segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Capítulo 14 - Tocaia dos Mortos


         HAVIA PASSADO UM CICLO COMPLETO DE ÁGUA DESDE QUANDO MONAWA RAPTARA TAWACÃ E A LEVARA para viver em sua tribo. Agora era preciso viajar até a aldeia guanavena levando a pequena Waiãpi e apresentá-la aos parentes, confirmando o casamento pelo consentimento dos pais de jovem. Monawa preparou sua canoa com muitos presentes que levaria à tribo dos guanavenas, incluindo carnes defumadas para servir em banquete aos índios amigos. Era preciso conquistar-lhes novamente a confiança, perdida no ato do seqüestro, mas com inteira possibilidade de reconciliação, devido o fato estar consumado e, agora, o caboquena cumpria a parte definitiva do ritual, quando levava a moça de volta a sua gente e estes visem que ela estava sendo bem tratada.
         Tawacã apresentava sua melhor forma, com a criança tendo passado os dias críticos de vida e agora era somente saúde, tanto na mãe quanto na filha. O pai envaidecido esperava ansioso sua família embarcar na canoa e iniciar a viagem até a ilha Saracá, o berço da esposa, onde ela se criou e se tornou mulher por inteiro. Mãe e filha tomaram assento no banco da popa da canoa, a criança no colo, protegida dos ventos matinais que neste momento da manhã golpeavam as margens do rio Orowo, mas em breve se transformariam em ventania quando o sol ultrapassasse o meio do céu e as águas, agora tranqüilas, se enraiveceriam, dificultando a navegação.
         Era preciso avançar com rapidez para aproveitar as condições favoráveis, porque depois teriam de esperar os ventos se acalmarem antes de alcançar a foz do Orowo, evitando assim a navegação de risco, principalmente quando se viaja com criança e carregado com presentes. Monawa conhecia o perigo e remava fundo, seguindo a direção das águas correndo para onde as luzes do sol pintavam de vermelho o dia. No segundo dia de viagem a placidez do rio deixava a canoa fluir na direção certa e o pai zeloso remou com vontade até ver os contornos dos morros da ilha, quando pode driblar os ventos já velozes por entre os igapós da foz imensa.
         Ele contornou as árvores alagadas e surgiu no Estreito, e esta visão trouxe à Tawacã as lembranças dos tempos de criança, quando costumava atravessá-lo a nado, junto com os irmãos e parentes, entrando no mundo dos caboquenas, embora contrariando as recomendações de todos de não deixar a proteção da ilha. A jovem mãe estendeu os seios para Waiãpi, que acordou ao sentir os primeiros ares da terra de seus ancestrais, e a criança sugou o leite com vontade, aconchegada no colo da mãe e inteiramente entregue ao território de seu povo.
         - Waiãpi está se sentindo muito feliz em nossa terra, disse Tawacã ao marido, que remava com vigor para cruzar o Estreito e atingir o lago Saracá.
         - Eu também estou feliz por voltar ao local onde conheci a minha esposa, respondeu Monawa, sem tirar a força dos remos e ansioso por ter de enfrentar os ventos agora de frente, sem a proteção da ilha e sem igapó onde se esconder.
         O casal estava feliz voltando a encontrar os pais de Tawacã e ela procurava tranqüilizar o esposo, ainda temeroso de ser recebido com rancor por parte de Nahpy, que não aceitou seu casamento e ainda foi atrás do casal na tentativa frustrada de resgatar sua filha. A esposa dizia conhecer seu pai e por isso sabia que o coração dele perdoaria ao marido, ainda mais quando tivesse nos braços a pequena Waiãpi, sua neta.
         - Não te esqueças que minha mãe é caboquena, disse Tawacã e estas palavras apaziguaram os temores de Monawa, que remou mais rápido, já ansioso por encontrar sua nova família.
         Vencer os ventos e os banzeiros da parte da ilha voltada ao infinito foi tarefa árdua para Monawa, mas seu desejo de chegar e enfrentar logo o humor de Nahpy lhe dava forças de remar e seguir na direção da praia onde se encontrava a aldeia maior dos guanavenas. Era uma ponta de praia cuja língua de areia adentrava no lago e interrompia os banzeiros na entrada de um pequeno igarapé, cuja baía dava em um porto seguro às embarcações vindas dos mais distantes rios.
         Monawa chegou à beira da praia e logo os guanavenas vieram saudá-lo, uns fazendo festas e outros olhando com indiferença. Ainda estava marcada na lembrança de alguns o dia em que o caboquena se aproveitou do convite feito por eles para raptar uma de suas mulheres. Mas logo a visão da família desfez os rancores e os recém-chegados foram recebidos com abraços sinceros, até um grito romper no meio de todos e a voz de Xirminja chegar primeiro que seus passos ao encontro da filha, há muito afastada de seu convívio.
         - Minha filha querida, disse Xirminja a Tawacã, enquanto se abraçavam, deixando no meio delas a pequena Waiãpi esmaga pelo amor das duas mulheres.
         Em seguida chegou Nahpy acompanhado dos outros filhos. Aiauara trazia com orgulho sua esposa Tananta carregando o filho do casal, um menino forte que deixava antever o destino de guerreiro no futuro. A família de Nahpy se reuniu ao lado de Tawacã, seu esposo e a filha, e todos queriam pegar Waiãpi no colo, mas a mãe se recusava a entregar a criança, só o fezendo a Matepi, a irmã mais nova, a quem não via há bastante tempo e agora se mostrava imponente na puberdade, alcançando uma altura superior à da mãe e da irmã e a beleza maior do que a soma das duas.
         Byrytyty também havia crescido e estava quase chegando na idade de passar pelo ritual de guerreiro, não correspondendo mais à imagem que Tawacã trazia do irmão mais novo, uma criança sempre fraca e inspiradora de cuidados excessivos por parte da família. A jovem mãe depois foi ao encontro de Aiauara e de sua família, abraçando Tananta com afeto, assim como ao bebê. Repetiu o mesmo gesto com a mãe, como se retardasse, na intenção de ampliar a magnitude do ato, o abraço dado no pai.
         Tawacã olhou bem no fundo dos olhos do pajé e viu a candura intensa que a fez de repente esquecer o temor de não ser aceita novamente como a filha dileta, mas Nahpy a recebeu nos braços e seu gesto mostrou não haver mágoas no coração dele. O pajé entendeu ser este o destino da filha, mas sem perder a esperança de fazê-la sua sucessora, porque a vida estava no começo e o destino de todos ainda era traçado. Foi o abraço mais prolongado e o que mais lágrimas custaram ao pai e à filha, num reencontro para o qual Nahpy se preparara desde quando desistiu de procurar por ela nas brenhas do Marupá, mas mesmo assim seu sentimento paterno se deixou trair por gestos espontâneos, fizendo erguer a filha no colo, num procedimento tão inusual que arrancou risos do restante da tribo.
         A alegria de Nahpy contagiou toda a gente guanavena e a muitos passou despercebido quando o pajé segurou a pequena Waiãpi e a abraçou com tanto afeto que a criança chorou assustada: o amor do avô causou-lhe um calor repentino. Mas ninguém deixou de observar quando Nahpy se dirigiu até onde estava Monawa, e este era justamente o momento ao qual a aldeia inteira aguardava com aflição, pois todos queriam saber qual seria a atitude do pajé em relação ao genro que nos últimos tempos tanto amaldiçoara.
         - Seja bem-vindo à nossa aldeia, meu filho! disse Nahpy a Monawa.
         - Aceito tua bondade e a tua vontade, meu pai, respondeu o guerreiro caboquena, perplexo ainda pela remissão de suas culpas, que julgava serem difíceis de perdoar, mas agora se encontrava na certeza de ter sido aceito no seio da família de sua esposa.
         Os dois trocaram abraços fraternos e ambos descobriram quantas resistências tiveram de vencer até estarem agora em congratulações recíprocas, num encontro de inimigos em buscam da paz porque entenderam que a guerra seria impossível entre eles. Monawa sentiu as pernas fraquejarem, da mesma forma como as sentiu diante da ordem de seu maioral para avançar contra os muras, durante o período da guerra, mas assim como soube se comportar com bravura diante do inimigo, assim permaneceu defronte de Nahpy, por quem remara durante dois dias para mostrar ao sogro que sua filha estava bem casada e protegida por ele.
         - Eu sempre serei um marido honrado para sua filha, prometeu o caboquena diante do pajé e, estendendo a garantia também à família de Nahpy, abraçou Aiauara, em consideração ao guerreiro guanavena, ao lado de quem lutara sua primeira guerra.
         Para demonstrar que veio fazer parte da família da esposa, Monawa retornou à canoa e retirou os presentes: mantas de pirarucu, carnes de pacas moqueadas e tantas outras comidas, pois na festa de retorno de Tawacã não poderia faltar nada de comer. Para beber, o caboquena trouxe várias cabaças de caxiri, feito com intenção sincera de impressionar os novos parentes.
         Xirminja se encarregou de dar ordens aos preparativos da festa, mandando apanhar lenha e acender uma grande fogueira, pediu que limpassem o terreiro até o chão estar em condições de receber os convidados da noite de bonanças. A mãe de Tawacã não podia conter sua felicidade de estar novamente próxima da filha e queria uma festa como sabia merecer a jovem mãe.
         - Esta será tua festa de casamento, repetia Xirminja à filha, quase num êxtase, que sempre sonhara com uma comemoração assim quando Tawacã fosse se unir ao seu marido, mas o atrevimento de Monawa, ao raptar a jovem, impedira a realização de sua vontade e somente agora podia concretizar.
         Nahpy chamou Monawa para uma conversa e Aiauara os acompanhou, pois tratariam de assuntos de interesse dos homens. Foram à oca principal e Byrytyty os seguiu na intenção de tomar parte da reunião, se sentindo já na idade de participar das conversas sobre sua gente, mas apenas um olhar ríspido do pajé o fez vacilar quanto a sua intenção e o pequeno recuou, disfarçando seu desapontamento de ainda não ser aceito no universo dos adultos. Byrytyty voltou ao encontro de sua mãe e irmãs e das outras crianças, mas este era um mundo no qual não se encontrava e ficava deslocado, sem vontade de brincar ou obedecer às ordens das mulheres.
         Tawacã pediu para Matepi carregar a pequena Waiãpi enquanto ajudava as outras mulheres no preparo da comida, seguindo as ordens de Xirminja, que queria uma festa grande, igual a sua na volta à aldeia dos caboquenas, levada por Nahpy, na época um jovem guerreiro, mas predestinado a ser o pajé de sua tribo. Byrytyty, magoado pelo fato de não estar na oca com o pai, o cunhado e o irmão mais velho, descontava sua ira nos gravetos da fogueira, quebrando os galhos com a força concentrada em seus músculos.
         Na oca, os três se sentaram para conversar e Nahpy tomou a palavra, dizendo ao genro que se sentia feliz pela volta de sua filha, ainda mais trazendo consigo a neta Waiãpi, com boa saúde. O pajé comentou que Tawacã também estava bem tratada, mostrando assim a dedicação aplicada pelo marido no cuidado de sua família.
         - Tu tens te mostrado um bom marido e pai, disse Nahpy ao genro.
         - Procuro fazer o melhor, porque não iria tirar Tawacã da tua companhia, onde ela era feliz, e deixar-lhe faltar qualquer coisa, trazendo sofrimento a ela, respondeu o caboquena, orgulhoso do fato de seu esforço estar sendo reconhecido pela família da esposa.
         O pajé balançou a cabeça em reconhecimento e disse que o perdoava e o aceitava como membro de sua família e de agora em diante o caboquena trazia em seu sangue a linhagem dos ancestrais de Nahpy. Monawa se mostrou agradecido e falou sobre seu dever de lutar pelo bem das tribos aliadas, demonstrando sua intenção de estar sempre junto dos guerreiros quando fosse defender o território onde vivia seu povo e o de sua esposa.
         - Eu lutei ao lado dos guanavenas e sou testemunha da coragem com a qual brigam os guerreiros dessa tribo, disse Monawa, e olhando para Aiauara completou, principalmente meu irmão e cunhado, com o qual dividi a honra de empunharmos nossas armas contra o inimigo mura.
         Aiauara sorriu em agradecimento, respondendo que Monawa também se mostrara honrado na luta, portanto merecia estar casado com Tawacã e fazer parte de família de Nahpy, obedecendo às tradições dos guanavenas, o grande deus Paharamim e o respeito aos ancestrais, que brindaram o caboquena com uma filha saudável. Monawa, com um gesto, aceitou a imposição do cunhado e os dois jovens voltaram a trocar abraços, uma forma de demonstrar fraternidade existente entre eles.
         A conversa transcorreu por longo tempo, sendo preciso colocar mais lenha na fogueira acesa no centro da oca e Nahpy mais de uma vez teve de enrolar seu fumo e buscar na brasa a chama para acendê-lo. Monawa rodeava o assunto com elogios, ora ao cunhado, ora ao sogro, mas para falar o que queria só tomou coragem quando o pajé percebeu sua ansiedade e perguntou ao caboquena se esse sentia necessidade de dizer mais alguma coisa.
         - É que eu queria pedir tua permissão para criar minha filha conforme as tradições de minha tribo e colocar nela um nome de origem caboquena, pediu em súplica Monawa.
         - Isso é impossível de conceder, pois a tradição de minha tribo é matrilinear e por isso Waiãpi será sempre uma guanavena, retrucou o pajé, reticente em conceder mais um benefício ao genro, por quem desfizera o ódio e até o aceitara como parente, mas permitir esse privilégio estava acima de sua boa vontade.
         Aiauara questionou Nahpy pelo fato de que muitas das famílias intertribais decidirem entre eles pela criação dos filhos, entendendo ser apenas um capricho por parte do pai em não conceder ao cunhado a decisão sobre o futuro da filha.
         - Não questione minhas decisões. Eu sou teu pai, respondeu bravo o pajé.
         - Eu sou teu filho, mas também sou homem e sou pai, por isso apenas te peço para permitir ao nosso parente Monawa criar seus filhos conforme a tradição de sua tribo, implorou o guerreiro guanavena ao pai resoluto.
         - Os jovens ainda têm muito de aprender sobre a vida, vaticinou o pajé, dando o assunto e a reunião por encerrados.
         Os três saíram da oca e encontraram tudo preparado para a grande festa de casamento de Tawacã e Monawa e foi apenas vê-los caminhando em direção ao centro da aldeia e todos correram a cumprimentá-los, querendo saber sobre o acertado e o transcorrido na conversa particular dos novos parentes. O caboquena aconchegou-se ao lado da esposa e da filha, estava cansado pela longa conversa e insatisfeito com o resultado obtido ao ter de ceder mais do que conquistara, embora apenas o fato de estar entre os guanavenas já era considerado uma grande vitória. Tawacã percebeu o constrangimento do esposo e adivinhou seus pensamentos e os motivos para tal desânimo, mas o incentivou a permanecer firme, encostando os lábios no ouvido dele, como sempre fazia para encorajá-lo.
         - Deixe o tempo transformar as coisas e tudo se ajeitará, sussurrou Tawacã ao marido, colocando a filha entre os braços de ambos, num gesto de desafio à vontade paterna e deixando claro que a pequena Waiãpi seria guanavena, como determina a tradição de sua gente, mas também teria os costumes dos caboquenas, por ser dessa tribo seu pai e sua avó.
         A festa de casamento foi farta e se prolongou madrugada adentro, com comida variada e reforçada por carnes inesperadas trazidas por Taobara, que chegou neste mesmo dia da caçada com seus bravos e fez questão de presentear Tawacã com um cocar feito de penas de arara, igual ao usado pela prima Cayabi em sua festa de casamento. Cayabi também participou das comemorações, trazendo nos braços o primeiro filho do cacique, um saudável varão, motivo de orgulho de toda a tribo, que devotava a ele as honras de herdeiro da liderança dos guanavenas.
         Na manhã seguinte, logo após a primeira refeição do dia, Aiauara convidou o cunhado para uma pescaria no lago Purema, onde a fartura de peixes permitia à tribo dos guanavenas uma fonte segura de pescado todo o tempo, seja nas águas baixas seja nas altas. O lago era guarnecido por um labirinto de paranás e somente quem conhecia seus caminhos podia penetrar em seu interior, sempre abastecido de cardumes, vindos tanto do lago Canaçari quanto do grande rio Amarelo. Esse encontro de águas diversas tornava o local piscoso e importante aos guanavenas, por isso sempre foram às guerras quando o manancial de comida esteve ameaçado por tribos rivais.
         Aiauara estava acompanhado de Pikiwaha e trazia todos os apetrechos de pescaria, faltando apenas Monawa se juntar ao grupo, indo no meio da canoa, enquanto o cunhando remava na popa e o primo na proa. Era preciso remar rápido para aproveitar a calmaria matinal antes de alcançar a Ponta Grossa, porque com o sol acima dos morros a travessia do paraná de Itapiranga seria prejudicada pelos fortes ventos vindos do grande rio Amarelo e ninguém ousaria desafiar os banzeiros formados na saída das águas do Canaçari. Os amigos seguiram determinados e em pouco tempo estavam cruzando o paraná de Itapiranga, atingindo a boca do Purema quando o ar já se movimentava pelo céu como um bando de queixadas famintas.
         Tawacã ficou na aldeia tomando conta da filha e da lida diária das mulheres, procurando fazer seu trabalho como nos tempos de solteira, quando acompanhava a mãe até a roça para cuidar das plantações de mandioca, dedicando pouco tempo às brincadeiras com as outras crianças. Cayabi não desgrudava da prima, querendo saber como era a vida na aldeia dos caboquenas e como fora a experiência na fuga com Monawa, quando o casal teve de cruzar o Marupá em fuga, perseguido pela patrulha de Nahpy, o pai cujo desejo era recuperar a filha raptada.
         A jovem contava com satisfação as lembranças daqueles dias, recordando como tentara escapar da canoa, mas sem usar de toda a força nem de esperteza em empreender a fuga, mesmo sem conhecer o raptor e nem estar interessada em casar logo. As primas riram quando Tawacã contou que praticamente se deixara seqüestrar pelo guerreiro, facilitando as coisas, mesmo gritando por socorro e se debatendo em desespero de ser levada de sua aldeia querida.
         - Monawa estava tão desesperado que não conseguia me amarrar com firmeza e eu não fazia muito esforço de escapar, confidenciou à Cayabi, e ambas se olharam com cumplicidade, deixando soltas as gargalhadas.
         Xirminja se aproximou da filha querendo saber o motivo de tanta satisfação e ambas mudaram de assunto, dizendo conversarem sobre os tempos na casa das mulheres, mas a velha índia sabia que as recordações vividas em tal local não mereciam risos incontidos. Xirminja olhou as primas com a desconfiança natural de quem sabe estar se intrometendo na conversa alheia e por isso se afastou, deixando-as retomarem seus assuntos e ficou escutando as gargalhadas das duas.
         A vida na aldeia dos guanavenas transcorria com normalidade até Taobara chamar Monawa, logo quando este retornou da pescaria no Purema, para uma conversa em sua oca. O cacique guanavena queria saber notícias de seu amigo Meyki e como o mesmo estava preparando seus guerreiros, porque novas guerras se anunciavam por toda parte. Taobara fora informado sobre o aparecimento de Yepá e das conversas dele a respeito de uma terra onde os guerreiros eram poderosos e invencíveis e queria saber detalhes, se estreitar das novidades vindas das terras do rio Orowo.
         Monawa devia lealdade a Meyki e este o alertara de não falar nada sobre as aventuras de Yepá na Mundurucânia, informação sobre a qual o cacique caboquena queria manter segredo, ainda mais quando o índio já preparava uma viagem para encontrar seus amigos e fazê-los aliados. Monawa tergiversava sobre a história de seu irmão, afirmando que o mesmo passara tanto tempo vagando pela floresta que agora estava perturbado do espírito.
         - Não dê tanto crédito ao que lhe dizem a respeito de meu irmão, comentou o caboquena com Taobara, deixando o cacique mais desconfiado de que algo muito estranho ocorria na aldeia de Meyki, para ele próprio ordenar segredo sobre o assunto. O maioral guanavena raciocinava que o tratamento dispensado aos boatos da aldeia Maquará confirmavam os relatos de seus espiões, dizendo que o cacique caboquena pretendia romper a aliança das tribos e seguir sozinho na luta por mais território.
         Taobara não cometeu indelicadeza com Monawa e ainda o convidou a tomar parte em suas caçadas, quando a lua sumisse no céu, que transcorreria nos próximos dias. Depois o guerreiro caboquena saiu da oca do maioral e, então, Taobara chamou seus guerreiros mais próximos para confabular sobre as reticências de Monawa, afirmando ver muito claro Meyki alertando o caboquena para evitar conversas sobre o assunto e não denunciar sua intenção de buscar novos aliados e sair da esfera de domínio imposta pelo cacique dos guanavenas, desde quando Uataçara liderava os bravos do rio Orowo.
         Já havia passado duas luas cheias desde quando Monawa deixara sua aldeia, com a família, e se juntou aos seus parentes da tribo dos guanavenas. Neste período tinha saído para pescarias e caçadas, participara das reuniões dos bravos, fora convidado a se reunir com os anciãos e ouvira as histórias de Nahpy sobre a origem do povo do lago Canaçari contadas nas noites enluaradas, em volta da fogueira, na beira do lago. O caboquena estava integrado à gente de sua esposa, mas o desejo de retornar ao seu povo a cada dia se intensificava, ainda mais quando as perguntas de Taobara o deixavam sem respostas e as imposições de Nahpy o faziam se sentir cada vez mais submisso aos ditames do sogro.
         - Vamos retornar à nossa aldeia, disse o marido à esposa, quando ambos deitaram nas redes, depois de ouvirem os relatos de Nahpy.
         - Podemos ficar mais uns dias, pediu Tawacã. Talvez na próxima lua cheia, pois nossa filha está tão satisfeita no convívio com nossos parentes, argumentou.
         Monawa não costumava negar os pedidos da esposa, sempre cedendo aos seus desejos e fazendo suas vontades, mas agora era questão do caboquena se impor diante da situação porque estava há muito tempo fazendo só o que lhe mandavam. Estava farto do julgo de Nahpy e dos questionamentos de Taobara e até Aiauara se impunha diante dele como líder, dando-lhe ordens quando saíam para pescar ou caçar. Monawa precisava fugir dessa submissão na qual tinha se enredado e a única saída era o retorno à sua gente, onde era tratado como igual.
         - Não tenho mais vontade de permanecer nestas terras, preciso estar perto de minha gente, senão morro panema, comentou Monawa com a esposa.
         Tawacã sabia qual era a verdadeira razão por trás da vontade do marido de retornar à sua gente, pois assistia como seus parentes o tratavam e percebera muitas vezes o constrangimento dele quando fazia tarefas a mando de seu irmão Aiauara. A esposa vira em Monawa um fraco desde quando ele a raptara e só não morreram durante a fuga devido ela ter assumido o comando das tarefas, fazendo chás para curar a fatiga do futuro esposo e infundido-lhe coragem no momento de continuar a caminhada pelas matas tenazes do Marupá.
         No entanto, Tawacã tinha plenitude das ações e guardava só com ela o segredo do esposo fraquejando nestas situações, mas tampouco queria seus parentes percebendo o quanto a falta de vontade de Monawa o delimitava, embora suas obrigações de chefe de família fossem cumpridas com afinco. O caboquena já provara ser corajoso na guerra, quando lutara contra os muras, mas lhe faltava fibra de se impor diante das adversidades, e estes fatos deixavam Tawacã desconfiada se realmente seu esposo poderia ser respeitado por seus parentes. Um marido sem ímpeto era uma vergonha pela qual Tawacã não desejava passar.
         Ela queria sinceramente permanecer mais alguns dias com sua família, aproveitar a convivência com sua gente, mas as razões postas por Monawa, e até as por ele escondidas, eram motivos suficientes para acatar as ordens do esposo e retornar à aldeia dos caboquenas. A índia passou a noite inteira pensando na viagem de volta abraçada à filha, algumas vezes chegou a soluçar, mas quando o dia amanheceu, seu semblante não demonstrava nenhuma dúvida sobre a necessidade de ir embora, tanto que ela mesma deu as ordens para Monawa armar a canoa porque partiriam ainda nesta manhã rumo às terras dos caboquenas.
         Nahpy tentou mudar a decisão da filha, mas a negativa de Tawacã foi tão peremptória que o cacique percebeu não ter argumento de impedi-la de voltar com sua família à aldeia Maquará. Xirminja também pediu que ficassem mais alguns dias, mas nada fazia Tawacã mudar de idéia. O pajé procurou Monawa na beira do lago, quando este arrumava as bagagens da família na canoa e tentou convencê-lo fazer a filha nudar de idéia, mas a resposta que recebeu deixou-o atônito.
         - Estamos retornando a nossa aldeia não por decisão de Tawacã, mas porque sou eu quem quer voltar, disse Monawa.

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