terça-feira, 25 de outubro de 2011

Capítulo 23 - Tocaia dos Mortos

          YEPÁ E TAWACÃ TESTEMUNHARAM A FÚRIA COMO OS MURAS VINGAM OS INIMIGOS, com vilipêndios dos corpos, por isso era impossível reconhecer quem fora quem entre os mortos da aldeia. Aqueles que não tiveram a cabeça arrancada e levada como troféus foram amputados, ou então estripados e amontoados no intuito de causar maior pavor entre os sobreviventes, para nunca esquecerem o que acontece àqueles que ousam desafiar o poder supremo dos índios do grande rio Amarelo. As cenas estarrecedoras desencorajavam até os determinados a enterrar os mortos, com medo de cometer o sacrilégio de acomodar no mesmo túmulo pedaços de corpos de inimigos.
         Os dois sobreviventes escolherem uma das inúmeras canoas abandonadas nas margens do rio e deixaram a aldeia Maquará ainda queimando sob o fogo dos muras, enquanto os urubus desciam das alturas para completar o serviço de carniceiros e espalhar ainda mais os restos dos caboquenas derrubados em combate. Havia poucos vestígios de mulheres e crianças, dando certeza aos dois índios que Matepi estava entre as prisioneiras, pois a prática de guerra dos povos da região era poupar apenas as mulheres, levadas e distribuídas aos mais valorosos guerreiros, e as crianças, criadas como se nascidas na tribo vitoriosa.
         Yepá seguia na proa, remando ao ritmo da correnteza favorável, enquanto Tawacã estava na popa, olhando as duas crianças acomodadas no convés da embarcação e ajudando o cunhado a dar impulso à canoa. Deixaram os arredores da aldeia sem trocar palavras, cada qual dentro de seus pensamentos, mas ambos ainda com as imagens nítidas nas lembranças como se estivessem caminhando entre os mortos. Waiãpi também estava envolta no transe dos adultos, enquanto a pequena Samcaxiki se mantinha avessa aos acontecimentos recentes, mas mesmo assim a tragédia não lhe passaria incólume. As pulsações do corpo da mãe, enquanto estavam caminhando na aldeia destruída, entraram em seu sangue e ficaram gravadas para sempre em seu espírito, embora os olhos não compreendessem o significado real de tanta matança.
         O caminho era envolto em silêncio e o menor alarido dos pássaros nas matas distantes era ouvido pelos navegantes, assim como o barulho dos remos em contato com água que ditava o ritmo da canoa. Yepá remava sem ímpeto de chegar a lugar algum, desejando apenas seguir viagem na direção da correnteza, deixando a embarcação ir em frente, na busca de qualquer destino ou na direção da morte, um lugar apropriado a quem testemunhara a destruição dos caboquenas. Tawacã também não pensava em nada. Sua cabeça estava ocupada demais em digerir as lembranças ainda recentes presenciadas pelos olhos.
         A realidade só retornou à embarcação quando Samcaxiki começou a soltar uns gemidos e foi engatinhando até o peito da mãe em busca do leite que lhe aplacaria a fome. O gesto da pequena serviu para trazer Tawacã e o tio ao mundo dos vivos, enquanto a irmã mais velha contemplava o rio Orowo com tanta intensidade que seus olhos penetravam nas águas escuras a ponto de ver os peixes se escondendo no lodo do fundo, como se a visão ganhasse o poder de enxergar muito além das aparências do mundo.
         Waiãpi pressentia a mudança radical da vida, embora sem compreender a extensão, apenas remoendo-se na certeza de ter perdido a aldeia onde nascera e vivera até então. Também se angustiava na mesma incerteza da mãe ao não ter encontrado o corpo de Monawa e acolher no peito a dúvida sobre se o pai morrera em combate, como um verdadeiro guerreiro caboquena, ou sucumbira à covardia de entregar-se vivo e ser levado como escravo à aldeia dos inimigos, onde a humilhação das surras, a vida presa ao cativeiro e a certeza da morte iminente, grelhado em noite de festa, tornaria o sangue dos descendentes menos honrado do que todos gostariam de ser.
         Era a figura de Monawa que atormentava os três índios conscientes do seu desaparecimento. Tawacã pensava nele como o homem que a raptou nas águas do Estreito e a fez esposa mesmo quando ele esteve prestes a sucumbir aos rigores da fuga nas entranhas do Marupá, ou então quando voltava das batalhas com os olhos tensos e os tremores noturnos que o faziam acordar na madrugada tentando se defender dos golpes dos inimigos, que continuavam fustigando-o mesmo muito tempo depois de terminada luta. A esposa queria vê-lo desempenhando bem o papel a ele destinado pela tradição dos caboquenas, mas agora, diante do destino indeterminado dele, ela só o via como o jovem guerreiro, ferido em combate nas muitas batalhas dos índios aliados, que um dia a agarrou pelos braços e suplicou-lhe a salvação, na cabana onde o pajé Nahpy tentava aplacar as dores dos combatentes derrubados no campo de luta.
         Yepá pensava em Monawa como o irmão caçula, sempre precisando de cuidado e atenção para não cair na água e se afogar, nos momentos quando a mãe dos dois os colocava no trapiche enquanto lavava a mandioca e extraia o veneno, deixando-a comestível. Ou então, já crianças maiores, sendo protegido contra as arrogâncias de curumins mais fortes e dispostos a conquistar pela força melhor posição na hierarquia do grupo infantil, e o pequeno Monawa precisava do apoio do irmão mais velho para não apanhar ou ser humilhado, fazendo Yepá entrar no confronto e por em ordem a situação do mais novo. Depois Monawa se acercava do irmão e fingia protege-lo com fanfarrice, contra meninos intimidados pela força alheia. O pequeno, quando aprendeu a nadar, quase se afogara nas correntezas do Orowo e fora salvo pela atenção providencial do maior, que mergulhou nas águas escuras, com o risco da própria vida e o resgatou já dos braços da morte.
         Diante de Waiãpi, Monawa aparecia envolto às lembranças do calor poderoso da pele do pai nas noites frias do Orowo, quando a umidade das chuvas torrenciais deixava tudo afogado no marasmo das redes entrelaçadas nas ocas. Neste momento, ele se transformou no pai zeloso, saindo para caçar e voltando com um catitu abatido em volta do pescoço, ou então quando desembarcava da canoa, depois de dias ausentes, com as enfiadas de sardinhas pescadas nos lagos escondidos pelos igapós do Puruzinho, sabendo ele trazer o peixe preferido da filha, e ela sentiu, neste momento, o sabor adocicado a recender-lhe na língua, espalhando-se pela boca e chegando ao nariz, fazendo com que a presença do pai se tornasse concreta a ponto vê-lo, muito nítido no espelho d’água, refletido pelo azul absoluto do céu nos fins de tardes.
         - Papai! Balbuciou Waiãpi, mas o som desta palavra ecoou por todos os cantos do mundo e por um momento a algazarra dos periquitos nas árvores das margens do Orowo silenciou como se da boca da filha de Monawa tivesse saído um trovão.
         Tawacã deu um salto em direção à filha mais velha, quase deixando cair na água a pequena Samcaxiki, que mirrava no seio. Ela segurou Waiãpi no colo e com apenas o olhar a interrogou sobre onde vira Monawa. A menina voltou os olhos à água, depois ergueu-os ao céu, também mirou as matas em volta e repetiu novamente a palavra papai, mas desta vez sem a dimensão espectral da primeira. A mãe abraçou a menina, sem deixar de dar de mamar à mais nova, mas seu corpo, no entanto, acariciava Waiãpi por sabê-la consciente da morte do pai, numa demonstração clara de que a pequena idade não interferia na grande maturidade adquirida nos poucos ciclos de águas já vividos.
         Remando na proa, Yepá se voltou espantado quando Waiãpi chamou pelo pai e assistiu Tawacã abraçada às duas crianças, enquanto nos rostos de todas só havia as expressões aflitas dos dramas anunciados a elas. O guerreiro viu o desespero da mãe diante da dúvida cruel sobre o futuro das crianças órfãs, sem o pai a protegê-las ou buscar comida, vivendo na custódia de outros pais na aldeia dos guanavenas que nem sequer tinha certeza de recebê-las. Yepá percebeu nos olhos de Tawacã as indagações que a atormentavam e decidiu neste momento não deixar a família do irmão sem amparo.
         - Eu assumo todas as obrigações de meu irmão, prometeu Yepá diante da cunhada e das sobrinhas, deixando a canoa deslizar suave na correnteza do Orowo, serpenteando as curvas do leito na vazante, enquanto no céu as últimas luzes do dia se despendiam deixando nas nuvens do horizonte uma coloração avermelhada.
         Antes do cair da noite, os quatro desembarcaram numa praia a fim de esperar o novo dia e descansar dos infortúnios vividos até agora, pois passaram por todas as provações mais cruentas impostas a alguém. Quem viu o que eles viram não esqueceria jamais, mesmo se tivessem os olhos arrancados ou o peito sem o coração. Yepá armou a cabana improvisada sem anúncios de chuvas e acendeu a fogueira com madeira colhida nas proximidades, que ardeu rápido devido à secura dos galhos e folhas e sem muito esforço, quando esfregou gravetos e produziur a chama. O fogo estava sendo mantido baixo pelo guerreiro, preocupado com a possibilidade de os muras estarem excursionando por perto, mas Tawacã o fez largar dos receios e pediu que ele jogasse mais lenha na fogueira.
         - Faça uma fogueira bem grande, meu cunhado! disse Tawacã. Porque quero esta praia tão iluminada como se fosse dia.
         - Os muras podem estar perto e seriam atraídos até aqui pela luminosidade, questionou o bravo.
         - Não tenho medo de mura nenhum, respondeu a índia determinada após ver toda a aldeia dos caboquenas destruída e os parentes mortos.
         O cunhado atendeu ao pedido de Tawacã e foi catar mais galhos, caminhando na praia, pouco iluminada pelas luzes tênues da fogueira e as do início da noite. Depois depositou a madeira em cima do fogo e esta logo crepitou, aumentando a intensidade das labaredas e deixando na escuridão um pedaço de sol. O aumento do fogo impeliu Yepá na busca de mais combustível, porque se Tawacã a queria grande, ele a faria imensa. O guerreiro trazia toras erguidas sobre a cabeça, com os braços alevantados, e as jogava com intrépido na pira, fazendo subir as faíscas muito acima das árvores e permitindo às labaredas incendiar o local com luminosidade delatora.
         As crianças olhavam sentadas no colo da mãe ao crescimento do fogo, tendo a pequena Samcaxiki achado graça diante da pirotecnia das fagulhas ganhando os céus e do estalar da madeira se partindo no calor das chamas. Waiãpi mantinha a expressão profunda, porque também no bruxulear das luzes continuava vendo a figura de Monawa, agora mais presente em espírito do que fora em carne, como se a falta do corpo do pai servisse para torná-lo maior, com a lembrança reverberando em todos os lugares. Yepá se entretinha na busca frenética por madeira, enquanto Tawacã continuava pensando na cruel possibilidade do marido estar sendo agora assado na aldeia dos muras.
         Mesmo sem ter o que comer nesta noite, ninguém se afligiu pela fome e apenas Samcaxiki encontrou disposição de se alimentar, permanecendo agarrada à mãe e mamando nos seios fartos, enquanto a irmã mais velha buscava o conforto das palhas entrelaçadas na areia para esquecer por algum momento as cenas assustadoras vistas nesta manhã. Quando estava com o corpo encharcado de suor, tanto pelo esforço descomunal de acender a maior fogueira do mundo, quanto pelo calor dela emanado, Yepá se banhou nas águas do rio, mas mesmo ali seu rosto ardia, como se a pele estivesse também em brasa, nas mesmas condições dos galhos jogados nas chamas. A índia o chamou para perto da cabana, onde o calor o faria secar rapidamente, mas esta medida se mostrou desnecessária, pois o guerreiro já saiu das águas do Orowo totalmente enxuto.
         Passaram a noite em sobressaltos, com a filha maior acordando todo momento, sem soltar gemidos, apenas se contorcendo em espasmos, como se os corpos dilacerados dos mortos a tivessem chamando para uma longa viagem, mas na realidade Waiãpi estava sonhando com o pai, nadando os dois em um lago de águas escuras. A filha caçula também acordou muitas vezes durante a madrugada, mas Tawacã a entretinha com o peito e a fazia dormir. Já os dois adultos não conseguiam adormecer porque, sempre que fechavam os olhos, as imagens dos cadáveres destroçados chegavam para atormentar-lhes o sono.
         Antes das primeiras luzes do amanhecer, as chamas ainda se erguiam muito acima da altura de Yepá e ele se pôs de pé, ansioso pelo o raiar do sol. O guerreiro queria prosseguir na viagem até a ilha Saracá. Como sempre fazia, se dirigiu às margens e se banhou nas águas tépidas do rio Orowo, buscando refazer-se das forças perdidas na luta para manter acesa a fogueira imensa. Depois foi até as franjas da mata catar algo de comer e encontrou um cajueiro carregado com frutas maduras e as colheu em abundância, levando-as para a primeira refeição de sua nova família.
         Quando retornou à cabana encontrou Tawacã se banhando com as crianças no rio e sentiu pela primeira vez a responsabilidade de dar de comer a bocas que não eram a sua, pois sempre vivera na solidão, seja perdido na imensidão das matas ou nas caçadas por territórios estranhos, sem jamais se prender em um único lugar. O bravo sempre fora independente e obstinado, aprendera a sobreviver sozinho em longas viagens por terras distantes, buscando a amizade de povos desconhecidos e conquistando a confiança de quem o acompanhasse, mas agora estava incumbido de assumir o posto do irmão como provedor da família e logo na primeira oportunidade trazia cajus deliciosos, com os quais sustentaria a cunhada e as sobrinhas.
         Elas comeram com aptidão, embora os olhos guardassem a tristeza do dia anterior, mas precisavam se alimentar, principalmente Tawacã, que amamentava a pequena Samcaxiki e esta estava alheia às dores dos parentes. Waiãpi comeu a primeira fruta, vermelha pelo sol, e ficou brincando com a semente, arrastando-a na areia como uma canoa singrando as águas do Orowo e seus pensamentos se transportaram para bem distante, até a fome acusar e ela pegar outra fruta na casca de pau que servia de paneiro. Comeu esta também e ficou com as duas sementes na mão, pensando longe, em terras onde nunca pisara, mas ouvira o pai contar quando retornava à aldeia depois de dias ausente.
         Após esta refeição, Yepá preparou a canoa para a partida, pois pretendia chegar à ilha Saracá no meio da tarde, quando os ventos não estavam mais atormentando a boca do rio no encontro com o lago Canaçari e dificultando a viagem de quem pretendia aportar pelos lados do Estreito. Seria uma viagem fácil nas primeiras horas da manhã, mas quando o sol atingisse o centro do céu os ventos jogariam os banzeiros contra a canoa em açoites de águas perigosas, e a embarcação sob comando inepto corria o risco de naufragar. Yepá estava preocupado, pois se acostumara a ludibriar as intempéries do Orowo por caminhos protegidos entre os igapós, mas a vazante não lhe dava esta opção de rota e só lhe restava seguir no meio do rio estreito, exposto aos ventos do Canaçari, nesta época varrendo adoidados a superfície das águas.
         Partiram em navegação suave, com Yepá na proa e Tawacã na popa, mas agora os dois remando em ritmo constante, com disposição de chegar na ilha Saracá, levando a notícia que transformaria toda a sociedade das tribos aliadas. Uma tribo inteira estava dizimada e isto estabelecia nova ordem de poder, com medidas a serem tomadas de urgência pelos bravos. A guerra se alastraria pela região, com os muras tentando levar a vingança às outras aldeias, e guanavenas e bararurus dispostos a revidar o sangue derramado dos caboquenas. Sem se dar conta de estarem pensando os mesmos pensamentos, os remadores aceleraram o ritmo, impulsionados pela necessidade de saber se a horda dos muras talvez já não tivesse chegado à ilha Saracá.
         A tensão aumentava conforme se aproximavam e Tawacã deixou cair uma lágrima quando sua terra se mostrou por fim de vislumbre na curva do rio. A índia a avistou primeiro que Yepá porque estava num plano mais elevado da embarcação, mas o índio sentiu a mudança de ritmo das remadas da cunhada e se virou para observar, vendo no rosto dela um sorriso estranho, como se grande alegria quisesse saltar do espírito, mas os grilhões da tristeza a mantivessem aprisionada nas entranhas do corpo. Num reflexo rápido, Tawacã passou as mãos no rosto, no entanto, o gesto foi inútil: a cara estava lavada das águas do Orowo atiradas pelo vento.
         O sol passara às costas dos navegantes quando a ilha se mostrou inteira e a visão imponente dos barrancos, cobertos de verdes diversos das matas, foi um alívio a Tawacã e a família, tanto pelo fato de se sentirem no final da viagem, quanto por não estarem os urubus sobrevoando os céus da ilha. Yepá seguiu rápido ao contorno do Estreito, procurando melhor meio de vencer as correntezas e se manter protegido pela terra, mas antes teve de se desviar de um amontoado de pedras mostradas na grande vazante desse ciclo de águas. A cunhada já ouvira o pai falar sobre essas estranhas formações, que apareciam somente quando a seca era intensa, e não quis perder a oportunidade de observá-las de perto, pois em toda a vida, esta era a primeira vez que o fenômeno acontecia.
         O guerreiro aproximou-se com cautela das rochas, receioso da possibilidade de feras estarem descansando no dorso, principalmente jacarés em busca de refúgio contra o sol da estação, mas a canoa logo deixou de encontrar calado e parou de navegar, presa às pedras do fundo raso. Yepá desembarcou cuidadoso, mas Tawacã pôs os pés no rochedo com grande segurança, como pássaro acostumado a empoleirar-se nas alturas, ansiosa por confirmar a história ouvida de Nahpy: que ali estavam desenhados sinais de um povo antigos e que a pegada do último homem dessa raça estava encravada na pedra.
         A índia testemunhou deslumbrada a verdade contada pelo pai ao encontrar rabiscos na parede lisa da pedra, mas não soube explicar o significado daquilo, embora estivessem em tal ordem que poderiam ser reproduzidos e levados dali a outros lugares e outros povos. Também achou a pegada escondida em outra ponta de pedra, e pôs os próprios pés no lugar para tomar-lhe a medida e soube que o dono da pisada era um grande guerreiro, pois ficou com as duas pernas assentadas com folga no espaço onde estava marcado apenas o calcanhar do homem. As crianças ficaram na canoa, observadas de perto por Yepá, mas Tawacã fez questão de mostrar os sinais às filhas, atraindo assim a curiosidade do índio, e este se dispôs, mesmo contra sua vontade, a ver sem o mesmo espanto aquilo que a cunhada olhava com tanto assombro.
         O sol iniciava o caminho rumo ao poente quando, por fim, Tawacã foi convencida a deixar as pedras e seguir viagem até a ilha, onde já deveriam chegar na boca da noite, devido ao atraso imposto pela vontade da índia em explorar o rochedo, tão raramente mostrado à curiosidade das gentes. Antes de sair, ainda impôs a condição ao cunhado de voltar o mais rápido possível ao local antes da enchente encobri-lo e exibi-lo sabe-se lá quando. Yepá concordou somente para não retardar ainda mais a viagem, até porque nada ali despertara seu interesse, uma vez que já vira coisa semelhante, mas sem o mesmo fascínio imposto à índia, pelas muitas andanças nas brenhas das florestas.
         Para ganhar tempo, pararam na comunidade do Estreito, onde Tawacã tinha alguns parentes, avisaram sobre o ataque fulminante dos muras à aldeia dos caboquenas e do iminente confronto desses índios com a tribo dos guanavenas. O restante da história eles contaram enquanto passavam ao largo do canal, dizendo através de gesto para terem cuidado porque os inimigos poderiam tentar a desforra a qualquer momento.
         Nos primeiros nuances da noite aportaram na praia em frente à aldeia de sua gente e Tawacã desembarcou muito antes da canoa encostar na areia. Ela saltou na água e afundou até a cintura, correndo em seguida, pois sua vontade de contar o massacre não permitiu à paciência o controle das emoções. As filhas também pularam no colo da mãe e se agarraram como puderam nos ombros e nos cabelos da índia, mas ela sequer sentiu o peso extra e continuou empurrando a embarcação o mais rápido possível até a beira, sendo ajudada agora por muitos curumins que brincavam na praia e vieram socorrê-la, transformando aflição em alvoroço e deixando Tawacã seguir célere, com as duas filhas no colo e sem marido, à aldeia dos guanavenas.
         Não precisou despender grande esforço, pois Byrytyty a viu de longe e veio ao encontro correndo, pegou Waiãpi no colo e, neste momento, a irmã mais velha percebeu o quanto o caçula estava crescido, parecia um gigante carregando a sobrinha nos ombros, enquanto o resto da meninada pulava ao seu redor, tentando pegar nos pés da criança, mas sem conseguir alcançá-los devido à altura onde estavam. As percepções do jovem guerreiro, recém saído do ritual de passagem à vida adulta, ainda não estavam aguçadas a ponto de fazê-lo perceber algo estranho no caminhar perturbado da irmã, por isso continuou caminhando alegremente com a criança no colo, mas não passou despercebido por Aiauara, que conversava um pouco mais adiante com outros bravos e foi avisado por um deles da aproximação da irmã.
         Aiauara se virou como felino e foi ao encontro de Tawacã, acelerando o passo quanto mais próximo ficava dela, tanto que já estava correndo veloz no momento quando chegou junto da irmã e tomou Samcaxiki nos braços, no instante exato em que ela desmaiava na areia. Só neste momento Byrytyty percebeu o estado aflitivo de Tawacã e soltou Waiãpi para socorrê-la. Ele a pegou nos braços e a ergueu sem dificuldade com sua força imensa. Tawacã desapareceu no colo como se fosse outra criança, igual a que ele brincava instantes atrás, com a mesma criançada correndo a sua volta. Yepá foi atrás, mas Byrytyty estava muitos passos a frente para ser ultrapassado, restando ao cunhado apenas carregar Waiãpi no colo, pois a menina fora abandonada na praia quando se instalou o alvoroço. No entanto, chegaram todos ao mesmo tempo na cabana onde estavam Xirminja e Nahpy, e o pajé só pensou no pior ao ver os filhos se aproximando, mas faltando entre eles Matepi.
         - Cadê Matepi? quis saber Nahpy.
         - Onde está a minha filha? gritava Xirminja.
         Todos se viraram em direção a Yepá e o caboquena ia começar a falar quando Tawacã despertou do assombro e balbuciou algumas palavras, arrastando a atenção de todos a ela como se dela dependesse a revelação da verdade do mundo. Byrytyty entregou a irmã ao pai e Nahpy a acomodou na rede próxima, ordenando à multidão de curiosos para se afastar porque Tawacã precisava respirar ar com intensidade. Depois colocou uma folha de capeba em sua fronte, aplicou óleo em volta das narinas e o olor forte do ungüento ajudou a índia a despertar, mas ainda num estado de torpor que de nada adiantava o pai perguntar insistentemente por Matepi.
         Aos poucos Tawacã foi retornando ao mundo e ao perceber-se em volta da família ganhou confiança suficiente e, em fim, caiu no choro dolorido, contando a todos os detalhes da tragédia ocorrida na aldeia Maquará, onde vivera tanto tempo como esposa de Monawa, entre os parentes deles e as filhas nascidas e criadas como caboquenas. Ela falou em prantos da sorte da irmã caçula, provavelmente aprisionada pelos muras, ainda doente pelo parto difícil e abalada com a morte da criança. Falava e mais lágrimas escorriam do rosto, lavando a cara maltratada por tantos dias de viagens sob o sol causticante da vazante feroz, quando nenhuma árvore pode socorrer com sombra aos navegantes. Contou os momentos terríveis quando caminhou entre muitos cadáveres, despedaçados e decompostos, e teve de enxotar os urubus para deixarem tranqüilos aos mortos, numa narrativa macabra que as palavras confundiam aos muitos ouvintes em torno da oca e eles se perguntavam se Tawacã estava falando sobre fatos ou se simplesmente contava um pesadelo.
         A índia revelou tudo aos guanavenas e estes ficaram a noite inteira escutando a história da vingança mura contra os caboquenas, com os detalhes entrecortados de soluços e pelo choro compulsivo da testemunha. Ela iniciava a narrativa e muitas vezes teve de ser amparada pelos pais devido aos desmaios freqüentes, quando precisava contar os cenários mais medonhos, ou explicar em detalhes como se encontravam os corpos, chegando a lhe faltar ar quando disse ter identificado o cadáver de Meyki, sem a cabeça. Depois retornava à consciência, recebia afagos dos parentes e soltava o choro largo, gritando desesperada pelo marido desaparecido e pela sorte das filhas pequenas, mesmo depois de Yepá ter se comprometido em assumir o lugar deixado vago pelo irmão.
         O dia começou a clarear e a tribo continuava reunida em torno de Tawacã, agora dormindo sono de pedra, mas era como se estivesse caminhando de ilha em ilha, porque da mesma forma como adormecia, acordava aos prantos, atraindo todos ao seu redor, curiosos em ouvir ela contar a destruição dos caboquenas, explicando que a aldeia fora toda incendiada, que em frente da grande oca das famílias, crianças e mulheres tombaram diante da fúria dos inimigos, que as plantações de mandiocas foram arrancadas pela raiz para nunca mais nascer um roçado na terra arrasada pelos muras e que no céu a escuridão se tornou perpétua, tanto pelos urubus quanto pela desgraça lançado contra a aldeia Maquará.
         Depois voltava a dormir, se refugiando das angústias na placidez dos braços paternos embalando o sono, mas os soluços entrecortavam a calma e os espasmos de corpo denunciavam mais tormentos. As febres assolavam a paz de Tawacã assim como as tempestades do Canaçari se batiam nas costas da Demanda, e iam minando a determinação da índia de continuar vivendo. Ela soltava gritos desesperados, ecoando por toda a ilha Saracá, e virava a cabeça com violência, talvez querendo exorcizar os maus espíritos que a perseguiam. Em seguida vieram as convulsões e o vômito, aquoso pela falta de alimento sólido. Depois o desmaio, do qual só seria resgatada muitos dias após, com Nahpy usando todo os conhecimentos na tentativa de salvar a filha amada.

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