sobre o fogo. Na condição de cacique anfitrião, Taobara foi o primeiro a se servir; escolheu um pedaço farto, uma coxa, que teria sido do cacique Ubiqüera, espetou com uma pequena lança o naco e o retirou do fogo, levando-o até próximo do nariz para sentir o aroma. Então, ergueu o naco de carne pedindo permissão ao grande Paharamim para devorar o omágua.
         - Meu honrado inimigo, disse com solenidade, como tua carne para me fartar em tua bravura e em tua sabedoria.
         Em seguida abocanhou o pernil retirando um grande pedaço que mastigou sério. Depois ofereceu a coxa aos demais caciques, que também proferiram os mesmos gestos e as mesmas palavras e, enfim, se liberou para os demais guerreiros, depois para os velhos, em seguida às mulheres e, por último, às crianças. E todos se refestelaram com as carnes dos vencidos.