SEU NOME SERÁ WAIÃPI, DISSE TAWACÃ AO MARIDO, QUANDO ESTE CHEGOU DA CAÇADA, embora o desejo de Monawa fosse colocar um nome mais apropriado a uma menina caboquena.
Os caçadores chegaram quase ao mesmo tempo na aldeia trazendo as caças e colocaram tudo no trapiche, mandando os meninos carregarem as peças defumadas para as mulheres iniciarem o preparo e amarrarem os dois jabutis ainda vivos, impedindo-lhes a fuga. Os bravos vindos acima do rio não perceberam, navegando com poderosas remadas para vencer a correnteza, a chegada de Yepá vindo da foz do Orowo, trazendo um grande carregamento em sua canoa solitária.
Ele também atracou sua embarcação no trapiche, ao lado das outras canoas. Mesmo sendo sua intenção não mostrar a fartura de sua caçada, não poderia passar despercebido aos demais que Yepá obteve sucesso na empreita. No convés de sua canoa estavam depositados um veado macho, como poucos viram de igual tamanho, algumas pacas e também cotias e três queixadas, uma delas ainda sangrando e com a flecha certeira cravada entre os olhos.
Era carne suficiente para alimentar a tribo durante vários dias, mesmo em período de festa, mas Yepá trazia uma prenda ainda mais valiosa, que mesmo todos os guerreiros da aldeia reunidos não conseguiram capturar: era um mutum, dos gigantes, que o cunhado prometera a Tawacã e a quem ofereceu quando a viu se aproximando com a pequena em seus braços.
A guanavena recebeu o presente e o repassou à mãe de seu marido que prepararia o caldo do mutum com o qual se fortaleceria do revés do parto. Ela ficou admirando a quantidade de caça na canoa do cunhado, quase o mesmo resultado produzido pelos outros guerreiros reunidos, sendo que em qualidade, a de Yepá era muito superior, pois as presas capturadas pelo caçador solitário eram de raros sabores e de difícil abate. Não poderia passar despercebida à Tawacã a destreza de Yepá na arte da caça, da mesma forma como não passou ao restante da tribo.
As armas eram as mesmas. Yepá levava consigo um arco com flechas, destinados aos animais grandes, uma zarabatana com setas envenenadas usadas na captura de pequenas presas e uma borduna com a qual dava cabo em definitivo caso o primeiro golpe não fosse suficiente para matar a caça. Os outros caboquenas também usavam os mesmos utensílios, mas com resultados diferentes: só conseguiram abater presas caçadas com freqüência e de fácil captura, que não cobravam grande destreza ou agilidade, somente sorte de topar na mata com jabutis lentos na fuga, incapazes de escapar diante de um grupo vasculhando as florestas.
Monawa percebeu a inveja dos outros guerreiros em relação ao seu irmão e mais uma vez tentou amenizar esses sentimentos, pois temia a reação perigosa que viria a ser fatal caso os caboquenas enveredassem por imaginar que Yepá fazia esse tipo de coisa tentanto se mostrar superior, desfazendo-se dos outros bravos, dispensando-lhes a companhia e a amizade. O jovem pai, elevado em categoria pela nova posição na aldeia, abraçou o irmão e o aproximou ao restante do grupo.
- Este é meu irmão e seu sangue é caboquena, bradou Monawa, impelindo aos demais a dar vivas ao caçador destemido.
A reação dos guerreiros não resultou no entusiasmo esperado por Monawa, mas mesmo assim ele ficou feliz ao ver os arcos de flechas sendo erguidos ao alto, em saudação aos feitos de Yepá, e este se mostrou aceito por sua gente, da qual estava separado do convívio há muitos ciclos de águas.
A festa foi realizada com todas as honras prestadas ao guerreiro que mostrara ser um grande caçador e para Tawacã, cuja filha era o orgulho da nação caboquena, a quem as homenagens eram alardeadas a cada posta de carne servida. Os índios evocavam aos ancestrais e Paharamim pela fartura desse dia e que se perpetuasse ao longo da vida da pequena Waiãpi e nada lhe faltasse no fortalecimento do corpo e na cura das doenças, antigas ceifadoras de crianças nos primeiros dias de existência.
Os índios comiam com fartura, saboreando as carnes que não paravam de ser postas na fogueira, sempre crepitante devido à quantidade de gordura queimada na brasa. O fogo produzia uma revoada de claridade ao incendiar a noite na praia e a fumaça impregnava os sabores das caças, aumentando a fome de todos, fazendo-os comer com a gula de quem tem muito, com ossos cobertos de carnes sendo jogados na areia, e imediatamente eram devorados pelas formigas.
A mãe de Monawa trouxe a Tawacã uma cuia com o caldo do mutum e somente o calor exalado do recipiente fumegante revigorou as forças da jovem índia. Ela entregou a criança à avó, segurando a cuia com ambas as mãos, sorvendo o líquido espesso e saboreando as carnes do animal, cuja vitalidade borbulhava na gordura do guisado. Tawacã tomou em pequenos goles, sentindo o alimento penetrar goela abaixo até o fundo de seu corpo e reacendendo dentro de si novas forças para alimentar a filha. De imediato seus seios responderam aos estímulos do caldo e fez brotar o leite viscoso com o qual inundaria de vida seu pequeno ser. Após saborear com prazer o restante da cuia, a guanavena retomou aos seus braços a pequena Waiãpi e lhe entregou o mamilo que não conseguia reter a explosão do jorro lacto e a criança mamou até adormecer, embalada pela cantoria de seus parentes e o afago de seus pais.
Quando a lua minguante despontou no céu, vinda das terras dos guanavenas, Tawacã se recolheu à oca, acompanhada pela sogra e as crianças menores, afinal chegara o momento de repousar na rede e esperar uma boa noite de sono. Os guerreiros permaneceram em volta da fogueira, comendo o restante da festa e agora inebriados pelo efeito do caxiri, servido à farta. Então um deles perguntou a Yepá como tinha feito para sobreviver aos perigos das terras das mulheres guerreiras e o bravo contou mais outra vez suas aventuras por florestas distantes e rios tempestuosos, caçando com índios destribalizados que vagavam pelo mato em busca de caças fartas e saques às aldeias desprotegidas.
Mas os bravos queriam mesmo era ouvir as histórias sobre os dias na aldeia das índias guerreiras, as mais fascinantes de todas até agora contadas, porque desmistificava a verdade de que nenhum homem sobrevivera ao encontro com essas mulheres ferozes.
Então Yepá relembrou seus momentos de aflição quando foi capturado, junto com seu primo Benry, levado amarrado no fundo de uma canoa além do grande rio Amarelo para as terras das mulheres guerreiras. Ele contou que quando chegaram na aldeia foram jogados no fundo de um buraco onde outros bravos de tribos diversas aguardavam o momento do sacrifício. Ele e Benry tiveram de lutar contra um guerreiro mura, capturado há mais tempo e considerado o maioral da fossa, tanto por respeito à sua tribo quanto por sua força. Os primos venceram o inimigo e imediatamente assumiram o comando do local, habitado por índios de tribos menores e de territórios distantes, que sempre foram caçados pelas guerreiras em suas incursões de captura aos sacrifícios ritualísticos.
Muitos dias se passaram no interior do buraco e eles eram sendo alimentados apenas com frutas jogadas pelas guerreiras, como se fossem animais de cria, esperando o dia da morte. E este dia chegou quando elas lançaram uma corda dentro da vala e mandaram que eles saíssem, um por um, até o alto do terreno, onde eram amarrados pelas mãos e pescoços. Foram levados ao centro da taba, enfileirados e açoitados, recebendo humilhantes castigos e desaforos e olhados com o desprezo natural de mulheres que não aceitavam submissão aos homens.
Yepá contou que estavam todos de pé, recebendo cusparadas no rosto quando apareceu a chefe das amazonas: Mauara. Ela estava vestida com cocar de penas vistosas e uma tanga de couro de onça encobria seu sexo, mas as coxas vigorosas e as pernas esculpidas em músculos embelezavam o conjunto de quadris firmes. O dorso também era adornado de forças, formando braços de guerreiras capazes de empunhar a borduna com vigor igual aos dos mais valentes. Ela se aproximou dos prisioneiros e seus passos deslizavam na terra, como se planasse acima do solo.
- Mauara trazia um colar de pedras brilhantes trançado no tornozelo, comentou Yepá aos outros índios, todos atentos a cada palavra saída de sua boca.
Ele disse que essas pedras causavam um som estranho a cada passo da líder das mulheres, anunciando sua chegada, imediatamente reverenciada pelas outras guerreiras. Quando ela se aproximou dos prisioneiros as índias a cercaram, como se a protegessem dos olhos apavorados dos homens, que mesmo em seu instante de morte ficavam fascinados com a beleza feroz de cacique.
Mauara passou por toda a fila de prisioneiros, observando-os com a curiosidade de quem vê pela primeira vez um exemplar do sexo oposto. Ela os olhava fixo e somente Yepá a encarou, e pode ver no brilho intenso que fluía do olhar da guerreira o mesmo medo que transbordava de seu coração de condenado à morte. A líder, por um momento, não pode disfarçar o transtorno de estar frente-a-frente com Yepá e deu um passo atrás, recuando diante do guerreiro caboquena que a desafiara nos olhos.
- Neste momento eu me salvei, disse o bravo.
Yepá explicou que Mauara percorreu o restante da fila, até o último dos condenados, depois retornou até ele e então o mandou pôr os braços a frente, neste instante, sacou uma lâmina atada em sua cintura e com ela cortou em um único golpe as cordas que prendiam suas mãos. Ela o segurou pela corda amarrada no pescoço e o arrastou até dentro de uma cabana, deixando para trás os outros índios e Benry, cada qual com a sua sentença.
Yepá foi levado a uma cabana cujo chão era todo forrado com peles de onças de variadas cores e uma decoração primorosa, parecendo a ele ser um capricho feminino sutil. As paredes estavam adornadas com pedras coloridas, todas polidas para realçar o brilho, e inúmeros cocares feitos de penas de aves raras enfeitavam os cantos. No centro da oca, uma única rede feita de fibras muito suaves ficava atada aos mourões. Ali chegava a luz vinda da clarabóia posicionada no meio do teto, por onde os ventos passavam e derramavam novos ares no interior da cabana.
O guerreiro caboquena foi deixado dentro da oca sem amarras ou grilhões. Nada impedia-lhe a fuga, mas sua intuição lhe dizia para ficar e aguardar seu destino, ainda mais quando gritos de desespero vieram da direção da taba e entraram com fúria na cabana. Entre os muitos grunhidos ele pode perceber o de Benry, apregoando às mulheres os piores insultos permitidos por seu idioma.
Yepá passou muito tempo no interior da oca, protegido dos suplícios infligidos os outros prisioneiros, até o último lamento cheger até ele, mas em palavras desconhecidas, embora a forma como foram caladas não deixava dúvida de tratar-se da morte, porque falava a mesma linguagem do desespero. O caboquena ouviu nitidamente o som das carnes sendo retalhadas, acompanhado de rumores de festa, cujo ritmo das danças chegava até ele pela trepidação do solo. Ele deitou na rede e esperou sua sorte, até adormecer pensando no primo Benry, despedaçado e servido em banquete de guerreiras inimigas.
O sono de Yepá não durou muito. Logo foi acordado por algumas guerreiras lhe servindo uma cuia com guisado, mas o caboquena reconheceu tratar-se de carne de bicho. Quando pôs na boca a comida oferecida pelas mulheres sentiu o sabor suave de capivara, então sorveu o caldo com gana, na certeza de não estar comendo o companheiro de caçadas. O guerreiro sentiu o vigor das forças retornarem ao seu corpo, trazido pela ingestão do caldo, de sabor inebriante devido aos temperos agora provados por Yepá.
O cheiro forte da comida nunca tinha sido apresentado ao caboquena e ele aproveitou cada momento do guisado pensando estar diante de seus últimos dias, mas em seu espírito uma ponta de esperança iluminava o desejo de sair vivo dessa experiência. A tenra carne da capivara dissolvia em sua boca, triturada pelas dentadas meditativas do caboquena, comendo com intenção de não acabar nunca. Mas quando a comida chegou ao fim foram-lhe oferecidas frutas, licores de bacaba e suco de araçá e ele, deslumbrado pela mudança no tratamento, desta vez comeu e bebeu com mais serenidade.
Quando se encontrou farto, Yepá olhou em sua volta e viu a chefe das índias guerreiras chegando ao interior da cabana. Mauara era ainda muito jovem e tinha assumido a liderança há pouco tempo, herdada de sua mãe. Ia passar por seu primeiro ritual de acasalamento e então geraria a menina guerreira que seria a nova chefe da tribo, como era tradição na nação das mulheres. Ela se aproximou do guerreiro, enquanto as outras deixaram a oca, levando consigo os restos da refeição de Yepá, até a última se retirar e a porta da oca ser trancada. Em seguida, os tambores ressoaram lá fora e os ritmos das danças se prolongaram até quando a luz retornou à clarabóia da cabana. Neste momento, Mauara e o caboquena já haviam se amado o suficiente para garantir até mais de uma geração de índias guerreiras.
Yepá ficou preso na cabana tempo suficiente de engravidar Mauara e quando isto aconteceu o casal pode voltar a ver a luz do sol no céu imenso. Durante todo o tempo do acasalamento os dois foram iluminados apenas pela claridade vinda do buraco aberto no meio do teto. O caboquena então podia passear pela aldeia, comia com as guerreiras e procriava com elas, sempre vigiado para não tentar fugir da taba, mesmo porque deveria engravidar quantas mulheres estivessem em condições de conceber.
Foram dias alegres na vida do caboquena, bem alimentado e bajulado por tantas índias que pouco tempo tinha de pensar em como voltar a sua aldeia, embora nunca houvesse sentido tanto prazer em estar vivo, mas desconfiava que quando estivesse emprenhado a última guerreira, sua vida não teria mais valor algum a elas, e deixava o tempo correr, na fartura do sexo e da comida servida na rede.
Ele de vez em quando recebia a visita de Mauara e percebia seu ventre se avolumando com o passar da gravidez e a ela dedicava os maiores carinhos, as atenções no detalhe do amor e os suspiros prolongados de seu gozo. Seu sentimento o fazia sonhar com a possibilidade de poder viver ali para sempre, em seu reino de único macho, usufruindo todas as guerreiras e do amor da maior delas, a chefe. Mas seus dias caminhavam ao fim. As mulheres estavam ficando enjoadas pelos apuros da gravidez e voltavam seus rancores contra Yepá, deixando-o sem se alimentar com boas carnes e reduzindo seus amores apenas com Mauara.
Um dia, a chefe das índias implorou entre lágrimas que ele abandonasse a aldeia, fugisse até o outro lado do grande rio Amarelo, onde encontraria a salvação. O caboquena buscou uma canoa na tentativa da empreita, mas não achou nenhuma e arriscou a fuga pela mata, se embrenhando na floresta por dias inteiros, correndo de uma perseguição implacável das guerreiras. Com muito esforço atravessou igarapés e venceu barrancos, sobreviveu comendo folhas e se escondendo em altos das árvores, onde se amarrava com cipós para não cair quando o sono o dominasse. Mas sempre sentia seus passos seguidos de perto, até cruzar a nado um rio extenso, de águas claras, com a certeza de estar bem afastado do grande rio Amarelo, e então pode descansar. Finalmente se sentiu a salvo do destino ao qual eram condenados todos os homens que tivessem contato com as mulheres guerreiras.
Mas tampouco seus dias se tornaram melhores, andando sem destino em terra estranha e sem saber se caminhava em direção a perigos maiores aos já enfrentados. Por isso seus passos eram cautelosos, vagando com a sutileza das onças e o espanto das pacas, olhando cada árvore à frente como se atrás dela se escondesse um inimigo e perscrutando as infinitas possibilidades antes de seguir adiante. Yepá esgueirava-se por trilhas onde qualquer pessoa menos cautelosa andaria sem temores e quase sumia tendo se passar por lugares mais suspeitos.
Esta vida de perigos constantes transformou seu semblante e os músculos, antes torneados, deram lugar a braços esquálidos; seus cabelos penteados com afinco, no tempo da bonança na aldeia de Mauara, agora eram emaranhados de carrapicho, trançados como corda, e seu rosto trazia marcas profundas feitas por cipós titicas ao segurarem seus passos durante a fuga. O caboquena sobreviveu às dificuldades impostas por seu destino quando caminhava na selva, melhorando a alimentação depois de descobrir novas frutas e raízes, foi se familiarizando com o terreno, descobrindo seus segredos, até conseguir ter boas lembranças do tempo de solidão na terra dos mundurucus.
Yepá os encontrou pela primeira vez quando estava na beira do rio Mawé, na fronteira do território desses índios com o dos saterê. Eles pescavam na beira e passaram com suas canoas bem próximo de onde se escondia o caboquena, falando uma língua diferente, mas algo em sua sonoridade lembrava o idioma do fugitivo. Ele evitou a aproximação, mas vigiou por muitos dias as atividades dos munducurus, protegido pela cumplicidade da floresta. Observou o método de pesca dos estranhos e os viu tirarem os peixes da água com a ajuda de flechas, alcançando-os de surpresa enquanto nadavam. O caboquena desconhecia esta técnica e se impressionou com a agilidade e a pontaria deles.
- Em uma batalha atingem tranqüilamente o adversário à longa distância, comentou Yepá para si próprio, e esta certeza o fez se esconder ainda mais na floresta, ficando longe da vista dos inimigos e da possibilidade de ser descoberto.
Mas a curiosidade do caboquena o arrastava para perto dos desconhecidos, chegando à ousadia de visitar seu acampamento quando estavam ausentes e o que encontrou entre os pertences dos munducurus o deixou ainda mais assustado; eram lanças com afiadas pontas, capazes de penetrar fundo no couro de uma anta e derrubá-la com apenas um golpe, e lâminas de corte amoladas o suficiente para desfazer de sua pele uma paca, com a rapidez e eficiência. Eram armas poderosas, de caçadores ou guerreiros, e num primeiro impulso Yepá pensou em furtá-las, mas sua intuição precavida mostrou-lhe que este ato denunciaria sua presença, então deixou tudo intacto, na esperança de que o valor de seu comportamento facilitasse a amizade com os desconhecidos.
O caboquena estava cada vez mais próximo dos munducurus e estes já o haviam percebido, mas evitavam caçá-lo por não se importarem com a presença de um inimigo solitário, que demonstrava estar mais precisando de ajuda que propriamente ser uma ameaça. E um gesto fez Yepá arrefecer sua desconfiança e tentar uma aproximação: uma cuia com peixe e bolo de mandioca no trapiche, numa demonstração tão clara de terem deixado para ele, uma oferenda. O caboquena apanhou a cuia e devorou o peixe como há muito não o fazia, depois deixou tudo em seu lugar, procurando apagar sua presença ali.
Depois de repetirem várias vezes este gesto, Yepá compreendeu que os desconhecidos o aceitariam e assim apareceu. Os munducurus retornavam da pescaria e encontraram o caboquena no meio do caminho, estava em frangalhos, mas a altivez de sua presença causou um sentimento imediato de amizade e foi assim que deixaram Yepá fazer parte de seu grupo, ofereceram-lhe comida e remédios para curar as feridas e espantar os carapanãs que tanto o atormentavam nos momentos de fuga.
Em poucos dias o caboquena estava recuperado e participava da pescaria com os novos amigos, mostrando interesse redobrado, procurando gravar em sua cabeça as palavras aprendidas e repetindo os mesmos gestos dos munducurus até se parecer um igual. Ao caboquena foi uma questão de sobrevivência ser aceito no grupo de índios e mais sorte teve quando foi levado à aldeia deles e lá passou um ciclo de água, aprendendo seu idioma e sua cultura, aumentando seu conhecimento com os modos de caça e de pesca dos agora parentes distantes.
Yepá contava suas aventuras com os olhos brilhando de contentamento e arrastava a atenção de todos de sua tribo, que escutavam sem desprender a atenção dos fatos, até descobrirem um detalhe diferente da última vez que ouviram a história, mas o aventureiro não deixava falhas em sua narrativa, pois lembrava de tudo e contava como se estivesse marcada em sua memória cada palavra de sua vida. Passavam tempo escutando as aventuras de Yepá e a verossimilhança de sua fala era um atestado de verídico ao que contava.
Monawa encheu uma cuia de caxiri e ofereceu primeiro ao irmão e depois aos outros guerreiros. As aventuras de Yepá eram motivos de orgulho a sua família e, já inebriado pelo caldo fermentado, pediu a palavra e saudou os feitos do parente.
- Este é meu irmão, o aventureiro dos caboquenas, disse sem muita eloqüência, antes de abraçar Yepá e quase cair em seu colo.
Yepá gostava dos afagos e do respeito com que sua gente ouvia a narrativa e deixava aumentar o orgulho, envaidecendo-se pelo fato de ter percorrido tantas terras enquanto seus parentes mal haviam deixado as margens do rio Orowo e percorrido pequenas distâncias além do grande rio Amarelo.
Outro índio quis desmerecer as aventuras de Yepá e o contestou em desafio, afirmando ser tudo mentira e que ele deveria ter passado todo esse tempo em casa de parentes em outra aldeia.
- Eu soube que tu estavas com os bararurus, lá pelas bandas do rio Itapani, declarou Zo’é, um índio conhecido por sua valentia nas guerras e disposição ao conflito quando o caxiri o convencia de que bravata amolecia a coragem dos outros bravos.
- Quem te falou isso zombou da tua credulidade, rebateu Yepá, já pronto a iniciar uma discussão com o desafiante.
Monawa se pôs entre os dois e evitou a luta de ambos, mas o clima ameno foi desfeito pela tentativa de imputar dúvidas ao que Yepá dizia, e ser mentiroso na aldeia era uma condição que desqualificava o homem perante toda a sociedade. Yepá não poderia deixar sua palavra perder valor diante de sua gente, então retrucou para todos ouvirem.
- Se quiserem saber se falo a verdade, então convido todos a me seguirem até a terra da Mundurucânia, onde os apresentarei aos meus amigos, os guerreiros mais corajosos e de armas mais poderosas que já conheci, desafiou Yepá, olhando aos guerreiros e procurando adivinhar se a coragem deles fosse capaz de levá-los para além das terras onde se escondiam dos muras e das outras tribos mais aguerridas.
O chefe dos caboquenas escutou o desafio de Yepá e logo determinou uma comitiva que iria acompanhar o aventureiro até estas terras para conversar sobre uma possível aliança. Meyki viu nesta política uma condição de escapar ao domínio dos guanavenas nas alianças feitas anteriormente e, se trouxessem os munducurus para o seu lado, poderia estabelecer uma nova relação com Taobara, que sempre impunha sua vontade por ter a maioria dos guerreiros. Meyki ainda não tivera oportunidade de guiar seus guerreiros em grandes lutas, estava no comando há pouco tempo e ávido por participar de guerras e conquistar de vez o respeito de sua gente. Mas havia a liderança política de Taobora sobre as tribos aliadas e o cacique caboquena estava pensando em reorganizar essas forças.
A partida da comitiva passou a ser tratada em segredo entre os caboquenas, por isso Meyki chamou Monawa e mandou ele evitar falar sobre esse assunto com a esposa, Tawacã, para ela não levar essa informação à sua gente quando fosse visitar sua família e apresentar aos guanavenas a pequena Waiãpi.
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