domingo, 7 de agosto de 2011

Capítulo 12- Tocaia dos Mortos

         TAWACÃ PASSAVA A MÃO SOBRE O VENTRE ENORME ENQUANTO FABRIVACA PEQUENAS CANOAS com troncos de inajá e as largava no rio Orowo, na esperança da correnteza e os ventos levarem notícias suas até a ilha Saracá. Estava vivendo com os caboquenas há quase um ciclo de água e a felicidade dos primeiros dias havia dado lugar a uma tristeza sorumbática, forçando ela a passar grandes momentos olhando o rio correr na direção do Canaçari, onde vivia sua gente. Há pouco tempo abandonara o trabalho na roça, porque sua barriga crescera tanto que a impedia de fazer qualquer tipo de esforço e suas pernas já não conseguiam mais sustê-la em pé. Durante o período de espera do nascimento do primeiro filho, seu temperamento mudou bastante. A jovem guanavena que chegou na tribo do marido repleta de sorriso e satisfação agora estava enredada dentro de uma solidão da qual nem os mimos de Monawa eram capazes de libertá-la.
         Seus pensamentos farfalhavam ao som das folhas nas copas das árvores, indo ao tempo de infância quando via seu pai massageando a barriga das grávidas para terem bom parto. Essas saudades chegavam com mais afinco quando sentia os pontapés da criança guardada em seu ventre ansiosa de vir à luz. Então ela mesma passava as mãos sobre a protuberância da pele, buscando os pontos sensíveis e encontrava alívio passageiro, perturbado apenas por outro chute e novas dores, agudas como lanças, que a traziam de volta ao mundo.
         Tawacã pensou muitas vezes em pedir para Monawa levá-la até a ilha Saracá, pois gostaria de parir na segurança dos cuidados do pajé guanavena, mas reconhecia ser esta idéia um desrespeito à hospitalidade da gente de seu marido, por isso esperava ansiosa pelas primeiras dores do parto. A futura mãe queria se livrar logo do peso em sua barriga e enfrentar rápido os perigos iminentes de dar a luz sozinha, no meio do mato. A mãe de Monawa ensinara a preparar o forro no chão com folhas de palmeiras para repousar a criança quando ela nascesse. Mostrou a Tawacã como proceder no momento de cortar o cordão umbilical e como se desfazer da placenta. A jovem índia se sentia preparada a enfrentar sua primeira missão de mãe, mas quando mais este dia se aproximava, mais se sentia insegura. Ela sabia que sua vida e de sua criança dependeria de sua força para enfrentar a dor e da lucidez com que teria de cumprir estas tarefas, mesmo depois de ter passado pela experiência alucinante de pôr no mundo um ser vivo.
         Voltou a lançar ao rio um olhar cumprido, até seus pensamentos ruidosos se confundirem com o rumor festivo vindo do centro da aldeia dos caboquenas a despertar Tawacã de seu torpor. Ela viu as crianças correndo em sua direção, todas anunciando algo e em tantas vozes sobrepostas que se tornavam inteligíveis. A maior delas chegou primeiro à sombra onde a guanavena repousava e disse assustada algo como se um espírito tivesse retornado do mundo dos mortos e agora estava em pé, no centro da taba, contando histórias fantásticas aos índios tão assustados e fascinados como somente aqueles, a quem a realidade vira um sonho, podem ficar.
         A jovem índia se levantou com dificuldade. A barriga imensa a impedia de realizar movimentos bruscos, mas uma vez em pé reuniu a pouca força que seu corpo arredondado poderia oferecer e correu pela praia, acompanhada de todas as crianças, e quase sem fôlego entrou na taba e, de imediato, distinguiu na multidão um guerreiro nunca visto nem imaginado. Era tão diferente de todos que bem poderia se passar por um enviado de Paharamim, tal era sua formosura, radiante como o sol a ponto de emanar uma luz ofuscante, mas ao mesmo tempo tão suave que atraía os olhares de todos: era Yepá, o irmão de Monawa que há dez ciclos de águas havia saído para caçar e nunca mais retornara.
         Enquanto os guerreiros queriam tocar no corpo do recém-chegado, as mulheres choravam de emoção ao ver que o pranto derramado em tempos passados serviu para resguardar Yepá dos perigos enfrentados em terras distantes. Ele tentava caminhar entre a multidão, mas eram tantos braços a turvar-lhe o caminho que, embora mais alto e mais forte, não conseguia se desvencilhar dos curiosos querendo ter certeza de se tratar de uma pessoa e não de um fantasma. Entre tantos abraços, o desaparecido se deixou envolver mais forte pelo de seu irmão e Monawa ainda teve de vencer a barreira formada por homens, mulheres e crianças para Yepá poder ser visto e tocado pelos dedos vacilantes de sua velha mãe, que recebia o filho desgarrado com as mesmas dores de quando o pôs no mundo.
         Quando a multidão enfim cedeu à curiosidade despertada pela volta de Yepá, Monawa pode levar até ele sua esposa a quem apresentou como se fosse um amuleto trazido das terras dos guanavenas.
         - Ela é filha do pajé Nahpy, disse Monawa, orgulhoso de sua jovem esposa prestes a lhe dar o primeiro filho.
         Yepá olhou Tawacã e o sorriso dele atravessou-a como uma lança. Mas outra sensação não sentiu a jovem porque novamente outras pessoas se puseram a querer ver o guerreiro e ouvir suas histórias, afastando Yepá de seus familiares. A multidão o arrastou para fora da oca e muitas mãos quiseram tocá-lo, supondo nesse momento algo de mágico no espírito do caboquena, que viajou por tantos rios, conheceu outras gentes e viveu com tribos desconhecidas. Os curiosos não queriam perder nenhuma palavra dita por Yepá e o atropelavam com perguntas sobre como eram as mulheres guerreiras, o que comiam e quais eram suas armas de guerra.
         Tawacã encontrou no sossego da oca sua rede e deitou com intenção de descansar até o dia do parto. Ficou ouvindo o burburinho vindo do pátio, com centenas de vozes questionando e somente uma se sobressaindo com respostas, explicando mais de uma vez como fora aprisionado pelas índias guerreiras, como teve de se submeter às vontades de sua maioral e ao restante da tribo e o que fez para escapar de um destino cruel, ao qual era submetido todo aquele capturado pelas mulheres hostis aos homens.
         Foi assim a noite toda e as fogueiras tiveram de ser reanimadas com lenha extra para prolongarem as conversas, até Tawacã ceder ao sono e adormecer com a voz do cunhado embalando seus sonhos. A jovem guanavena encontrou a melhor posição de descansar o ventre exuberante e sonhou com as aventuras de Yepá em terras distantes e, em seguida, se viu andando nas praias de sua ilha natal, amparada na caminhada pelas mãos do pajé Nahpy e de sua mãe Xirminja, e foi então que seu pai revelou à filha o segredo iminente de seu parto.
         - Tu darás a luz uma menina, vaticinou o pajé no sonho de Tawacã.
         A guanavena acordou assustada, sentindo a presença da família ao seu redor, mas encontrou-se sozinha na oca. Toda a tribo de seu marido estava escutando as aventuras do recém-chegado. Ela passou a mão sobre a barriga e sentiu dentro dela uma pequena forma de mulher e pensou que, embora Monawa desejasse um primogênito, este teria de aguardar mais um pouco até realizar o sonho de oferecer um guerreiro a sua tribo.
         Na manhã seguinte, a aldeia acordou em estado de letargia com as gentes dormindo quando deveriam estar pescando ou cuidando do roçado. As crianças deixaram de fazer suas tarefas matinais e as mulheres sequer tinham iniciado o preparo da primeira refeição, mas os homens não reclamaram dessa desatenção porque também estavam sorumbáticos, depois de passarem a madrugada inteira ouvindo as narrativas de Yepá sobre suas aventuras.
         Quando o sol se levantou no horizonte, Tawacã reuniu forças e saiu da rede, se dirigindo à praia para tomar o primeiro banho. No caminho, encontrou Yepá em volta da fogueira. A guanevena ficou surpresa com a vitalidade do guerreiro, mesmo depois de passar a noite em claro, falando sem parar e respondendo a todas as perguntas, enquanto o resto da tribo dormitava ainda sob o sol alto. Ele assava um peixe, tendo ao lado uma cuia com farinha de mandioca e seus apetrechos de caça. Quando Tawacã se aproximou, o guerreiro ergueu os olhos e repetiu o mesmo sorriso que encantara a jovem no momento de sua chegada.
         - Vou caçar, disse Yepá à cunhada, quero trazer um mutum e preparar um guisado para comeres depois do parto.
         Tawacã sorriu agradecida a boa vontade do cunhado, mas embora tentasse falar para ele não se preocupar, as palavras saídas de sua boca não correspondiam ao seu pensamento e ela quis saber como ele faria para encontrar o animal que buscava. O guerreiro disse conhecer os segredos de uma boa caçada. Vivera nas matas um bom tempo, quando buscava o caminho de volta a casa. Explicou ainda que teve de viver com outras tribos, com as quais aprendeu a imitar o canto de mutum e capturá-lo sem esforço. Yepá contou também como aprendeu a fazer tocaia e surpreender as maiores feras da floresta e como usar a pintura corporal para se dissimular nas matas e ficar invisível aos olhos dos predadores.
         As palavras de Yepá eram como feitiços, difíceis de serem desacreditadas. Então ele apanhou uma pedra de carvão na fogueira e amassou entre os dedos, até reduzir tudo a cinzas e passou no rosto, tornando negra sua pele. Ergueu os olhos e disparou um sorriso para Tawacã que ficou encantada com a alvura dos dentes do guerreiro, destacados ainda mais sobre o negro de seu rosto. Ele se levantou da posição de cócoras e se pôs de pé, com os músculos à mostra e aparentando uma disposição suficiente para conquistar o mundo.
         A guanavena percebeu ali um homem diferente. Todos os outros estavam dormindo depois de passar a madrugada escutando as histórias dele e ele, que passara o tempo todo respondendo às perguntas, estava acordado e disposto a sair e caçar, com os olhos atentos e o espírito pronto para embarcar em novas aventuras. A jovem índia não pode conter as palavras e, embora soubesse das muitas perguntas feitas ao cunhado, não pode controlar a vontade de fazer mais uma.
         - Qual o teu segredo para te manteres tão disposto, mesmo depois de passar a madrugada em claro? questionou Tawacã.
         - Meu segredo é isto, e se chama guaraná, revelou o guerreiro, tirando do alforje a tiracolo uns caroços redondos, duros como pedra, e entregou na mão da índia, que os recebeu assustada como se fossem a revelação de algo mágico.
         Tawacã segurou as sementes como se tivesse nas mãos um tesouro. Primeiro analisou o peso e constatou serem leves, depois verificou estarem envoltas em finas cascas, como embrulhadas para guardar sua energia, levou-as próximo ao nariz e não distinguiu cheiro nenhum e, sem vacilar um momento, pôs na boca quando Yepá pediu que as comesse. A filha do pajé pode enfim sentir o amargor das sementes depois de triturá-las com os dentes, mastigando até transformar tudo em uma pasta dentro da boca, mas não conseguiu engolir com facilidade, o que levou Yepá a oferecer uma cuia com água para ajudar na degustação. Ela bebeu a mistura e sentiu seu corpo invadido por uma força surpreendente, lhe despertando os sentidos e revigorando as pernas.
         - São enfeitiçadas? quis saber a jovem índia.
         - Não. São sementes de uma árvore que nasce nas terras de índios amigos, na Mundurucânia. Eles as usam para curar doenças e deixarem alertas aos panemas, explicou o guerreiro, ensinando a cunhada a comer uma semente a cada dia, para ter um parto tranqüilo e recobrar as forças rapidamente depois de dar a luz. Ele ofereceu um punhado do caroço a Tawacã, que o recebeu e depositou na cuia com a qual bebera a mistura. Ela se sentiu melhor e foi caminhando pela beira do rio, disposta a tomar um grande banho, com os pensamentos repletos de vitalidade e o corpo arejado por uma brisa nova de energia.
         A índia entrou no rio, mas foi como se somente seu corpo alcançasse as águas. Seu espírito mesmo divagou pelas altas das árvores levando o pensamento a acompanhar a leve brisa soprando nas copas. Era uma sensação estranha devido aos fatos dos últimos dias terem sido de extremo cansaço, mas agora ela sentia suas energias de volta e eram tantas que lhe deu vontade de sair nadando. Ela submergiu no rio, com a barriga atrapalhando a aerodinâmica do corpo, conseguiu realizar um bom mergulho, alcançando boa distância da margem. Então respirou profundamente, até o ar dos pulmões fazerem-na flutuar e ficou boiando sem sentir o peso do ventre, deixando-se levar pela correnteza rumo à sua ilha amada.
         Logo a índia ganhou distância da praia e Yepá se viu obrigado a resgatá-la do perigo iminente, assim montou em sua canoa e foi buscar a cunhada do meio das correntes traiçoeiras do rio Orowo, mas ela não conseguiu embarcar e pediu apenas para ser rebocada até a praia, agarrada na popa. O guerreiro remou de volta à praia, mas as mãos de Tawacã seguras no costado da canoa desviavam o olhar de Yepá e este não fez um percurso em linha reta, demorando nas remadas e vencendo a correnteza com menos destreza do que quando enfrentara condições piores de navegabilidade.
         Ele enfim a deixou na segurança da praia e outra a vez a alertou para comer uma semente de guaraná por dia e, sem desembarcar de novo, rumou ao meio do rio, cavalgando nas ondas com perícia de grande remador. Realizou uma manobra brusca e deu um giro de popa a proa, posicionando-se para descer o rio e utilizando agora o vento como aliado. Yepá só precisou de algumas remadas e alcançou as árvores do igapó, se virou em direção à praia e viu a cunhada próxima do rio, observando-o remar em busca da caça, sendo por impulso que ergueu o braço, espalmando a mão num gesto indecifrável.
         A índia lhe respondeu com o mesmo gesto, até o guerreiro desaparecer entre as árvores do igapó. Depois voltou bem próximo da fogueira, jogando mais lenha na frágua para reacender-lhe o fogo. Precisava tanto de calor quanto de dar início às tarefas diárias. Tawacã colocou os peixes na grelha para serem assados, depois amassou a pasta de mandioca e fez os bolos, que também iriam ao fogo, e quando estava quase pronta a comida os primeiros índios foram deixando a taba, atraídos pelo cheiro do alimento, chegando perto da fogueira. Comeram com fartura, como sempre fora na terra dos caboquenas. Então um deles se lembrou de outro parente que faltava.
         - Onde está nosso irmão Yepá? lembrou um deles.
         - Já saiu para caçar, respondeu Tawacã.
         - Ele é maluco, comentou Monawa, que de tão afastado do irmão não se lembrou de que o mesmo deveria estar com eles para a primeira refeição do dia.
         Monawa ficou desapontado pelo fato de Yepá sair para caçar sozinho, pois aos caboquena a caçada era uma atividade coletiva, feita com irmãos e amigos, com a força de todos ajudando a matar grandes presas. Mas ao mesmo tempo, ele justificou a atitude do irmão, explicando que o guerreiro passará tanto tempo longe de sua gente que não poderia ser considerado como um igual.
         - Meu irmão está esquecido de nossos costumes, falou aos outros caboquenas que também queriam estar junto de Yepá nesta primeira caçada.
         Os guerreiros então combinaram de fazer uma caçada entre eles, para comemorar a volta do parente desaparecido, prometendo trazer mais presas do que Yepá e realizar uma grande festa, com a qual dariam as boas vindas ao desgarrado, que já no segundo dia de sua estadia na tribo cometera a desfeita de caçar sozinho, sem convidar ninguém, como se fosse capaz de dispensar a ajuda do irmão e dos parentes.
         Monawa sentiu alguns índios aborrecidos com seu irmão e prometeu falar com ele quando chegasse da caçada, mas novamente amenizou seu ato como sendo natural de alguém acostumado a viver sozinho, sem contato com parentes e tendo de sobreviver por suas próprias habilidades. Pelas histórias que contara na véspera, os índios passaram a ver Yepá mais como um espírito do que uma pessoa de carne e osso. Foram tantas as aventuras, tantos os perigos vencidos, tantas honras conquistadas e tantos amigos feitos que seus atos facilmente alcançaram a natureza mística, como a dos heróis do universo caboquena.
         Os guerreiros foram caçar quando o sol já estava no centro do céu, seguindo rio acima, em busca das capivaras que nesta época invadiam as ocas de parentes em busca de algo de roer, tantos eram os bandos vagando na floresta. Também pretendiam caçar anta, cuja carne era apreciada pelos caboquenas e com a qual destinguiam os bons convidados, oferecendo aos afortunados um acepipe de valor, mostra da boa receptividade e da destreza do anfitrião.
         Tawacã ficou a ver os guerreiros se distanciando da aldeia, com a mesma contemplação duvidosa de quando viu Yepá partir em sua caçada solitária pela manhã. Todos prometeram a ela boas carnes para se recuperar do parto, mas precisariam retornar com urgência porque nesta mesma noite ela conheceu suas primeiras dores. A futura mãe as sentiu como cólicas vindas de suas profundezas em ruidosas ondas sísmicas, como se uma enxurrada estivesse contraindo seu útero com o objetivo de expulsar de dentro dele o ser gerado por todo esse tempo de gravidez.
         A primeira reação da jovem índia foi buscar as sementes oferecidas por Yepá, mas o ato de levantar da rede era demais ao seu corpo alquebrado pelo sobrepeso dos últimos dias. Então, ela só encontrou forças de virar a posição, buscando uma mais confortável. Esta medida não aliviou seus tormentos e uma nova saraivada de contrações a atingiu no mesmo instante em que retorcia as costas, elevando o ventre para cima, em busca de alívio, mas com o olhar fixo no teto da cabana.
         As contrações se tornaram mais freqüentes e a cada momento viam com intensidade redobrada, arrancando da índia o primeiro esgar de sofrimento, pois sua boca se contraiu e ela só teve forças de lançar um gemido silencioso. Seus olhos também se cerravam no intuito de ignorar com a cegueira momentânea a lancinante dor provocada pela dilatação de seus ossos. Ela percebeu que o momento do parto chegara e nada era possível fazer para adiar o encontro da guanavena com seu destino.
         Tawacã reuniu todas as suas vontades e se pôs de pé, agarrando-se ao punho da rede para a vertigem não derrubá-la através dos rodopios da tonteira. Ela saiu tateando na escuridão da oca, tropeçando entre as redes, até chegar onde dormia a mãe de Monawa, e esta não se surpreendeu ao ver a nora entrando em trabalho de parto, por isso guiou-a até a saída da cabana. A jovem índia pariu nas margens do rio Orowo, como nasciam os caboquenas deste tempos  imemoriais.
         O contato com a brisa fresca da madrugada trouxe novas forças à Tawacã e ela inspirou como se estivesse sedenta de ar, tentando vencer a sufocação de suas dores que estavam roubando um pouco de sua vida. A guanavena colocou na boca uma semente de guaraná, das oferecidas por Yepá, e saiu em passos apressados até a beira do rio, aonde vinha preparando o local do parto. Ela mordia as sementes com força, tentando compensar com a fúria das dentadas as contrações do útero, cada vez mais impossíveis de suportar devido à intensidade como se manifestavam.
         A jovem caminhou até a acapuraneira escolhida como local do parto e onde havia acumulado palmas e folhas, fazendo a cama na qual daria ao mundo seu filho. A futura mãe terminou de limpar um espaço entre duas raízes da árvore e começou a tecer ali o berço onde receberia seu primogênito, no acolhedor colchão feito de folhas, sobre o qual Tawacã se pôs de cócoras, esperando alívio no parto, contraindo o rosto ao sabor dos espasmos e olhando as estrelas acima de sua ilha amada, na direção da foz do rio Orowo.
         As estrelas ganhavam formas diferentes no céu conforme as dores se intensificavam no útero e ela, prostrada de cócoras sobre as raízes, aguardava o momento de se tornar mãe. Nos últimos tempos vinha se preparando para a ocasião com afinco de quem espera deixar uma grande geração às tribos de seu pai e de seu marido. Os espasmos foram acelerando o ritmo, dando-lhe a certeza de em breve uma criatura ser expulsa de seu ventre, repetindo assim o gesto eterno de toda a natureza.
         Tawacã continuava a fitar as estrelas, buscando nelas força de superar a atrocidade imposta por sua condição de fêmea, geradora de vida e de homens. De repente seus olhos se cerraram com tanta força que a escuridão da noite se transformou nas trevas tenebrosas do desmaio, mas seu corpo se manteve teso, dobrado sobre as pernas e equilibrado em cima das raízes. Então foi quando sentiu os primeiros fluidos sendo expelidos por seu corpo e a dor se tornou tão intensa que a índia arrancou um galho de uma árvore próxima e o pôs na boca, mordendo com ferocidade a densa madeira até seus dentes cravarem-se no lenho.
         Foi um parto sem gemido. A cabeça da criança surgiu abrupta das entranhas dela e com apenas uma contração ela a depositou inteira no chão, sobre o berço de folha entre as raízes da acapuraneira, banhada por sangue e com a placenta ainda a lhe fornecer o ar da vida. A mãe se deixou embalar pelo torpor do alívio e seu corpo adormeceu por um rápido momento, levando seu espírito a uma viagem até a ilha Saracá, para anunciar ao pajé Nahpy que tudo transcorrera normalmente e sua filha havia cumprido o destino da maternidade, com a vida por inteiro e a sensação de ter-se igualado às mulheres mais respeitadas das tribos: era mãe.
         Mas a índia foi despertada de seu sonho pelo som sufocado vindo da criatura deitada no chão, um gemido abafado que somente ouvidos de mães eram capazes de detectá-lo. Os ganidos de sua criança fizeram Tawacã recuperar a consciência totalmente e buscar embaixo de si o corpo ensangüentado do filho, segurando-o com os carinhos de suas mãos banhadas pelo suor das dores. A jovem levou até seu colo a criança e a examinou com a atenção proporcionada pelas luzes das estrelas. Primeiro apalpou todos os ossos e os sentiu fortes, repuxou a pele e ela se mostrou firme, passou a mão sobre o ventre da criança e seu tato certificou a delicadeza daquela barriga que só poderia de alimentar de leite e segurou entre os dedos a tibieza do cordão umbilical, levando-o até boca, e cortou com uma única mordida a linha ligando seu filho ao resto de seu corpo.
         A criança só conseguiu saltar o forte choro quando mergulhada nas águas do rio Orowo e os sons de sua boca a anunciaram à aldeia dos caboquenas. As índias foram as primeiras a acorrer até a praia e saudar a criança que traria orgulho à família de Monawa. E quando chegaram no local onde se banhava Tawacã, encontraram-na abraçada à criança e demonstrando tanto carinho que outras mães se emocionaram ao ver a jovem acalentando o filho, enquanto este soltava os pulmões num choro que aos poucos foi atraindo o restante da tribo.
         As velhas também entraram na água para ajudar a jovem mãe terminar seu banho e preparar a criança em sua primeira mamada e não foi difícil fazer a pequena boca alcançar as tetas da índia, entumecidas pela avidez de amamentar e já lançando jatos de leite, explodindo de seios tão fartos, que muito bem poderiam alimentar não apenas sua prole, como também a de outras mães, cujo organismo não produzisse o líquido necessário para fortalecer a cria.
         Tawacã ajeitou a criança às suas tetas e esta, ao segurar o mamilo, de imediato silenciou o choro e somente se ouvia o chuchar de sua boca nos peitos da mãe, orgulhosa ao contemplar o ato resplandecendo de um amor que a fazia se sentir doando um pouco de si àquela nova vida. A jovem parturiente foi caminhando em direção à praia, disposta a mostrar à tribo a recém-nascida, que já demonstrava força e saúde pela forma como sugava o leite de seu seio.
         - Mame o quanto quiser, sussurrou a mãe à criança, enquanto dava os últimos passos dentro da água antes de atingir a areia.
         Ao chegar à praia, os membros da tribo foram ao seu encontro dela e deram as boas vindas ao filho de Tawacã e Monawa, cujo destino seria de glórias porque seu sangue trazia a amálgama de duas famílias respeitadas pela coragem dos homens, a beleza e a saúde das mulheres, a alegria das crianças e a sabedoria de seus anciãos.
         Tawacã retirou a criança de seu seio e a ergueu aos olhos da tribo, deixando os parentes surpresos quando identificaram o sexo da criança.
         - É uma menina, gritaram quase em uníssono as mulheres da tribo.

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