segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Capítulo 25 - Tocaia dos Mortos

          TAWACÃ DEU UM GEMIDO LANCINANTE E PRONTO, SEU FILHO NASCEU SOBRE AS PALMAS COLOCADAS por ela mesma momento antes, entre as raízes de uma acapuraneira, na praia do Mucajatuba, olhando o imenso vazio do Canaçari que se retirara em outra vazante de grande intensidade. O menino começou a chorar logo depois de deixar as entranhas da índia e ela o recolheu com cuidado extremo. Em volta do pescoço dele se enrolara o cordão umbilical, mas não o estrangulou neste momento crítico. A mãe levou a criança até uma cacimba cavada na praia e o lavou com água fria da fonte, sob o forte calor do dia, e então o recém-nascido parou de chorar e procurou os seios da mãe, que lançou jatos de leite na cara dele, fazendo-o experimentar o conforto que o acalmou no mesmo instante.
         Mãe e o filho se recuperaram do esforço do nascimento e Tawacã procurou a proteção das sombras das árvores, onde contemplaria a nova vida que dera à tribo. Depois saiu caminhando em direção da aldeia dos guanavenas e logo encontrou o pai e o marido vindo até ela, e eles foram rápidos em alcançá-la. No início, Tawacã não quis entregar a criança aos homens, se limitando a deixar Yepá apenas passar-lhe o braço pelo ombro, enquanto este não continha a curiosidade em saber o sexo do recém-nascido.
         - É um menino, disse Tawacã ao marido sem este lhe fazer pergunta.
         O pajé não conseguiu conter a satisfação de enfim a filha ter lhe dado um neto, depois de parir duas meninas geradas pelo sangue de Monawa. Nahpy examinou pessoalmente o menino até se certificar, ficando extasiado ao ver o pênis da criança, ainda roxo pelo esforço do nascimento, mas avantajado, sem parecer ao de recém-nascido, e deixou-se comover pelo orgulho de seus descendentes serem sempre saudáveis e de grande virilidade.
         - Ele se parece com Aiauara quando este nasceu, comentou o avô, procurando realçar a superioridade da própria linhagem.
         - Ele é mais parecido com Yepá, contestou Tawacã, dando satisfação ao pai.
         - Seu marido tem bom sangue, por isso gerou menino, disse o pajé, deixando os parentes constrangidos. A todos ainda era muito viva a lembrança de Monawa, a quem as palavras do pajé davam a entender ser um fraco, incapaz de produzir varão.
         Os três se dirigiram à aldeia e, quando lá chegaram, Tawacã foi descansar na rede, sob a proteção da grande oca familiar, juntamente com a criança. Xirminja estava preocupada com a filha, porque ela continuava a sangrar, mas o pajé estancou a hemorragia em poucos dias com grandes baforadas de tabaco sobre o corpo da parturiente e em breve ela se recuperou plenamente, ainda mais quando Yepá preparou um caldo de piranhas e deu à esposa, colocando grande punhado de farinha. Os seios de Tawacã não paravam de jorrar o leite e a criança mirrava com grande gula, deitado sobre o peito da mãe, enquanto toda a família se desdobrava em cuidados a ambos.
         Yepá colocou o nome do filho de Apenaxe, explicando que o menino era a renovação de sua tribo, o primeiro a nascer depois da tragédia levada a cabo pelos muras, e Nahpy concordou com a intenção do caboquena, embora sempre insistisse que seus descendentes tivessem nomes guanavenas. Yepá se mostrava orgulhoso e gostava de sair para longas caçadas, trazendo muitos animais abatidos pela pontaria certeira de sua flecha e deixando admirados aos demais índios por causa da enorme habilidade em andar pela floresta sem perder o rastro de nenhuma presa. Quando saía para pescar, também dava provas de ser bom provedor da família. Voltava sempre com fartura de peixes que serviam de alimento a todos os parentes da esposa.
         O prestígio de Yepá crescia junto aos guanavenas assim como a influência de Tawacã sobre as gentes, tanto que depois de dar à luz ao filho suas obrigações de guardiã do conhecimento passaram a ser mais destacadas por Nahpy. O pajé dava pouca importância às reticências de Taobara, vivendo agora as agruras do isolamento causado pelo descrédito em sua liderança. O casal fortalecia a posição na tribo sob a orientação de Nahpy e o pajé contestava abertamente as posições do irmão, ameaçando diversas vezes convocar o conselho dos anciões para discutir as práticas adotadas pelo cacique, tanto na tentativa de aliança com os muras, que deu oportunidade aos inimigos ancestrais dizimar os caboquenas, uma tribo aliada, como também pela falta de ação a fim de cumprir os termos dos acordos que obrigavam guanavenas e bararurus a responder com guerra à ofensa praticada contra a aldeia Maquará.
         Apesar de colocado no centro dessa questão, por ser caboquena, Yepá pouca importância dava as conversas, mesmo quando cobrado pelo sogro a cobrar de Taobara postura condizente à liderança guerreira. No entanto, o caboquena se ocupava mais com a família, saindo para caçadas e pescarias na companhia de Aiauara e Pikiwaha, embora os primos estivessem bem próximos da ruptura devido às desavenças dos pais. Neste momento, a amizade entre eles se mantinha por força dos vínculos firmados ao longo da vida em comum desde quando nasceram. Yepá era o elo entre os dois e as vezes ouvia as conversas de ambos enquanto navegavam por lagos e igapós, a caminho dos melhores locais de pescaria, mas não tomava parte na discussão, mesmo sendo convidado com insistência a opinar sobre diversos assuntos de interesse dos primos, mas tergiversava alegando tratar-se de polêmica que dizia respeito apenas aos guanavenas.
         - Tu és um dos nossos, disse certa vez Aiauara ao cunhado, na tentativa de convencê-lo a tomar partido num assunto dos primos, mas o caboquena se desvencilhou e mudou o rumo da conversa, se socorrendo em algum ruído ouvido na mata, ou o esturro de uma onça na distância dos igapós que somente seu ouvido era capaz de captar.
         Quando retornava à ilha Saracá trazia a abundância de caça, pesca e frutas e deixava tudo no giral da taba, se dirigindo rápido até onde estivesse Tawacã e Apenaxe com intuito de ficar perto do filho. O menino crescia com saúde plena por causa da boa alimentação da mãe, os cuidados de Xirminja e a proteção xamânica de Nahpy. Neste momento, o caboquena pegava a criança no colo e a agasalhava entre os braços, depois cheirava a cria para descobrir algum tipo de ameaça e sorria maravilhado quando recebia outro sorriso em resposta aos carinhos. Yepá se desfazia em agrados no filho a ponto de Tawacã querer tomar-lhe dos braços. O impulso de proteção maternal da índia era para impedir o pai de machucar a criança. Mas o casal também se divertia nestas situações e o amor entre eles se fortalecia na necessidade mútua.
         Nahpy envolvia a filha sempre com mais freqüência nas práticas da cura e Tawacã, em muitas ocasiões, substituía o pajé nas obrigações aos doentes, ficando a cargo do pai somente os casos mais graves, quando era necessária muita arte de curandeirismo para vencer os espíritos maus. A índia aprendia novos remédios e ouvia as histórias do pajé, repassando os detalhes do conhecimento e da cultura guanavena. Ele entregava a ela a responsabilidade de contar aos novos membros da tribo a aventura dos ancestrais na ilha Saracá. Suas filhas estavam sempre em volta, em brincadeiras nas quais imitavam as atividades dos adultos, e Apenaxe no colo, mamando as tetas dela com gana de crescer, talvez adivinhando que na barriga da mãe estava sendo gerada outra vida e sua rica fonte de alimento teria de ser dividida. A gravidez se anunciou em Tawacã em forma de tonturas, mas logo estava repleta de sensações melhores pela certeza de dar outro filho a Yepá.
         Foi época de grande proficuidade na família do Nahpy, com Tananta também engravidando depois de passar dois ciclos de água sem parir nenhum descendente de Aiauara, mas agora estava no mesmo estado da cunhada e com possibilidade das crianças nascerem em dias próximos. A segunda gravidez levou Yepá aos limites da glória, colocando-o mais próximo do primogênito com quem passava longo tempo nos braços, temendo antecipado quando teria de dividir o amor entre os dois filhos. O pai compensava agora Apenaxe com bastante carinho e atenção, mas um dia quase matou a esposa de susto quando atirou o menino para o alto e o agarrou com as duas mãos, recebendo de volta um sorriso que o fez ver toda a grandeza de ser pai.
         Byrytyty se mantinha desinteressado da situação familiar. Estava preocupado em tomar parte nos jogos de brigas dos guerreiros de sua idade, na flor da vitalidade exacerbada pela juventude. Os jovens bravos praticavam a arte da guerra, embora a situação política das tribos aliadas indicasse período de tréguas, devido ao extermínio dos caboquenas, mas nunca era sensato baixar o estado de alerta contínuo, tal era a preocupação com o possível ataque dos inimigos. No entanto, a esperada batalha contra os muras não ocorreu e Taobara aproveitou para tentar convencer a tribo de que ela não se realizou por conta do acordo com o cacique dos muras. Mesmo assim, sua gente o olhava com desconfiança e muitos deixaram de acreditar nas palavras do maioral desde quando a promessa de trazer Matepi de volta da aldeia de Itacoatiara não foi cumprida.
         O período de paz relativa já durava bastante tempo e os aliados começaram a afrouxar o estado de alerta, com muitos deles já retornando em definitivo às comunidades mais distantes da ilha, inclusive com o restabelecimento de moradores no Puruzinho. Guanavenas e bararurus tinham mais terras para ocupar, mas mantinham um afastamento reverencial ao território do rio Orowo, deixando assim de explorar enormes recursos em peixes e caças. O leito desse rio passou a ser território de peregrinação somente de Yepá. Ele não conseguia se desvencilhar das raízes e também acalentava o sonho de ver restabelecido o povoado, no antigo território onde colhia frutas com fartura e levava aos parentes na ilha Saracá.
         A fertilidade dos índios se evidenciava na quantidade de mulheres grávidas, mas notícias ruins também circulavam entre as tribos, espalhando pesares e preocupações àqueles cujo destino dependia de alianças seladas. Por isso, foi com espanto que Taobara recebeu a notícia da morte de Jauaraçu, o cacique bararuru, sempre fiel aliado do maioral dos guanavenas, que não resistiu aos avanços de idade e se deixou abater por diversas doenças contra as quais o pajé de sua tribo não conseguiu derrotar. A notícia enfraqueceu Taobara, que perdera o único amigo capaz de lhe prestar apoio caso a situação entre os guanavenas se tornasse delicada e a liderança fosse posta definitivamente em dúvida. O cacique foi falar com Nahpy sobre a situação na aldeia, levando consigo Pikiwaha a quem pretendia fazer sucessor, mas o pajé lhe negou o voto de confiança e ainda o fez ver que, se os bravos guanavenas rejeitassem a liderança de Taobara, receberiam seu apoio.
         - Tu queres é colocar teu filho Aiauara no meu lugar, disse Taobara ao irmão, irritado com as recusas do pajé em usar da influência junto à tribo para revigorar-lhe o poder sobre os guanavenas.
         - Foram os teus erros que te levaram ao descrédito perante tua gente, respondeu Nahpy ao cacique, mas este se mostrava incapaz de ver a situação por este lado, acreditando em tramas e conchavos praticados pelo irmão para depô-lo da liderança da tribo.
         Pikiwaha não pode contestar as observações do tio, pois também acreditava na justeza do pajé, mas não poderia confrontar o pai e nem deixá-lo sem apoio, por isso segurou Taobara pelo braço e o convidou a deixar a conversa com Nahpy, de quem eles não conseguiriam conquistar a credibilidade. Pai e filho deixaram a cabana do pajé e seguiram ao encontro dos guerreiros fiéis ao cacique, para traçarem novos planos diante da situação de racha no comando dos guanavenas. O maioral acusava o irmão de tramar sua derrota, usando o conhecimento para minar a autoridade do cacique e colocar o filho dele no comando da aldeia.
         - Se não quiser elevar Yepá à condição de maioral dos guanavenas, alertou Waripa, o guerreiro mais próximo do cacique e de quem Taobara sempre ouvia os conselhos.
         O cacique enfim abriu os olhos à figura de Yepá, cujo prestígio crescia entre os guanavenas à medida que se mostrava valoroso caçador e hábil pescador e, mais ainda, por reproduzir filhos com a fecundidade das cotias em Tawacã, que agia cada vez mais à frente dos assuntos da aldeia. Taobara passou a perceber o crescente poder do casal e viu como as articulações de Nahpy se direcionavam para esta possibilidade, embora Aiauara ainda fosse forte concorrente caso o conselho dos anciões decidisse pela destituição do maioral. Ele mandou Pikiwaha vigiar o primo mais de perto e tentar arrancar-lhe algum segredo de tramas, aproveitando-se da condição de amigos para saber das reais intenções do filho do pajé.
         - Aiauara é irmão e sempre demonstrou respeito por meu direito natural a tua sucessão, disse Pikiwaha ao pai, embora nos últimos tempos algumas rusgas tenham se revelado entre os primos, o que mais parecia ser uma tentativa de Aiauara em se libertar da influência do parente.
         Yepá foi quem se tornou o alvo das preocupações de Taobara desde a observação pertinente de Waripa, a partir de quando o cacique não deixara de manter restrita vigilância no guerreiro caboquena. A tarefa não era fácil, principalmente se ia sozinho pescar nas distâncias do Orowo e só podia ser monitorado quando acompanhado dos novos parentes, ocasião cada vez mais rara. Nos momentos em que estavam juntos, Pikiwaha conversava sobre disputas políticas, mas atraía apenas o interesse de Aiauara, cujo discurso endurecia quanto mais cacique e pajé se distanciavam nas idéias de como comandar os guanavenas. Yepá se mantinha protegido na neutralidade, escapando de perguntas ardilosas com respostas difusas que mais semeavam dúvidas no filho de Taobara do que certezas de intenções.
         O bravo Pikiwaha era pressionado pelo pai a descobrir os planos de Yepá, mas o caboquena parecia não possuir outra ambição a não ser cuidar da família, se mostrando indevassável às perscrutações do parente, tanto que encontrava respostas sutis e continuava a escapar pelos desvios de palavras escorregadias, não permitindo ao interlocutor levar qualquer opinião formada a Taobara. Pikiwaha se aproveitava de todas as oportunidades para interrogar Yepá, chegando a ponto de perguntar abertamente se o caboquena algum dia já ambicionara ser cacique.
         - Só se for cacique de mim mesmo, respondeu Yepá. Sou o único representante de minha gente.
         Esta resposta colocou mais dúvidas na cabeça de Taobara. Ele entendeu como pretensão velada de Yepá em conquistar o apoio dos guanavenas e assumir a liderança da aldeia, apoiado nas forças místicas de Nahpy e Tawacã e com respaldo dos cunhados Aiauara e Byrytyty. O filho caçula do pajé exercia forte influência entre os novos guerreiros, principalmente com aqueles que haviam passado pelo ritual de consagração junto com ele e formavam a maior parte das fileiras dos guanavenas. Os jovens bravos estavam ansiosos em participar dos primeiros embates. Era com a ansiedade dos jovens em guerrear que o cacique contava na defesa das posições políticas, mas o sobrinho Byrytyty estava longe de sua influência e se mostrava independente e arrogante, reconhecendo-se liderança entre os guerreiros e fazendo questão de evidenciá-la em todas as ocasiões.
         Apesar da pouca idade, Byrytyty já mostrava boa diferença de altura entre e ele e Aiauara e até mesmo com relação ao pai, com corpo forte o bastante para reivindicar a si qualquer posto de comando. Era o valentão entre os bravos solteiros e recebia olhares de meninas interessadas em despertar-lhe o amor no coração, mas o máximo que conseguiam dele era uma aventura dentro da água ou nas praias distantes. Seu interesse estava completamente voltado nas questões de guerra, embora o pai pouco o ouvisse e menos ainda lhe falava das tramas articuladas entre os grupos da tribo. Mas o jovem guerreiro estava predestinado a conquistar o direito de se fazer ouvir entre os bravos guanavenas, mesmo sendo solteiro e sem nunca ter participado de nenhuma batalha.
         Nas conversas entre os jovens havia aqueles que defendiam as posições de Taobara, afirmando que o cacique fora sábio e astuto quando evitou o ataque aos muras, preservando assim a integridade da aldeia. Byrytyty rebatia essas idéias, contestando abertamente a posição do tio, a quem acusava de se acovardar diante do inimigo e não ter prestígio com Muruuaca, mesmo sendo agora aliado, porque não trouxe Matepi de volta à ilha Saracá. Seus companheiros defendiam as palavras de Byrytyty, acrescentando ainda mais injúrias a Taobara, e os aliados do cacique se calavam. Estavam em minoria e era melhor evitar o confronto com o forte filho do pajé, que muitas vezes usava da compleição física para intimidar e fazer valer seu ponto de vista.
         - O cacique está velho e seu coração não carrega mais a coragem de antes, comentou Byrytyty, fazendo uma acusação que somente poderia sair da boca audaciosa do jovem, de cuja destemperança verbal qualquer coisa seria dita sem pensar nas conseqüências futuras.
         Estas palavras mal saíram da boca de Byrytyty e já estavam sendo sopradas no ouvido de Taobara. O cacique as interpretou como proferidas pelo pajé, porque não supunha ousadia do sobrinho em contestar-lhe tão abertamente a liderança dos guanavenas. O cacique se aconselhou com Waripa e este lhe recomendou tomar conta de toda a família de Nahpy, inclusive das mulheres. Eles viam a traição sendo preparada em todos os cantos da grande oca familiar, articulada principalmente pelo irmão do maioral. Taobara se fechava cada vez mais no círculo íntimo de seus guerreiros e perdia força justamente no grupo dos jovens, que era mais numeroso, estava ansioso por briga e cujo líder questionava com arrogância sua posição. O cacique precisava atrair esses jovens às suas fileiras, mas não encontrava inimigos para atiçá-los e então resolveu procurar entre o próprio povo os responsáveis pelas desgraças atuais.
         O desespero fez Taobara se movimentar na direção errada e assim voltou os ataques primeiro a Yepá, o sobrevivente caboquena, espalhando o boato de o mesmo ter traído sua tribo, num acordo imoral com Muruuaca para conquistar a liderança de Meyki, mas tudo deu errado porque os muras não são de cumprir acordo e dizimaram todos aqueles que seriam comandados pelo bravo. Os guanavenas não deram crédito à primeira leva de boatos, pois sabiam que Yepá saiu de sua aldeia para representar os caboquenas na tropa que protegeu a ilha Saracá do possível ataque dos muras. E logo outras conversas davam conta de Yepá ter articulado sozinho a aproximação de mundurucus e saterês, trazendo essas duas tribos para a aliança com Meyki e os outros caciques, resultando numa guerra da qual todos saíram derrotados. Outra vez os defensores do caboquena rebatiam essas inverdades, explicando que Yepá só havia prestado um serviço ao seu maioral, cuja ambição e despreparo na guerra deram no resultado fatal à aldeia Maquará.
         Yepá procurava não dar ouvidos às injúrias lançadas contra ele e se protegia delas com caçadas e pescarias solitárias nos igapós inextrincáveis do Marupá. Ou então nos lagos abundantes do Purema, onde sempre conseguia a melhor caça e os mais graúdos peixes, para serem oferecidos aos parentes da esposa. O caboquena era hábil em pescar tambaquis do lombo amarelo, de sabor apreciado entre os guanavenas, e também pirarucus enormes, os quais muitas vezes tinham de ser transportados em mais de uma canoa, tal a dimensão do bicho. Ele havia percebido a vigilância realizada pelos homens de Taobara, que não largavam do seu encalço, mas ludibriá-los era fácil na imensidão dos rios, principalmente no ápice da enchente, quando inumeráveis furos de lagos surgiam por toda parte e serviam como labirinto para escapar de perseguidores, mesmo os mais experientes na arte de espreitar o inimigo sem despertar suspeitas neles.
         O caboquena em diversas ocasiões revertera a situação na qual passara a ser ele o observador daqueles que o seguiam, plantando pistas falsas e levando-os a locais perigosos, onde podiam facilmente se encontrar com sucuris habitantes dos aningais alagados ou mesmo uma onça nas proximidades das nascentes, rastreando passos enganadores, todos eles levando a nada. Yepá conhecia a rota dos enviados de Taobara e deixava-os perdidos nos rincões da floresta, pois suas pegadas não ficavam gravadas na terra fofa de humo da mata, mas sim nos galhos mais elevados das árvores, se locomovendo igual aos macacos para escapar dos inimigos.
         Deixou de receber convites de Aiauara e Pikiwaha, porque os primos já não compartilhavam os mesmos grupos nas caçadas ou pescarias, intrigados pelas disputas políticas entre seus pais. Yepá preferia seguir sozinho, achando mais fácil se desvencilhar dos perseguidores e não deixava o cunhado saber que ele estava sendo seguido por homens do cacique. As insistências de Pikiwaha se tornaram mais freqüentes, mas o caboquena evitava este até com mais ênfase, não permitindo que conhecessem seus passos justamente aqueles que não conseguiam acompanhá-lo. A esperteza do marido de Tawacã o mantinha protegido das artimanhas do cacique, mas a continuação dessa vigilância inoportuna o estava fazendo perder a paciência e obrigando-o a tomar providências no sentido de cessá-la.
         Yepá percorria agora terras mais afastadas, chegando mesmo a entrar no território dos muras para escapar daqueles que não saíam do encalço. Era preciso estar atento e não deixar marcas de passagem nos caminhos. Até um ramo arrancado poderia denunciar os rumos do caboquena. Ele muitas vezes cruzava a estreita faixa de terra separando o lago Canaçari do grande rio Amarelo, e ia pescar nas piscosas margens pertencentes aos inimigos mortais, onde poderia se sentir protegido da espreita dos guanavenas, embora se expusesse ao perigo mais terrível de se encontrar com os muras, desde que ficasse livre dos muitos olhos de Taobara.
         Foi justamente esta acuidade em se proteger dos inimigos que salvou Yepá do encontro mais terrível de sua vida, superior até ao qual quando esteve cara a cara com a morte, ao ser capturado pelas índias guerreiras. O caboquena estava sentado num tronco caído no grande rio Amarelo, pescando jaraqui de anzol sob a sombra abundante de uma samaumeira quando seus ouvidos escutaram a aproximação de algo na superfície das águas, movendo-se em ruídos tão largos que logo o fizeram crer não tratar-se dos muras, pois estes andavam de forma sorrateira até na proteção das ocas. Eram três jangadas grandes, feitas de boas toras das várzeas, com diversos guerreiros, diferentes de todos os que Yepá havia visto nas peregrinações pela selva. Estes tinham o rosto tomado de cabelos, de cores amarela e vermelha. Os corpos eram cobertos com folhas inexistentes nas matas por onde andara o guerreiro andarilho. As embarcações se aproximaram da margem onde pescava o caboquena, passando tão perto dele que o índio pode ver que alguns daqueles guerreiros tinham os olhos azulados, dando aos homens a aparência de mortos.
         Eles seguiram no ritmo da correnteza e inexplicavelmente passaram sem perceber o índio entre os galhos da árvore caída no rio, embora Yepá tivesse se armado com o arco na tentativa de se defender do possível ataque dos estranhos. Nas balsas eles levavam objetos nunca vistos pelo guerreiro, que teve dificuldades de explicar com clareza quando relatou o fato à esposa e ao sogro, só sabendo dizer que as embarcações seguiram na mesma algazarra em direção a aldeia dos muras, se perdendo entre as ilhas onde muitas das batalhas da última campanha contra os inimigos do grande rio Amarelo ocorreram.
         Tawacã tomou esta aparição por mau agouro e suas entranhas anunciaram tempos difíceis aos guanavenas e aos aliados, com lutas renhidas para defender o território do Canaçari. Já o pajé disse acreditar tratar-se de omáguas disfarçados em busca de fazer aliança com os muras, sendo esta a pior das hipóteses às pretensões de Nahpy. Seus planos previam a retomada nos acordos com esses inimigos com o objetivo de conquistar um tempo de paz na região. O pajé sabia que se os muras se unissem aos omáguas a guerra retomaria e o lago Canaçari seria atacado, porque ambas as tribos vinham travando lutas sangrentas ao longo dos tempos para conquistar este território, sempre defendido com bravura pelas tribos aliadas
          O pajé só viu uma possibilidade de se certificar sobre as verdades desse fato e seria uma missão arriscada a Yepá, o único guerreiro capaz de se esgueirar até a aldeia Itacoatiara e espionar se os omáguas estavam mesmo se aliando aos muras. O caboquena aceitou a tarefa prometendo retornar o mais breve possível com as respostas e partiu de imediato, embarcando em sua veloz canoa, levando o arco com flechas, um tacape, seu alforje com sementes de guaraná, o único alimento que consumia quando estava neste tipo de missão, e a lâmina de pedra afiada, muito usada para tirar o couro dos animais mortos por ele. Foi no rumo do Mucajatuba, contornando a ilha para cruzar o lago Canaçari e percorrer as margens do grande rio Amarelo até nas proximidades da aldeia de Itacoatiara, quando deveria entrar na selva e sumir dos olhos das sentinelas muras.
          Quando a noite se abateu sobre o lago, Yepá se encontrava ainda muito distante do furo que ligava o lago ao grande rio Amarelo, por isso amarrou a canoa em uma árvore isolada nas águas e ali esperou pela manhã com aflita certeza de estar sendo seguido. Nos primeiros raios de sol retornou a viagem e antes mesmo do astro atingir o alto do céu estava cruzando o furo e navegando nas perigosas águas pertencentes aos inimigos. A partir desse ponto ele achou mais cauteloso se embrenhar na selva e sair caminhando, se desviando de todos os ruídos que o pudessem trair, evitando caminhos muito pisados por poderem guardar surpresas desagradáveis e se mexendo somente quando tinha a certeza de não estar sendo observado. Era como uma serpente a evitar os perigos à frente, mas impossibilitado de proteger a retaguarda, que sabia estar desguarnecida contra o avanço sorrateiro dos restreadores de Taobara.
          Yepá chegou próximo da aldeia de Itacoatiara e percebeu a normalidade entre os índios, pois não escutava comentários sobre acontecimentos estranhos acontecidos nos últimos dias quando surpreendia os muras caminhando nos roçados, nem viu nada que pudesse denunciar na aldeia alguma preparação para a guerra ou sinal dos omáguas. Deu por encerrada a missão e retornou a ilha Saracá, onde o aguardava o pajé ansioso por notícias. Mas contratempos o retardaram no caminho, pois encontrara sinais claros dos rastros de um guerreiro em seu encalço, que tinha o cuidado de pisar em cima das pisadas do perseguido para não lhe denunciar a vigília. Aos olhos aguçados de Yepá isso não passava despercebido e acendeu nele a certeza de ter chegado o momento de agir e, assim, preparou a armadilha na qual apanharia a sombra que o observava há tanto tempo.
          O caboquena contornou a praia do Mucajatuba, vislumbrou a aldeia dos guanavenas e observou a criançada a sua espera, como sempre acontecia nas voltas das caçadas. Elas estavam ansiosas para ver os animais mortos pela perícia do caçador, mas quando Yepá encostou a canoa na beira e se levantou para desembarcar todos os meninos saíram correndo aos gritos. Então, como nunca ocorrera, o guerreiro percorreu a praia sozinho, entrou na aldeia sob o olhar espantado de toda a tribo e foi até a cabana onde se encontrava o cacique sentado com seus homens e, diante do olhar aterrador de Taobara, jogou sobre seu colo a cabeça de Waripa que trazia pendurada pelos cabelos.
          - Este foi o homem que tu mandaste me seguir para me matar, disse Yepá a Taobara.

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