segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Capítulo 26 - Tocaia dos Mortos

          TAOBARA RETIROU A LÂMINA DA CINTURA E AVANÇOU CONTRA YEPÁ, MAS FOI CONTIDO POR NAHPY que neste mesmo instante também chegara ao local alertado pelos gritos desesperados das crianças em polvorosa. Outros guerreiros também foram para cima do caboquena, mas ele continuou impávido diante da ameaça, disposto a resolver todas as questões pendentes desde quando passou a viver na ilha Saracá, mas não foi preciso sequer apontar a arma contra os bravos. O sogro apenas mirou os olhos neles e todos ficaram estáticos, paralisados pela força descomunal do pajé.
          - Se alguém ousar atacar Yepá vai conhecer toda a minha fúria, disse Nahpy aos guerreiros que estavam a poucos passos do caboquena. Este não se mostrava receoso da agressão iminente, mantendo a serenidade de sempre, enquanto os outros bravos tinham os músculos trêmulos, ansiosos por desferir golpes e punir a ousadia do esposo de Tawacã.
          - Waripa era o meu homem mais leal e não vou admitir esta infâmia, afirmou Taobara ao irmão, segurando a cabeça do aliado pelos cabelos e mostrando-a ao pajé.
          - Vamos resolver esta questão de outra forma, ponderou Nahpy, enfrentando o olhar de fúria do cacique. O pajé queria uma solução na qual o genro saísse vivo da situação difícil em que se metera.
          - Waripa tentou me matar e eu apenas revidei ao ataque, se defendeu Yepá, mas as palavras atiçaram os guerreiros contra ele, forçando o pajé a interpor-se diante dos adversários, evitando o início da briga de resultado certo com sangue derramado.
          Tawacã entrou na cabana e viu o marido diante das armas dos homens de Taobara e apenas o pajé a defendê-lo, não com outras armas, mas com a força moral, superior aos tacapes e lanças apontadas contra os parentes. Ela se colocou também diante do grupo, ameaçando com palavras firmes quem atentasse contra o caboquena, mas Yepá não queria a esposa se expondo a risco, principalmente quando se encontrava grávida, e a puxou pelos braços, pondo-a por trás de si. Sua coragem o sobrepunha aos inimigos, forçando eles recuaram alguns passos, mas não os fez baixar as armas, agora apontadas aos três.
          - Yepá será banido...
          - Não. Yepá será morto para lavar com seu sangue a honra de Waripa, contestou Taobara ao irmão, deixando claro não existir nenhuma possibilidade de o caboquena deixar a cabana vivo.
          Nahpy se aproximou do irmão e quis levá-lo a um canto da cabana, onde pudessem conversar sem a interferência dos guerreiros, mas o cacique estava resoluto em dar a Yepá apenas a oportunidade de lutar até a morte ou se salvar. O pajé pegou Taobara pelos braços, mas este se soltou com gesto brusco. Livre, avançou contra o guerreiro que havia lhe feito grande ofensa ao degolar o aliado e ter jogado a cabeça dele em seu colo. Nahpy agia com cautela para convencer o irmão a deixar o esposo de Tawacã sair da cabana vivo, recebendo como punição o banimento, única forma de evitar o derramamento de sangue do genro e preservar a integridade da família. Para isso deixou claro aos presentes a disposição de lutar e salvar a vida de Yepá, mesmo tendo de enfrentar o cacique e seus guerreiros.
          T$aobara teria de ouvir argumentos muitos mais fortes para fazê-lo mudar de idéia e aceitar uma punição mais branda ao caboquena, mas se deixou convencer quando viu adentrar na cabana Aiauara e Byrytyty, ambos armados e no comando de um grupo de jovens revoltosos e dispostos a dobrar a vontade do cacique de vez por todas. A situação de inferioridade fez o cacique reconhecer outra liderança entre os guerreiros ansiosos por boa luta. A realidade mudara a vantagem numérica de Taobara e fez seus homens recuarem, deixando de apontar as armas a Yepá, a esposa e ao pajé. O recuo não foi rendição e os ânimos continuaram tensos, a ponte de qualquer gesto de um dos membros de cada lado iniciar a luta fratricida, de resultados imprevisíveis.
         Nahpy percebeu a delicadeza da situação e Taobara pretendeu resolver a questão naquele momento, incitando seus homens a atacar os jovens guerreiros, que embora em maior número tinham pouca ou nenhuma experiência em combate. No entanto, os homens fiéis ao cacique viram nos jovens bravos a vontade sanguinária de lutar e enfrentar inimigos muito mais poderosos. Por isso optaram pelo recuo tático, sabendo ser impossível enfrentar a horda de guerreiros liderados por Byrytyty, o monumental bravo saído recentemente do ritual de passagem, mas com confiança suficiente para desafiar o maioral da tribo. O filho mais novo do pajé se aproximou do pai e se postou diante dele pronto a receber ordens. Nahpy não pretendia colocar os grupos em conflito e se dirigiu até onde estava o irmão e desta vez o puxou pelo braço, arrastando o cacique vencido até fora da cabana.
         - Yepá será banido de nossa aldeia, junto com sua família, por três ciclos de água, sentenciou o pajé na tentativa de arranjar as coisas da melhor forma possível. E tu continuarás o maioral dos guanavenas, disse ao irmão.
         - Eu não sou mais maioral de ninguém. Teu filho acaba de me destituir, reconheceu Taobara, olhando o pajé com toda a raiva que podia acumular nos olhos.
         Nahpy sabia que esta situação abriria caminho ao fratricismo, pois Taobara possivelmente recuaria agora, enquanto estava em desvantagem de homens, mas tinha condições de buscar apoio entre muitos dos guanavenas que pescavam ou caçavam nas distâncias de lagos e florestas. E tinha também Pikiwaha, neste momento viajando ao rio Sanabani, onde acompanhava a escolha do novo cacique dos bararurus. A tribo havia mergulhado na desordem sucessória logo depois da morte do cacique Jauaraçu e de lá ele pretendia voltar com acordo firmado pelos bararurus. A situação era delicada e embora a vontade do pajé fosse tirar o irmão definitivamente do comando da aldeia, seu afastamento causaria maiores perdas a todos os lados.
         - Byrytyty não será cacique, pois lhe falta em serenidade o que lhe sobra em afoiteza, disse Nahpy ao irmão, garantindo a Taobara a permenência no comando. Mas neste momento a liderança do maioral não era nada: fora contestada pelos filhos do pajé e desrespeitada quando seus bravos, que lhe deviam lealdade, se opuseram a lutar.
         No entanto, o cacique não tinha muitas escolhas e aceitou o veredito do pajé, embora considerando humilhação deixar Yepá sair vivo da cabana em desonra à memória de Waripa, o guerreiro que sempre o serviu com lealdade. Mas a situação deveria ser tratada com sabedoria, pois lutar agora o levaria à derrota, sepultando de vez qualquer condição de manter o cocar de maioral na cabeça e afastando também a possibilidade de Pikiwaha sucedê-lo. Era questão de tempo. Taobara estava momentaneamente enfraquecido, mas com a chegada do filho e com possível escolha de um maioral bararuru comprometido com os interesses dos guanavenas a situação sofreria reviravolta total e as coisas voltariam aos caminhos de antes, com o poder dele restaurado e garantido por alianças duradouras. O cacique se sabia na encruzilhada, vendo agora seu futuro nas mãos da tribo dos bararurus e pensando como seriam articuladas as novas ações para trazer outra vez os guanavenas ao seu lado caso a guerra fosse declarada.
         Taobara perderia muito mais nesse momento se, por decisão sua precipitada, fosse apeado do comando através de derramamento de sangue. Lutando, não teria como cooptar depois os adversários momentâneos, também guerreiros guanavenas, e reduziria ainda mais o número daqueles que lhe eram fiéis se os jogassem na morte numa luta a qual estavam destinados a perder. O cacique precisava do apoio do irmão, ou ao menos da palavra dele empenhada, para se manter onde estava e teria uma dívida de gratidão a cobrar de Nahpy por ter permitido seu genro ser banido, ao invés de morto, quando a única resposta aceita ao crime cometido por Yepá era a vingança cumprida com sangue. O pajé sabia disso e Taobara foi hábil em explorar o relaxamento no cumprimento das normas pelo irmão, justamente o encarregado de zelar pela manutenção.
         - Eu permito ao caboquena sair da cabana e levar a família para as terras dos ancestrais dele, disse Taobara ao irmão, dando em fim a ordem salvadora da vida de Yepá e evitando mal maior a todos.
         Em seguida, Yepá embarcou suas coisas em duas grandes canoas e retornou ao território dos ancestrais. Neste momento seus pensamentos vagavam nas lembranças de como era a vida dos caboquena antes da tragédia imposta a eles pelos muras e como a aldeia Maquará estava bem localizada nas margens do Orowo, de frente aos ventos vindos com força do Canaçari. O guerreiro destribalizado voltaria a viver sozinho, embora tivesse agora Tawacã como esposa, as filhas do irmão e seus próprios filhos para alimentar e proteger e não considerava esta tarefa difícil. Ele pensava justamente nisso quando colocou o arco com as flechas de diferentes tipos de pontas no convés da embarcação, ajeitou a borduna embaixo de dois bancos e agasalhou a lâmina na cintura, pronta a ser sacada ao primeiro sinal de perigo. Depois embarcou a família na canoa da dianteira, com a outra amarrada pela popa, e seguiu em comboio com os cunhados e outros guerreiros a lhe dar proteção até a foz do rio Orowo, quando se despediram e ele seguiu o resto da viagem acompanhado apenas das novas expectativas e dos parentes com os quais pretendia retornar ao viver dos caboquenas.
         A família se instalou numa praia antes do local onde estivera a aldeia Maquará, isto depois de Tawacã se recusar resolutamente em fazer a nova moradia por cima dos ossos dos caboquenas, como queria o esposo. Yepá achava que o retorno não estaria completo se não respirasse o mesmo ar da antiga aldeia, mas as lembranças da esposa não poderiam conviver com a mesma paisagem de terrores e assim o guerreiro banido deu início à construção da oca no local escolhido por Tawacã, nem tão longe de onde estava Maquará, para satisfazer ao marido, e muito menos perto para atiçar-lhe os medos. As primeiras noites passaram no sereno, mas em poucos dias o guerreiro havia recolhido madeira suficiente para erguer as treliças da oca, grande como ele queria, enquanto Tawacã e as filhas traziam palhas com as quais cobririam toda a construção.
         Quando a obra foi concluída, Yepá então derrubou algumas árvores e preparou o roçado de mandioca, enquanto a esposa cuidava da pequena horta de onde tirava as ervas usadas no tempero da comida. O casal se revezava nas pescarias, enquanto as caçadas somente Yepá as praticava, embora ele não se aventurasse em grandes distâncias e por isso os resultados não eram mais tão profícuos como antes. Mesmo assim nunca faltava um quarto de catitu pendurado no esteio da oca ou um tambaqui defumado tirado dos lagos próximos ao Marupá. Quando o sol estava nos momentos de maior calor, a família se desprendia na coleta de frutas, sempre abundantes em todas as épocas no território do Orowo, generoso em oferecer farturas.
         Na primeira vazante passada no novo território, a família de Yepá aumentou com a chegada de mais um filho, que Tawacã dera ao mundo com a mesma simplicidade das vezes quando as duas meninas nasceram. Ela procurou se sentar na mesma posição de quando pariu Waiãpi, olhando na direção da ilha Saracá para aplacar as saudades dos tempos em que a vida mostrava-se a ela cheia de esperança. Agora estava com outro marido e muitos filhos mais, havia perdido o temor de novas experiências depois de viver momentos auspiciosos e de desgraças e amadurecia o conhecimento na solidão do exílio, em conversas com o marido que se estendiam até o amanhecer ao calor da fogueira acesa na praia, enquanto vigiavam o sono das crianças adormecidas na choupana.
         Yepá passava o tempo construindo cabanas e expandido a aldeia batizada de Maquaraçu, porque mesmo condenado a cumprir o banimento na terra amaldiçoada dos ancestrais nunca deixara de perder a esperança de ali viver a receber visitas. Se preparava para este momento acreditando na generosidade do território do rio Orowo, onde apenas ele e a esposa davam conta de prover alimento à família, produzindo até mais do necessário, agora com o roçado no vigor da produção. Também havia as caças e os animais eram mortos a flechadas atiradas da rede na qual Yepá dormia, quando despertado pelo fuçar do bicho na própria casa, além dos peixes e tracajás tirados das águas piscosas do labirinto de lagos dentro do Marupá. O caboquena sabia que território de tantas farturas não ficaria desabitado por muito tempo, mesmo com espíritos maus passeando nas praias e perseguindo caçadores nas matas. Ele considerava a punição relativamente branda, mesmo a despeito de não poder visitar os parentes da esposa na aldeia dos guanavenas.
         Em Maquaraçu, Yepá se sentia protegido da vingança de Taobara, mesmo sabendo que o cacique mandara alguns bravos espionarem a ela e a família. Mas os enviados sempre retornavam logo após atravessar a foz do Orowo, dizendo não ter encontrado nem sinal do banido. Mas o caboquena continuava vivendo nas terras do seu povo, do qual era único representante e guardião da cultura, e contando com a proteção dos espíritos dos ancestrais. De vez em quando ele subia o rio Orowo até os extremos do território, na fronteira perigosa das terras do muras para espionar os inimigos, mantendo-se informado dos passos desses índios e pronto a antecipar-se a qualquer movimentação deles sobre as florestas dos caboquenas.
         A solidão o deixara mais ladino no caminhar pelas matas, percorrendo longas distâncias com agilidade e sem deixar rastros aos inimigos. Observava cada diferença no caminho, sabendo há quanto tempo foram dados os passos deixados no local. Ele fazia patrulha na selva inteiramente alerta a qualquer som da mata, capaz de escutar os silvos das serpentes escondidas entre as folhagens adiante e sentir a pisada das antas algumas árvores a frente. Por isso não se mostrou surpreso quando perseguia um bando de guaribas e logo se deu conta de outros passos também vindo na mesma direção. Chegou a calcular em três o total de pessoas a frente. Ele se protegeu por trás dos arbustos de cipó titica e esperou os caminhantes se aproximarem. Eles passaram próximos de Yepá e o caboquena identificou os três como caçadores muras, pois traziam cravados nos rostos espinhos de tucamazeiros, a modo de ficarem iguais às onças.
         O caboquena abandonou a perseguição da caça e seguiu os muras durante todo o dia, esgueirando-se na floresta sem perder nunca a visão sobre os três, que continuavam as andanças sem notar a presença do inimigo. Yepá conseguia estar sempre perto do grupo, inclusive subiu em grande árvore de angelim e do alto observou-os o tempo todo no qual eles pararam para comer um quarto de queixada. Depois desceu sem ruídos e manteve a vigília incessante aos muras, só parando quando eles armaram acampamento para passar a noite. O grupo adormeceu sob a escuridão espantosa da floresta, mas o caboquena manteve-se acordado, se aproximou com a segurança dos felinos, com cada passo sendo dado somente depois de os pés estarem firmemente fixados no chão e evitando o leve farfalhar das folhas no chão. Yepá chegou bem perto do primeiro índio, dormindo debaixo do rabo de jacu armado com três palmeiras de pupunheira. O caboquena sentiu a profundidade do sono pelo ronco acelerado, depois se esgueirou até o próximo e também percebeu que dormia pesado, foi até onde se encontrava o último e este descansava largado sobre algumas toras de buritizeiro e o ronco denunciava o estado do sono. O guerreiro atacou primeiro este, abrindo com golpe rápido e profundo da faca a jugular do adormecido que só teve tempo de soltar um grito interrompido pelo vazio da garganta. O som foi suficiente para despertar os outros dois companheiros, mas estes não tiveram oportunidade de buscar defesa, pois a borduna de Yepá se voltou contra suas cabeças e em dois estalos ambos estavam mortos no chão.
         O caboquena vigiou os corpos dos três muras até o sol abrir a claridade nas brenhas da selva e foi então buscar mais lenha para avivar a tênue chama da fogueira noturna, depositando galhos secos encontrados nas proximidades e fazendo subir as labaredas até o alto das copas das árvores. Depois jogou um a um os corpos dos inimigos no fogo para queimarem até os ossos e ficou satisfeito quando viu a fumaça tomando o rumo da aldeia de Itacoatiara. O cheiro dos muras assando serviria de aviso aos índios dessa tribo a não se aventurarem nas proximidades das terras dos caboquenas.
         Quando Yepá contou à esposa o acontecido na floresta, ela o repreendeu, temerosa de viver outra vingança dos muras, mas ele a tranqüilizou afirmando que ninguém os descobriria na nova aldeia, por estarem protegidos pelos ancestrais e os espíritos dos mortos da tragédia. Tawacã mantinha temor nestas terras, embora o esposo a cobrisse de proteção e estivesse sempre presente na oca, mas as lembranças a desafiavam a ficar alerta, sem encontrar tranqüilidade de viver a qual se acostumara na ilha Saracá, em volta do parentes. Ela evitava até mesmo caminhar pouco acima do rio Orowo e nunca retornou ao local da antiga aldeia, freqüentado sempre apenas por Yepá.
         - O que tu tanto fazes na antiga aldeia de Maquará? quis saber Tawacã do esposo e ele sempre respondia que ali se encontrava com os mortos e recebia forças para continuar levando adiante a estirpe dos caboquenas.
         Quando o rio voltou a vazar outra vez o casal se preparava para o nascimento de outro filho, o quarto de Yepá e Tawacã, que por este tempo contava com a ajuda de Waiãpi na lida de tomar conta dos irmãos mais novos. O guerreiro passou a se dedicar mais às caçadas e pescarias, chegando inclusive a informar à esposa a intenção de partir em longa viagem até as terras da Mundurucânia com o intuito de convidar parte dessa gente a viver com eles no rio Orowo, mas foi dissuadido pela praticidade de Tawacã que não gostaria de ficar sozinha sabe-se lá por quanto tempo no aguardo do marido. Ele se deixou convencer sem maiores argumentos e, no entanto, as caçadas o estavam levando sempre mais longe, chegando muitas vezes a transpor a foz do Orowo e se aventurar nas proximidades da ilha Saracá, pondo em risco a vida caso tivesse encontro com os guanavenas. Gostava também de percorrer áreas de perambulação dos muras, sem nunca mais ter encontrado nenhum inimigo.
         Tawacã aguardava ansiosa o retorno das águas e elas voltaram com a mesma precisão de sempre, alagando as praias do Orowo e se aproximando da oca principal onde a família dormia. Nas longas noites de solidão, quando o marido ia caçar, a índia deitava com os filhos e ficava escutando a chuva cair impiedosa nas palhas da cobertura. Então seus pensamentos se voltavam até a aldeia dos guanavenas, quando a família dormia depois de escutar as histórias do pajé, com a fogueira acesa dentro da grande oca a protegê-la das chuvas intermináveis. Ela reconhecia a figura do pai nas tremulações das chamas e como as sombras tornavam as palavras dele ainda mais espantosas.
         Quando os temporais cessaram e os dias ensolarados voltaram a tomar conta do tempo, o casal foi trabalhar nos roçados de mandioca, aproveitando a vazante das águas que deixavam no rastro da fuga boas várzeas a serem plantadas. Yepá não gostava de se dedicar às plantações, preferindo obter o sustento da família na habilidade das caçadas e pescarias ou na coleta de frutas de época, deixando à esposa e Waiãpi a obrigação de limpar a roça e colher as raízes. A família sempre obtinha mais alimento do que poderia comer e guardava provisão suficiente para receber visitas inesperadas, embora as esperanças de encontrar outras pessoas no vazio do Orowo já tivessem sido desvanecidas em dois ciclos completos das águas sem terem sentido esta grata surpresa.
         As águas começaram a retornar ao grande rio Amarelo deixando a pequena faixa de praia nas margens do Orowo por onde Yepá viu a aproximação de um grupo de índios caminhando no esplendor do sol. Os guerreiros vinham rio abaixo, subindo a correnteza, embora de modo pouco usual devido aos costumes das tribos se deslocarem em canoas, mas mesmo assim o caboquena foi tomado de grande susto e a primeira reação foi se armar e enfrentar os invasores. Ele entrou rápido na cabana onde Tawacã descansava do mormaço juntamente com as crianças, causando espanto em todos e mandando-os prepararem a fuga porque o grupo se aproximava. Yepá pegou as armas e retornou à praia na tentativa de surpreender os viajantes, mas desta vez sua surpresa foi de alegria, pois da distância onde se encontrava pode divisar entre os guerreiros mulheres e crianças, numa demonstração clara de que não estavam viajando em busca de conquistas, mas procurando um lugar onde viver.
         No entanto, o caboquena manteve-se escondido na mata, vendo os índios passarem muito próximos dele. Sem se mostrar, o guerreiro seguiu o grupo pelas costas, ficando abismado quando os viajantes cruzaram a frente da aldeia Maquaraçu, mas sem vê-la. Yepá pensou que as cabanas talvez estivessem escondidas por alguma proteção dos ancestrais, impedindo de ser avistada por inimigos. Então acreditou que se a aldeia estivesse invisível ele também o estaria. Por isso correu até alcançar os índios e se mostrou a eles, com todas as armas à mostra e a determinação de conter o avanço de quem fosse sobre os territórios dos caboquenas.
         Os índios o viram sim e demonstraram satisfação ao reconhecer na frente deles aquele a quem buscavam e foram na direção de Yepá deixando largadas na praia as armas e todas as tralhas que traziam, como se estivessem por fim atingido o objetivo perseguido a muito custo nas caminhadas por terras estranhas. O caboquena os reconheceu: eram das gentes dos bararurus e estavam fatigados pela longa caminhada nas areias ardentes do Orowo. Quando se encontraram próximo de Yepá os índios se atiraram no chão fazendo saudação submissa, inclusive as mulheres e as crianças, e se arrastavam na areia até os pés do caboquena, implorando para tomarem parte na aldeia do guerreiro exilado.
         Yepá mandou os índios se levantarem, pois não lhe agradava tanta reverência. Ela estava especialmente satisfeito com a inesperada visita, tão aguardada desde quando deixara a aldeia dos guanavenas e passara a viver no isolamento total junto com a família. Um dos guerreiros se levantou e disse que seus parentes haviam se desligado da aldeia dos bararurus depois de Imbiri tomar o comando da aldeia e assumir o posto de cacique, com apoio decisivo de Taobara. A mudança de maioral ocasionou desavença entre os índios do Sanabani, com muitas das famílias importantes tentando colocar um de seus membros no poder.
         - Nosso parente perdeu a disputa e foi morto, disse o bararuru que parecia ser o líder do grupo, chamado Jamapuá. Agora só nos resta procurar outras terras para montarmos nossa aldeia, longe das brigas do Sanabani, explicou.
         Yepá ouviu com atenção as notícias da aldeia dos bararurus e perguntou sobre a ilha Saracá e lhe contaram a situação de quase luta aberta entre o cacique Taobara e os guerreiros comandados por Byrytyty. Disseram também que a paz somente foi estabelecida pela força de Nahpy, que impediu o embrutecimento das relações entre o filho e o irmão. O caboquena entendeu a difícil tarefa do sogro em manter separados dois grupos rivais na luta pela liderança da aldeia dos guanavenas, mas também não poderia tomar parte nesta luta porque cumpria o exílio imposto por Nahpy, como única solução de salvar-lhe a vida.
         Os andarilhos encontraram abrigo nas terras do Orowo, sendo levados até a nova aldeia, onde cabanas já estavam edificadas há muito tempo a espera de moradores. Depois de alojar os bararurus, Yepá foi até onde Tawacã estava escondida com os filhos e os trouxe de volta à proteção das ocas, explicando no caminho os motivos que levaram os índios a abandonar as terras do Sanabani e pedindo à esposa para aceitá-los como novos habitantes de Maquaraçu. A índia também se mostrou hospitaleira com os novos moradores, pois a solidão dos últimos tempos a estava incapacitando a outras atividades e assim recebeu os forasteiros com sorriso largo.
         Os bararurus se alojaram nas cabanas construídas por Yepá e fizeram dele o maioral da nova aldeia Maquaraçu, mesmo com o caboquena se recusando a assumir tal posto, preferindo apenas a amizade dos outros índios na vivência em comum e reproduzindo entre os moradores o modo de vida dos ancestrais. No entanto, as habilidades na pesca e na caça faziam de Yepá o líder natural da tribo em formação, além de ser ele o único a conhecer a região do Orowo, capaz de obter alimento a todo o grupo e preparar a defesa do local em caso de ataques de inimigos. A esposa o obrigou a aceitar o cocar de cacique até por pragmatismo, abrindo-lhe os olhos ao fato de ali ser terra de seus ancestrais e ter sido ele o primeiro a retornar ao local após a tragédia dos caboquenas, além de fundador da nova comunidade. Esses argumentos pesaram na decisão de Yepá, mas ele só aceitou a liderança depois de ouvir da esposa que se ele não o fizesse, outro fatalmente o faria.
         Logo após começaram a chegar na aldeia Maquaraçu outros grupos de bararurus em fuga devido à briga sucessória na região do Sanabani. Eles traziam notícias dando conta de Imbiri lutar agora contra Mapaxe, um guerreiro vindo da comunidade do rio Itapani, mas com grande vontade de se fazer maioral de sua gente. Ambos os bravos tinham seus grupos e travavam batalhas encarniçadas pelo poder, expulsando aqueles incapazes de tomar partido por qualquer um deles. Também praticavam o saque às comunidades, desde que os grupos desconfiasse que os moradores do lugar estavam oferecendo apoio aos inimigos atuais e também a vingança generalizada, para responder com a mesma violência as ofensas praticadas pelo lado contrário.
         Em pouco tempo todas as cabanas da aldeia já estavam ocupadas por famílias de bararurus em busca da tranqüilidade oferecida nas terras do Orowo, sendo necessário construir mais abrigos para tantos novos moradores. Por enquanto, Yepá comandava as tropas pelas matas na coleta de madeira e palhas, mas também não descuidava do traçado da aldeia, impedindo que se erguessem cabanas destinadas às famílias muito próximas da floresta, onde seriam mais suscetíveis às investidas de inimigos e animais ferozes. Mas nem estas adversidades eram suficientes de conter o entusiasmo do cacique na ampliação da aldeia, que ele concebia como um lugar aonde ninguém ficaria sem um cantinho de hospitalidade.
         O maioral realizava o sonho de refazer a aldeia natal, mesmo com outras gentes, no entanto acreditava que o sangue caboquena ainda estava vivo em sua família e com esta pequena parte ele pretendia reviver a cultura deixada de herança pelos ancestrais. Por isso ajudava a divulgar a notícia do surgimento da nova aldeia na região do Sanabini, atraindo mais gente ao Maquaraçu e fazendo crescer o número de pessoas sob sua proteção. Ele se assustava sempre quando novas famílias chegavam, pois temia não oferecer-lhes condições de vida melhores do que a que eles tinham anteriormente.
         - Por que todos vêem a esta terra onde os espíritos vagueiam? interrogou o cacique com falsa modéstia aos que chegavam das terras dos bararurus.
         - Os espíritos vagueiam por todo o mundo, responderam ao maioral.

Nenhum comentário:

Postar um comentário