segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Tocaia dos mortos - Capítulo 1

         Faltavam alguns dias para Tawacã dar a luz ao primeiro filho quando seu cunhado Yepá apareceu na aldeia dos caboquenas, depois de quase dez ciclos de água desaparecido e dado como morto. No princípio, seus parentes o olhavam com a mesma admiração de quem vê um espírito, mas depois de ouvirem inúmeras vezes as histórias sobre um tempo de vivência forçada numa tribo de mulheres guerreiras, ele passou a ser visto mais como uma entidade mágica, recebendo o mesmo respeito dos valentes guerreiros e a reverência oferecida aos grandes pajés.
         Dias depois, deitada na rede, no descanso da primeira maternidade, Tawacã, ainda jovem mãe e somente há pouco tempo aceita no mundo dos adultos, ouvia de Yepá essas aventuras e ficava fascinada pelo bruxulear das fogueiras que conferia ao ambiente da oca uma atmosfera de encanto. Ele as contava no equilíbrio entre o entusiasmo e a veracidade, de quando fora capturado, junto com seu primo Benry, por essas guerreiras, que ele dizia serem índias de aldeia sem homens, onde eles eram aceitos apenas nas festas de acasalamento e, mesmo assim, depois de procriarem, eram sacrificados ou mandados embora, mas que nunca se soube de algum que tenha permanecido na companhia delas, por tanto tempo, como ficou o caboquena agora ressurgido.
         Ele e Benry desceram o rio Orowo, que recebia este nome em homenagem ao urubu-rei, e foram caçar nas margens do lago Saracá, onde também se encontrava a foz do rio Sanabani, nas extremas das terras dos caboquenas com as de seus aliados guanavenas e bararurus. Depois atravessaram o lago em direção ao Murucutu, adentrando-se com a canoa em igarapés desconhecidos. Foram pela mata em perseguição à caça, sem se darem conta que os labirintos da floresta os levavam para lugares perigosos. Mas como naqueles tempos sua tribo havia selado uma trégua ocasional com os índios da região, eles ousaram seguir adiante. Perseguiram bandos de jacus e varas de queixadas, até às margens do paraná de Itapiranga, afluente do grande rio Amarelo, local onde os homens de sua tribo evitavam caçar porque ali era a fronteira das terras de nações inimigas.
         Logo deram conta do perigo e retornaram ao seio da selva, chegando ao lago Canaçari, área explorada em conjunto pelas três tribos que selaram a paz na região. Ali permaneceram, aproveitando para pescar em águas piscosas. Na tranqüilidade das margens do lago construíram um pequeno tapiri para servir de abrigo, onde também pretendiam moquear os animais abatidos.
         Na primeira noite dormiram acobertados pelo lume das estrelas refletindo-se no Canaçari, acordando com as primeiras luzes do sol e, no entanto, embora tantas manhãs os guerreiros tivessem assistido, aquela guardava algo de especial no resplendor vermelho das águas e das nuvens. Comeram peixes, beijus de mandioca e foram até a floresta com intuito de recolher lenha para a fogueira e preparar a defumação da carga, tarefa que lhes tomaria metade do dia. Eles precisariam embarcar toda a carga na canoa, que ficara distante, em várias viagens de ida e volta, até toda a produção da caça e da pesca estar acomodada para seguir viagem até a aldeia Maquará, dos caboquenas, muito acima no rio Orowo.
         Quando o sol já iniciara seu caminho rumo ao poente, os bravos realizaram a primeira viagem, levando nas costas os quartos retalhados do veado abatido na última noite, alguns peixes e a fileira de jacus amarrados em uma vara. Neste trajeto, perderam o resto do dia, mas mesmo assim retornaram antes do anoitecer ao tapiri, para na manhã seguinte empreender outra viagem até a canoa. Dormiram no tapiri, embalados pela brisa suave do Canaçari e muito antes do sol nascer, quando a noite ainda dominava o mundo com seu negrume, foram surpreendidos pelo ataque de guerreiros inimigos que caíram sobre eles com a rapidez de felinos, imobilizando-os e não lhes deixando qualquer oportunidade de reação.
         Foram amarrados, pendurados pelos pés e mãos em varas, da mesma forma como eles transportavam os animais abatidos. Os inimigos levaram Yepá e Benry pela mata, na pavorosa escuridão da noite, sem eles entenderem o que seus captores falavam e quais seriam seus destinos. Quando chegaram às margens do paraná de Itapiranga foram jogados em grandes canoas, nas quais seguiram viagem ao desconhecido, impulsionadas por vigorosas remadas. O dia começou a clarear; então Yepá percebeu a aproximação do grande rio Amarelo, o mais poderoso de todos os cursos de água. Na claridade do sol tomou consciência de seu destino trágico, porque os inimigos que aprisionaram a ele e ao primo, de língua desconhecida, eram na realidade temíveis mulheres guerreiras, cuja lenda de bravura se espalhava pelas beiras dos rios, atemorizando até as tribos mais aguerridas.
         A narrativa de Yepá atraía a atenção de todos os presentes na oca. As labaredas afogueavam o rosto do guerreiro contador de histórias, deixando-o avermelhado tanto pelo reverberar das chamas quanto pelas lembranças de momentos terríveis. O jovem Wuré, usando da sua nova condição de guerreiro aprovado nos rituais de iniciação, tomou a palavra e perguntou a Yepá.
         - E nosso irmão Benry, o quê foi feito dele?
         Yepá fez uma pausa, puxou um trago de seu cachimbo e respondeu, sem sequer alterar as emoções, que Benry fora sacrificado logo na chegada da aldeia das guerreiras. No entanto, ele escapara de tão triste fim porque a rainha da tribo, de nome Mauara, ordenou que o levassem à cabana principal da taba, onde permaneceu recluso por vários dias, na condição de homem da bela cacique e reprodutor de todas as outras mulheres da aldeia. Durante muito tempo levou uma vida de regalias, sem trabalhar para comer ou arriscar a vida nos conflitos travados entre as índias e as tribos vizinhas. Nas muitas vezes em que essas guerras resultavam em prisioneiros, ele viu também muitos homens serem sacrificados, porque era costume nessa aldeia fazer correr o sangue dos machos para fertilizar a terra fêmea. Porém, gerar as filhas das mulheres guerreiras só bastava apenas um bom reprodutor, e este era Yepá.
         Quando ele narrara suas aventuras, Tawacã ouvia com atenção e respeito, lembrando de quando era criança em sua aldeia original, na tribo dos guanavenas. Ficava na ilha Saracá, margeada pelo lago Canaçari, de onde fora raptada há cerca de um ciclo de água por seu marido Monawa. Tawacã recordava das noites nas quais seu pai, o pajé Nahpy, principal da tribo dos guanavenas, contava à sua gente as lendas e tradições do povo. Era o mesmo clarão da fogueira iluminando o sábio guanavena, enquanto ele bebia na cuia o caxiri alucinógeno que o transportava para visões mágicas, tragando fundo o seu cachimbo e envolvendo todos na aura mítica da fumaça. Mas uma diferença fazia a distinção de costumes de uma tribo e outra: os caboquenas, filhos das matas fechadas, recolhiam-se na intimidade protetora da oca, enquanto os guanavenas, afeitos à vida ao ar livre, reuniam-se nas noites de lua cheia nas praias. Nessas ocasiões, protegidos no ventre acolhedor de sua ilha e ouvindo o reverberar do fogo na lenha, transmitiam às novas gerações as tradições dos ancestrais.
         Nahpy era o guardião dos segredos milenares dos guanavenas e sabedor das origens de seu povo. Conhecia também os poderes das plantas, palavras mágicas usadas para invocar espíritos e dominava os mistérios para transcender este mundo e penetrar nas brumas do desconhecido. Embora fosse pai de filhos homens, nenhum deles nascera com vocação à pajelança. Mas, sua esperança de manter na família os conhecimentos milenares de sua nação, transmitidos desde tempos imemoriais de pai para filho, residia na curiosidade inteligente de Tawacã.
         Nahpy sabia que iniciar sua filha Tawacã na arte dos pajés seria afrontar os veneráveis da tribo, no entanto, preparava os espíritos dos velhos do conselho, explicando ter a menina visão aguçada para os mistérios, vocação natural de aprender sobre a medicina da floresta e a pronúncia perfeita para entoar os cantos da benzedura. O mestre dos pajés via na filha somente virtudes da serenidade e do conhecimento, enquanto em seus filhos, de espíritos belicosos, predominava a vocação guerreira. Foi com o peito cheio de angústia que Nahpy ouviu seu primogênito Aiauara dizer que não seria ele o sucessor.
         - Meu espírito, pai, não contempla rezas e curas, porque o que mais quero é guerrear, disse Aiauara, com a cabeça baixa em respeito à autoridade paterna, mas convicto de estar tomando decisão irrevogável, embora tal desobediência implicasse em sofrimento ao grande pajé.
         - Não se trata de aceitar ou não o destino, respondeu com severidade Nahpy, porque tu, Aiauara, estarás para sempre do lado da vida e não da morte.
         No entanto, desde quando se preparava para os rituais de iniciação, junto com todos os garotos de sua idade, Aiauara já vivia a certeza de que grandes combates o aguardavam. Ele não tinha desprezo pela função de pajé. Sabia da importância de ser guardião do conhecimento milenar, de tomar assento no conselho dos veneráveis sem participar de guerras, de ser respeitado por todos, homens ou mulheres, crianças ou velhos, pelo fato de ter o poder da cura, de arrancar da floresta as infusões do bem-estar da tribo. Mas, Aiauara sabia que dentro de seu ser residia completa falta de aptidão para trabalhos de pajelança. Desde a pequena idade sentia o sangue em erupção quando assistia ao retorno dos guerreiros. Ficava extasiado ao ver os feridos das batalhas e outros trazendo nas pontas das lanças as cabeças dos inimigos mortos, mas, em todos o triunfo no rosto, a certeza da vitória conquistada com honra, nos quais até a tristeza pelos parentes mortos em combate não superava a glória na luta.
         O grande pajé não pode conter a vontade do filho mais velho e, assim, remediou a desilusão na esperança de ver a filha Tawacã, mais nova que Aiauara, assumindo o destino familiar de ser guardiã dos grandes mistérios dos guanavenas. Para isso, Nahpy reunia toda a tribo em volta da fogueira, nas noites de melhor lua, na calidez da praia, para repassar às novas gerações os conhecimentos herdados dos ancestrais. Neste momento, ao seu lado se sentava Tawacã. Ela escutava com a atenção redobrada, buscando entender cada sentido das palavras. Sem sequer ter sido informada do futuro, já predestinava em sua vida a obrigação de repetir muitas outras vezes aquelas histórias ao seu povo.
          A chama da fogueira iluminava o rosto de Nahpy e seu reflexo difuso conferia ao ato solene uma gravidade sobrenatural. Isso tornava a narrativa repleta de encantamento. Os guanavenas eram levados ao centro da história. Os olhos atentos dos meninos se dispunham a aprender o significado de cada gesto realizado pelo pajé, enquanto as meninas se fascinavam pela sonoridade das palavras. A fala pausada do Nahpy fazia as mulheres retornarem aos seus melhores tempos, quando adormeciam escutando as mesmas histórias; já os homens readquiriam a plenitude física, ao recordarem de quanto ímpeto essas narrativas lhes impuseram em outros tempos. No entanto, somente os anciãos, de ambos os sexos, tinham completo entendimento de depurar o significado real de cada narrativa, pois entendiam que, a cada geração, os conhecimentos ganhavam novo estilo, conferido pelo pajé encarregado de guardar à posteridade as tradições dos guanavenas.
         A tribo toda se calava num silêncio intenso e apenas se ouvia o crepitar da lenha sob a sanha do fogo. Nahpy levava à boca a cuia sagrada, tomava um gole do caxiri, se transportava aos limites da consciência, até retornar ao seu mundo ainda inebriado pela fumaça densa do cachimbo. Então começava a narrar a origem da tribo dos guanavenas.
         “No princípio não havia nada, somente água a dominar as vastidões. O lago Canaçari estendia seus limites até o infinito e predominava a escuridão eterna em sua superfície. Mas de repente, de dentro das trevas medonhas, o grande Paharamim segurou um punhado de estrelas e lançou em direção ao mundo, salpicando-as como fagulhas que se espalham no momento em que atiçamos a fogueira. Esses pequenos pontos de luz foram pipocando em todos os cantos, até iluminar o firmamento com pequenas faíscas. No entanto, o céu permaneceu assim ainda por muito tempo, sem nada a perturbar a calma infinita. No alto, resplandecia a luz das estrelas que as águas do lago refletiam, sem um vento para remexer o leito, sem correntezas para misturar o caldo lacustre do cauixi”.
         O maior de todos os pajés dos guanavenas encenava a narrativa com movimentos precisos, sabendo que as palavras, para serem convincentes, deveriam ser faladas em boa oratória e com a arte da representação eloqüente, sem excesso de pantomima para não desviar a atenção do povo, mas também sem desleixo que causasse nas pessoas a suspeita da dúvida. Nahpy sabia dosar as duas coisas, encantando a tribo com da história dos ancestrais. Bebeu outra dose de caxiri e tragou mais uma baforada de seu fumo, soltando de uma vez pela boca e pelo nariz, envolvendo os mais próximos numa névoa inebriante de sonhos. E continuou:
         “O grande Paharamim não ficou contente com o mundo em formação, então enviou um trovão dos confins do infinito, que ressoava pelo céu como a fúria de milhares de antas. Varreu o firmamento de lado a lado e fez trepidar a superfície do lago, criando os primeiros banzeiros para misturar as águas eternamente paradas. Fez cair sobre o mundo uma chuva de estrelas, que se soltavam do céu e iam se misturando umas às outras, formando uma nuvem de vaga-lumes a se precipitar no abismo da escuridão do grande lago. O clarão mergulhou nas profundezas escuras e atingiu o fundo lodoso. Essas fagulhas penetraram no interior da terra, rasgando-a profundamente para plantar a semente da vida em seu ventre. Porque a grandeza do lago não poderia existir mais sem a claridade da luz e sem a alegria da vida”.
         “Era o fim da noite eterna. Em seu lugar surgiu o primeiro arrebol, que riscou uma linha no meio do horizonte, separando os limites entre águas e céus. Depois tudo se transformou de vermelho da aurora para o dourado resplandecente, em tons cada vez mais claros, até ceder totalmente ao avanço inexorável do azul total. Esta cor pintou toda a abóbada celeste de uma manhã suprema. Depois de terminado o resplandecer do dia, o grande Paharamim mostrou seu rosto para o mundo, emergindo das águas e percorrendo a curvatura do firmamento. Lá do alto contemplou sua obra com orgulho, porque viu o azul dos céus e, lá embaixo, o contraste espetacular do lago, cujas águas refletiam o verde sereno que até hoje brilha e encanta os olhares. O grande Paharamim passou um bom tempo observando o mundo, extasiado por sua obra, mas depois desceu até às águas, levando consigo a luz do dia e trazendo de volta a noite estrelada. Só que prometeu retornar sempre, e assim o faz, porque na manhã seguinte emergiu de novo das águas, brilhante como nunca, na forma adorada de um sol”.
         “No céu e na superfície do lago estava consumado o trabalho do grande Paharamim, mas era no fundo das águas que outra obra divina começava a criar forma. As sementes estelares caídas no tempo da chuva incandescente faziam brotar a natureza viva em forma de poderosas formigas saracá. Elas se transformaram de brasas em seres vivos e começaram a erguer o formigueiro primordial das entranhas do lago, montando grão a grão o montículo que superou a linha da água e recebeu os primeiros raios do sol em sua areia. Surgiu a ilha Saracá, construída pela vontade ígnea das formigas, seus primeiros habitantes, que por muito tempo foram alargando sua superfície, expandindo novas massas de terras, criando praias sempre mais largas, revolvendo o fundo lodoso do lago para buscar nas profundezas tectônicas as areias mais finas e transparentes. O desejo dos primeiros seres era expor a alvura das areias ao calor do sol, o grande Paharamim, e assim se formaram as cores no mundo: no céu o azul luminoso, pintado de vermelho, amarelo e negro todos os dias; no lago, o verde suave e; na ilha, o branco imaculado das praias saracaenses.”
        Depois de ouvir a narrativa de Nahpy os guanavenas recolhiam-se à oca coletiva da tribo, onde todos dormiam em comunidade, cada família em seu espaço. A do grande pajé ocupava os fundos da cabana, com cinco redes de fibra. Na maior, armada no meio das outras quatro, dormiam ele e sua esposa Xirminja; no lado colado à parede de palha, os filhos homens, com Aiauara na borda e o mais novo, de nome Byrytyty, na rede ao lado da do casal; na parte voltada ao interior da cabana, as filhas, Tawacã mais afastada e sua irmã, Matepi. Nesta época, Tawacã estava com cerca de oito ciclos de água de idade, enquanto Matepi tinha três. Todos os filhos do pajé participavam da cerimônia da fogueira, quando Nahpy relatava as origens de sua tribo.
         Quando todos se recolheram para dormir, Tawacã se deixou levar pelo assombro da narrativa e sonhou que as formigas vieram reclamar a ilha Saracá, construída por elas e agora em poder dos guanavenas. No terror do pesadelo, a rainha das formigas disse para Tawacã embarcar com sua gente nas canoas e seguir viagem em busca de outras terras. A jovem índia buscava ajuda nos conselhos do pai, mas este disse ser justa a petição dos insetos. Então ela respondeu que não abandonaria sua terra natal e foi atacada pelas saracás carnívoras, ficando sem possibilidade de escapar. Acordou assustada, mas na escuridão da oca mal iluminada pela fogueira, encontrou os olhos de Matepi tão arregalados quanto os dela.
         - Irmã, estou sendo perseguida por pesadelos medonhos, disse a pequena Matepi, cujo enredo de seus sonhos se assemelhava ao de Tawacã. Esta, na condição de irmã mais velha, responsável por proteger e dar tranqüilidade à caçula, retomou o equilíbrio das emoções e, superando todo seu medo, afagou a pequena criança.
         - Vamos voltar a dormir, irmãzinha, porque papai há de nos proteger de todos os perigos. Então adormeceram na calma da oca, embaladas pelo crepitar macio da lenha no fogo.
         A família de Nahpy acordou, como sempre o fazia, assim como toda a tribo, nas primeiras luzes da aurora. Logo eles se dirigiram à praia, para o primeiro banho, para retirar do corpo o cheiro forte da fumaça das fogueiras acessas no interior da oca, que impregnavam até os sonhos das gentes, mas evitavam os ataques dos carapanãs sanguinários durante as melhores horas da madrugada. Os filhos do pajé se divertiam nas águas cálidas do lago, junto com todas as crianças guanavenas, enquanto Xirminja e outras mulheres da tribo preparavam os bolos de mandioca e os peixes moqueados da primeira refeição do dia, acompanhados de frutas e vinhos das palmeiras da selva. Quando estava tudo assado, os guanavenas banquetearam com fartura, porque a comida era abundante na ilha Saracá, onde os roçados ofereciam colheitas em todas as épocas do ano, a floresta fornecia as frutas de estação e no lago e em seu emaranhado de rios abundavam os peixes de piracema, tanto fazia estar na enchente como na vazante.
         As mulheres aproveitaram o sol ameno da manhã para realizar as tarefas domésticas, incumbência delas. Elas foram para os roçados cuidar das plantações de mandioca, colher os tubérculos maduros e retirar as ervas daninhas que enfraqueciam a terra. Xirminja também foi ao roçado, levando a pequena Tawacã para que aprendesse desde cedo os trabalhos femininos. A pequena Matepi e seu irmão Byrytyty foram para a casa dos macacos, onde reuniam as crianças menores, sem idade ainda para trabalhar na roça, e lá ficaram brincando. Nahpy não gostava de ver Tawacã realizando trabalhos domésticos, junto com as outras mulheres, porque tal atividade não condizia com o destino grande que o pajé sonhava para a filha mais velha. Aceitava como uma imposição das tradições, mas preparava o caminho para mudar esta regra ancestral e fazer de Tawacã, a filha mais amada, a primeira mulher a possuir o poder do conhecimento tribal.
         Reunidos em uma oca no centro da taba, Aiauara e os meninos de sua idade se preparavam para as guerras e as atividades de caça e pesca. Desde quando passaram a trilhar o caminho da puberdade deixaram de freqüentar a casa dos macacos, onde estiveram na primeira infância, e então começavam a seguir pelo conhecimento das coisas do mundo dos homens, com seus rituais de força, coragem e honra. Aprendiam a manejar a borduna, tanto para o ataque quanto para a defesa; também o arco e a flecha, de múltiplos usos, porque tanto tinham utilidades na caça e na pesca, como também na guerra; conheciam os segredos dos anzóis e das redes, úteis para capturar o peixe, alimento fundamental na dieta das famílias guanavenas; participavam de aulas práticas em canoas, para que mantivessem o rumo mesmo contra o vento e em correntezas contrárias para fortalecer a musculatura, porque um corpo de músculos vigorosos era importante para intimidar os inimigos e atrair os olhares das mulheres.
         Aiauara gostava de participar dessas atividades junto com seu primo Pajuari, de quem era amigo desde os primeiros tempos. Ambos faziam demonstração de força e valentia quando brincavam de briga. Eles rolavam pelo chão da oca em conflitos simulados, cada um procurando jogar o adversário ao chão, imobilizá-lo e assim sair vitorioso, mas os dois amigos tinham a agilidade da onça e não se deixavam dominar, agarravam-se com os músculos retesados, se soltavam, voltavam ao combate corpo a corpo, procurando o ponto fraco do oponente, e então davam a luta por terminada, sem vencedor nem vencido. Corriam para o rio, se jogando na água em alegria redobrada, acompanhados dos outros meninos. Mas não deixavam as competições e por isso nadavam com velocidade, mergulhavam para ver quem submergia mais tempo ou retornava à tona mais distante, brincavam de guerra dentro do rio, usando as águas como armas.
         Quando caminhavam de retorno para a taba, Pajuari segurou Aiauara pelo braço e confessou o segredo.
         - Meu primo, é minha honra combater guerreiro tão valoroso, disse entre sorrisos. E com o olhar seguro de quem sela para sempre um compromisso incontestável concluiu: E para aproximar ainda mais meu sangue do teu, meu primo, adianto aqui o meu desejo de fazer de tua irmã Tawacã minha esposa.
         Aiauara entendeu aquele compromisso de Pajuari como mais uma de suas brincadeira, por isso não deu a importância que este desejava para suas palavras, mas seguiram de volta para a cabana dos treinos. Por fim, naquele mesmo dia, quando encerraram as aulas de formação dos guerreiros, o jovem filho de Nahpy compreendeu que estava se transformando em homem de verdade. Quando a família se reuniu para a segunda refeição, Aiauara tocou no assunto com o grande pajé.
         - Meu pai, falou com gesto grave, quando o senhor vai tratar sobre o meu casamento.
         Nahpy se surpreendeu com o questionamento do filho, pois considerava o assunto ainda prematuro, uma vez que Aiauara não havia ainda sequer passado pelo ritual de iniciação dos guerreiros, mas mesmo assim se interessou pela aflição do filho e o interrogou.
         - Posso saber qual o motivo para tal angústia? perguntou o pajé, e completou: se ainda não és guerreiro formado e não podes assumir compromisso de família.
         - É porque, meu pai, minha irmã Tawacã já recebe propostas de casamento, disse Aiauara, com responsabilidade de irmão mais velho.
         Então o pajé se mostrou mais surpreso ainda, porque todos os planos que fazia para os filhos começavam a sair ao contrário: Aiauara a cada dia se mostrava mais convicto de não herdar o conhecimento dos ancestrais e se preparava com afinco para ser guerreiro. Tawacã indo ao roçado aprender trabalhos domésticos e já recebendo propostas de casamento.