OS MURAS FICARAM CERCADOS REALMENTE DEPOIS DE MUNDURUCUS E SATERÊS DESEMBARCAREM e subirem o barranco até as paliçadas que defendiam a aldeia contra as invasões pelo rio. Os caciques decidiram manter o cerco, mas não desfecharam o ataque final, preferindo guardar suas posições e esperar a reação do inimigo. Taobara sabia que os muras estavam ansiosos por repelir o ataque, mas agora a luta seria travada no campo da paciência, embora os insultos de ambos os lados fossem desferidos com tanta intensidade que as palavras chegavam a ferir.
- Vamos primeiro lançar sobre os muras saraivadas de flechas, propôs o cacique guanavena, apontando a fragilidade do inimigo sob cerco, mas dispostos em um círculo compacto, impossível de ser vencido com um ataque frontal
- O bravo guanavena tem razão, concordou Arawetê, chefe de todos os guerreiros e a quem cabia a palavra final nas decisões de comando.
Taobara impunha sua liderança, conquistando a admiração e o respeito dos outros caciques e sofrendo oposição cada vez menor de Meyki, seu rival momentâneo. O cacique guanavena sabia jogar o jogo das manipulações políticas, mas conhecia também, e muito, as artimanhas da guerra, fazendo os outros aceitarem suas ponderações e levando o maioral bararuru a seguir contrariado as decisões referendadas pelo conselho das tribos aliadas.
O dia apagou as últimas luzes quando o sol emborcou direto na direção da nascente do grande rio Amarelo. Todos sabiam que na escuridão qualquer um dos lados da contenda teria de agir. Era uma noite sem lua, ideal para ataque surpresa. No centro da taba dos muras grandes fogueiras foram acesas, enquanto os aliados se deixavam iluminar pelos fogos dos inimigos, protegidos agora pelas paliçadas que protegiam da invasão a aldeia de Itacoatiara.
Os planos de Taobara foram postos em prática, com os arqueiros tomando posição de todos os flancos e despejando a chuva de flechas, que caía como morte sobre os muras aquartelados. A primeira saraivada pegou os inimigos de surpresa, e foi anunciada apenas pelo sibilar de muitas cordas esticadas e soltas em seguida e o grasnar assustador de igual número de setas seguindo em suas direções. Eles correrem em busca de seus escudos, atrás de proteção. O ataque surpreendeu e atingiu muitos guerreiros, alguns com gravidade e outros com apenas cortes superficiais, mas em dois as flechas perfuraram com tanta força que seria impossível extraí-las, deixando inerte os combatentes atingido de morte.
Os aliados lançaram diversos ataques aéreos contra os muras, mas os efeitos causados agora eram menos intensos, devido aos escudos feitos de grossas cascas de árvores darem relativa proteção. As setas viam de todas as direções, podendo acertar as pernas de quem protegia somente a cabeça. A saraivada de flechas foi se sucedendo, causando baixas menores no inimigo, mas infligindo-lhe o terror e minando a cada novo arremate sua determinação e bravura. O ataque estava sendo bem sucedido na medida que causava baixas, uma estratégia perfeita, capaz de atiçar a reação dos muras, como desejava Taobara, pois esperava uma luta franca, em campo aberto, homem a homem, onde a coragem contaria muito mais que a proteção premonitória dos pajés.
A verdadeira esperteza do cacique guanavena ainda estava por ser conhecida pelos muras. Depois de uma parada estratégica para desorientá-los, os guerreiros aliados entoaram seus cantos de guerra, levando ao coração do inimigo um presságio de morte e fazendo gelar seus corações na perspectiva de qual seria o próximo lance da luta. Não esperaram muito e rapidamente surgiram guerreiros aliados por trás das paliçadas, correndo na direção dos inimigos e despejando sobre eles pesadas lanças, que perfuravam seus escudos, causando ferimentos e morte a muitos combatentes e inutilizando outros no restante da batalha.
Após o primeiro ataque de lanças, os muras tiveram de tomar posição de combate, mas um segundo movimento dos aliados jogou ao chão muitos bravos inimigos. A luta estava prestes a ser decidida e os guerreiros do lado de lá armaram-se de bordunas e também entoaram suas músicas de guerra, ensaiando a coreografia do ataque iminente para repelir os invasores de sua aldeia. Os insultos retornaram às bocas dos bravos e reverberavam na luz lusco-fusco das labaredas imensas a anunciar o início da batalha final. Os bravos se atiçaram de todos os lados, deixando seus corpos absorverem todo o esplendor desse momento no qual se lança o olhar na cara da morte.
Os cantos eram entoados com mais força, quase um grito no assombro da selva, alvoroçando um bando de ciganas nos galhos por trás do campo de batalha e, mesmo assim, o piado das aves em fuga também foi ouvido pelos guerreiros, assim como o crepitar das fogueiras e o bater de pés no chão, marcando o ritmo da ordem de avançar.
- É agora, sussurrou Taobara no ouvido do cacique Arawetê, o maioral de todos e de quem deveria partir a voz de comando.
- Ao ataque, gritou o mundurucu, seguido por seus guerreiros, índios valentes e corajosos que não temiam a morte, enquanto estivessem sob a proteção de seus ancestrais e dos espíritos bons de seu povo.
Os muras os receberam com golpes fortes, um frenesi de luta capaz de romper a defesa de ambos os lados, e os guerreiros se infiltraram nas linhas inimigas entorpecidos pelo sangue e pela vontade de matar. As primeiras contendas foram desorganizadas, com armas diversas: as bordunas eram suplantadas por estacas de madeira com afiadas pontas e lâminas cortavam as carnes causando ferimentos que dilaceravam a coragem dos atingidos.
Os guerreiros se espalharam pelo campo aberto, tornando a batalha mais franca, homem a homem, atracando-se em abraços de serpentes até um perder o fôlego e ceder, afrouxando o aperto e fazendo o adversário apertá-lo mais ainda, até não conseguir respirar e morrer afogado na poeira. Também mediam forças se esganando e, uma vez no chão, recebiam o golpe de misericórdia na cabeça, desferido pela clava inclemente, sob um estrondo de crânio se partindo e uma mancha escura a marcar o chão argiloso de Itacoatiara.
Taobara comandava seu grupo pessoal por entre as fogueiras, em busca dos inimigos muras, e dele faziam parte os mais fortes e valentes guanavenas e ainda Pikiwaha e Aiauara, como havia prometido ao irmão Nahpy, e Monawa, com o caboquena se mostrando digno de fazer parte da elite guerreira do povo de sua esposa. Eles localizaram vários muras buscando a proteção por trás de uma cabana, na tentativa de armarem seus arcos e desferirem um golpe contra os adversários, mas foram surpreendidos pelos guanavenas e tiveram frustrado suas intenções de intentarem maus objetivos. Pikiwaha era o mais destemido, devido seu espírito jovem o encorajar ao ataque sem cautela, demonstrando desprendimento superior à coragem, mais parecido com arroubo.
Os inimigos estavam sendo derrotados e então os guanavenas partiram em busca de novos grupos de muras para eliminá-los, encontrando um tão bem armado e disposto a lutar quanto eles. Primeiro enfrentaram-se com o olhar, depois mostraram seus dentes, em seguida abriram a boca um ao outro, deixando visíveis as fauces por onde pretendiam empurrar a carne dos derrotados. Lançaram-se à luta e a agilidade de Pikiwaha o impediu de ser acertado com um golpe de borduna, desferindo ainda um contragolpe nas costas do inimigo. Este caiu aos pés de Monawa e recebeu o porrete em seu crânio desferido pelo caboquena. Aiauara corria logo atrás e também testou a dureza de sua clava nas costas do mura, mas este não gemeu após o impacto da maçada.
Taobara foi para perto do filho, defendendo-se dos ataques de um mura de forte compleição e feroz como uma onça faminta. O adversário tentou derrubar o cacique guanavena, mas este suplantava a força do outro com sua esperteza, desvencilhando-se e desferindo golpes de retardo a reação do oponente. O filho viu o pai ser atacado e foi socorrê-lo, mas o índio com o qual brigava não o deixou seguir adiante e o atingiu nas costas com a ponta da borduna. Mesmo assim o baque foi forte o bastante e jogou-o ao chão, deixando atordoado pela dor lancinante. Ainda dono de seus reflexos, se ergueu no momento exato do inimigo preparar o golpe fatal.
O cacique viu o filho ameaçado de receber a pancada mortal na cabeça e reagiu invocando toda a força armazenada em seu braço para direcionar um golpe contra o guerreiro com o qual combatia. Foi rápido e certeiro e a clava do guanavena se bateu com tanta força na do inimigo que ambas se partiram. Taobara pensou mais rápido e atirou com força o resto de tacape em sua mão, desnorteando o mura e o permitindo chegar a tempo de conter o oponente de Pikiwaha em sua intenção mortal. O cacique o agarrou pelas costas, erguendo seu corpo e o atirando ao chão, sem afrouxar o aperto de seu abraço e tentando asfixiá-lo.
O outro inimigo, mesmo ferido, recuperou-se e investiu contra o cacique, mas Pikiwaha o deteve com novo golpe de borduna, desta vez por inteiro. O guerreiro tombou para trás de seu bando e lá ganhou proteção, impedindo Aiauara de também participar do ataque. Após esse fato, todos os guerreiros diminuíram a sanha da luta para assistir Taobara digladiar no chão contra o mura. Os dois rolavam na mistura de poeira e sangue, mas ninguém ousava intervir, mesmo com o mura em ligeira desvantagem. Era uma forma de luta respeitada em todas as tribos, a contenda homem a homem no abraço da morte. Pikiwaha tentou avançar quando o mura reverteu a posição e ficou por cima de seu pai, quase conseguindo soltar-se. Mas os braços de Taobara seguraram firme o oponente até uma golfada de sangue sair de sua boca, mostrando que suas costelas tinham se partido e a morte era iminente.
Os muras se assustaram diante da vitória espetacular do cacique guanavena e recuaram, mas foram atacados por índios empolgados depois de verem seu maioral matar apenas com a força de seus braços o forte guerreiro inimigo. Taobara largou o corpo inerte de seu oponente e recomeçou novos ataques, com os muras escapando para as brenhas da mata e deixando seus companheiros serem mortos a bordunadas, sem coragem de reagir à sanha assassina dos invasores.
A cada embate vencido, os guanavenas percorriam a aldeia em busca de mais inimigos e os encontravam em todos os cantos, sempre lutando contra caboquenas, bararurus, mundurucus e saterês. Na confusão da luta, ora um grupo levava vantagens ora era repelido e morto. O combate prosseguiu durante a noite toda e quando as primeiras luzes da manhã se anunciaram no céu, Taobara se encontrava exausto e resolveu descansar com seu grupo, deixando o campo de guerra para se lavar nas águas do grande rio Amarelo.
Os bravos deram uma pausa na luta, estendida sem trégua desde o anoitecer até o raiar de um novo dia, ceifando a vida de muitos guerreiros. Extenuados pelo esforço físico, simplesmente os bravos abaixavam a borduna e seguiam cada uma para seu lado diferente, se reunindo aos companheiros e procurando o descanso merecido depois da longa batalha. Muitos estavam feridos, precisando recuperar as forças para o reinício dos combates e seguiram por caminhos opostos até o rio, buscando nas águas frias o ungüento de suas dores.
O cacique guanavena desceu o barranco escorregando entre as pedras que davam nome ao lugar e sentiu as dores das feridas quando entrou em contato com a água do rio. Trazia ferimentos nas costas e no rosto e tinha um dedo inchado, talvez até quebrado devido o clamor da luta. Seus comandados estavam ao seu lado e também traziam as seqüelas do confronto, inclusive seu filho Pikiwaha, sem um dente na boca, arrancado a golpe de tacape. O sangue dos combatentes tingiu de vermelho a palidez do rio, mas eles logo se sentiram revigorados e dispostos a recomeçar a luta contra os muras, que também se lavavam rio acima.
O banho não foi prazeroso como o era na ilha Saracá, entre águas escuras e areias brancas, mas mesmo assim a lama do leito estancava ferimentos ainda abertos e servia de cataplasmas nos inchaços de golpes não mortais. Aiauara mostrou um grande galo na testa, mas sentiu o reconforto voltar-lhe à cabeça quando usou um pouco de barro para aplacar a dor, como bem ensinara seu pai Nahpy, a quem o lodo do grande rio Amarelo tinha propriedades curativas.
Outros guerreiros se reuniram nas margens, lavando as marcas de uma noite implacável, pois na água encontravam a força com a qual retomariam o confronto. O banho coletivo dos bravos mostrou quem conseguiria prosseguir na luta, devido o esforço ser tanto que muitos sequer reuniam vontade de subir o barranco, mesmo quando os muras já estavam no alto do morro a desafiá-los para a guerra.
Toabara reuniu com os caciques e decidiram contornar o morro pelo jauarizal, evitando o confronto no íngreme terreno, onde os muras teriam grande vantagem e, muito certamente, chamavam os aliados na esperança deles subirem o barranco, ficando menos protegidos. Os guerreiros contornaram a margens do rio, fustigados por flechas e pedras jogadas ribanceira abaixo, visando infligir baixas na tropa aquarteladas na beira do barranco.
Em pouco tempo os guerreiros conseguiram chegar ao jauarizal e empreenderam a subida ao morro, mas os muras, motivados por nova perspectiva da guerra, não esperaram os inimigos chegarem até a taba da aldeia e atacaram os aliados ainda no matagal, em escaramuças de surpresas, a fim de enraivecer os bravos, que não tinham como atirar suas flechas ou empunhar a borduna no terreno de cipoal inextrincável. Os caciques ordenaram seus homens a se espalhar pelo mato, evitando assim um confronto em desvantagens à tropa aliada.
Com muito esforço os grupos conseguiram romper os labirintos do jauari e chegaram em campo aberto, mas encontraram os muras agora no alto do morro, desafiando-os com uma insolência que deveria ser reprimida. Os comandantes não queriam os bravos correndo em direção à luta, ao invés disso, pararam no sopé do barranco e passaram a desafiar os muras, chamando-os para onde estavam. Os muras atenderam aos pedidos dos inimigos e desceram o morro, erguendo suas lanças e depois apontando-as aos aliados.
Com pequena distância entre as tropas, arqueiros aliados dispararam suas flechas contra o batalhão morro acima, derrubando implacavelmente os primeiros da linha de frente, mas não impedindo o restante dos guerreiros de abaterem os bravos aliados na vanguarda dos combates. A luta feroz retornou e se espalhou no jauarizal e no alto do barranco. Os primeiros muras entraram em combate com suas lanças e foram cercados, mas seus companheiros não davam oportunidade dos aliados passarem a ofensiva, chegando novas levas em gritos aterradores, se lançando contra os adversários determinados a matar ou morrer.
Todas as tribos se batiam agora tendo como tática apenas a ferocidade, com cada um lutando sua guerra particular, sem espaço entre eles para manobras e nem voz de comando que suplantasse os gritos dos que tombavam feridos, e de júbilos dos agressores. Taobara queria impor sua estratégia de diminuir os espaços, a fim das tribos aliadas fazerem um ataque sucessivo, deixando o restante dos guerreiros descansando da peleja noturna, mas o calor dos combates enfureceu a todos, lançando-os uns contra os outros. Sem ter como articular o ataque, os caciques também entraram na briga, cercados por seus homens de confiança e lutando com determinação, encorajando seus comandados a matar e salvar suas vidas.
A luta se estendeu por toda a manhã, com sucessivas reveses e vitórias momentâneas de ambos os lados, mas quando o sol se pôs no centro do céu, as forças dos muras não podiam mais conter o ataque de cinco tribos juntas e começaram a ceder espaço barranco acima. Mesmo esgotados, os aliados se redobravam na vontade de vencer o inimigo, agora cedendo terreno por não ter mais condições de resistir ao assalto avassalador dos adversários. Os muras começaram a recuar e foram sendo empurrados ao alto do terreno, tentando se proteger entre as paliçadas que cercavam a aldeia de Itacoatiara.
A vitória tão esperada contra os muras parecia inevitável, mas uma reviravolta se armou contra os aliados quando os inimigos já se punham em fuga desesperada. Alguns notaram pontos pretos surgindo rapidamente na curva imensa do rio, se aproximando com velocidade na correnteza favorável. Os muras, antes prestes a capitular de sua aldeia, também viram os reforços se aproximando e ganharam ânimo novo diante da possibilidade de resistir e reverter o final da batalha, já totalmente desfavorável a eles.
Os guerreiros inimigos, antes em fuga, agora retornavam mais ameaçadores, dando seus gritos de guerras para estremecer o coração dos oponentes. A vitória tão próxima e iminente foi se esvaindo na incredulidade dos aliados, pasmos de ver se aproximarem as canoas trazendo muitos guerreiros muras para dar outro destino à batalha. Arawetê chamou os outros caciques e ordenou a retirada rápida para o interior da selva, numa saída estratégica porque todos os bravos estavam extenuados e não suportariam uma luta contra muras descansados.
- Se recuarmos agora, nunca mais teremos a oportunidade de derrotar os muras, protestou Taobara, cuja coragem e determinação o impulsionava a ficar e lutar até a morte.
Os guanavenas se prontificaram a seguir seu maioral, mas os outros caciques entenderam que a situação não era de bravatas inúteis e retiraram seus guerreiros do campo de batalha, obrigando Taobara a fazer o mesmo, tanto para proteger seu povo como evitar o contraataque dos muras, já no encalço dos retardatários quando os reforços chegaram na aldeia. Os aliados se retiraram com suas últimas reservas de forças, mas até seus oponentes não tiveram ímpeto de prosseguir na perseguição e deixaram os invasores irem embora. De longe, no interior da selva, os aliados em fuga ouviram os gritos de triunfo dos muras entoados na comemoração de mais uma vitória contra povos desejosos de conquistar seus ricos territórios, porque somente um povo forte poderia ocupar as terras nas margens do grande rio Amarelo.
A retirada foi penosa, com o moral dos guerreiros em seu nível mais baixo, muitos estavam feridos, alguns não agüentavam o esforço da volta e se deixavam ficar pelo caminho, caindo mortos depois de terem visto a vitória tão próxima. Quem podia ser carregado era levado, mas os ferimentos de alguns eram tão insuportáveis e doíam com intensidade, depois de o sangue esfriar e abrir as chagas recentes que optavam por morrer logo, sem ter de enfrentar seus familiares com o olhar dos derrotados.
Taobara se aproximou de Arawetê e disse ainda haver a possibilidade de reverter o resultado da guerra, bastava os guerreiros descansarem nas margens do lado Canaçari, recuperando as forças com os peixes abundantes do lago, para em seguida empreender o assalto final contra Itacoatiara. No entanto, maioral saterê estava mais preocupado em levar seus bravos a salvo de um possível ataque dos muras, por isso ordenou a retirada acelerada e embarcaram nas canoas, se pondo sob a proteção do lago e fora de alcance da vingança dos inimigos.
Embora a decisão fosse uma demonstração da fraqueza, a sensatez prevaleceu sobre os guerreiros em fuga e eles se puseram a correr até chegar nas águas escuras do lago, onde suas canoas estavam posicionadas para a retirada. Mesmo com as muitas baixas sofridas na guerra, a tropa não encontrou acomodação suficiente nas embarcações para tantos guerreiros e feridos. Foi preciso deixar na praia os agonizantes, ato que quebrantou o orgulho dos índios e pôr em dúvida, no peito de alguns, a justeza de seguir as ordens de seus chefes.
Arawetê tomou o comando da retirada, dando ordens para os guerreiros remarem em direção à ilha Saracá, mas Taobora o destituiu de imediato, arrebatando para si o pouco de autoridade que havia naquela situação. Meyki e Parakatejê tentaram impedir sua ascensão à liderança, mas os guerreiros estavam tão abatidos e a viagem até a ilha seria tão penosa, com ventos contrários e banzeiros altos, que resolveram não seguir a mais ninguém, somente aos seus instintos e se puseram a remar atendendo ao ritmo da batida de seus corações.
Taobora aos poucos foi impondo sua vontade, indicando a direção das ilhas, onde se esconderiam dos ventos e teriam proteção contra os banzeiros. O dia começou a ceder aos encantos da noite, mas ainda restava no esplendido céu azul os últimos lampejos do sol, traçando aspirais de luz e pintando as nuvens mais baixas com o tom avermelhado do sangue dos guerreiros mortos. Seria preciso ainda remar durante toda a escuridão até chegar à ilha Saracá, mas os guerreiros suportaram estóicos da mesma forma como enfrentaram os inimigos no campo de batalha.
Venceu a tenacidade quando os primeiros raios da manhã surgiram e os guerreiros puderam enfim divisar no horizonte a silhueta exuberante da ilha Saracá, com seus altos barrancos de luxuriante vegetação, dividindo o caminho do rio Orowo e separando as bacias dos lagos Canaçari e Saracá. Remaram com mais determinação quanto mais se aproximavam das praias, contornando o Mucajatuba e se deparando com a aldeia dos guanavenas, onde o povo aguardava os guerreiros na esperança de ouvir a notícia da grande vitória sobre os muras.
Não foi preciso esperar o desembarque: a notícia chegou primeiro, bastava ver de longe nas caras dos bravos o desenho do sofrimento e da derrota, sem prisioneiros para oferecer às tribos e sem pilhas de cadáveres a serem sepultadas. Eram evidências muito concretas de uma retirada apressada, de perdas de vidas inúteis, de muitos filhos e maridos sem retornar às suas famílias, tombados em terras desconhecidas, aprisionados por gentes hostis, sofrendo a humilhação de terem sido derrotados e capturados como animais de caça, espancados em vingança por parentes mortos em lutas anteriores e, por fim, devorados em banquetes durante as comemorações pela expulsão dos invasores.
As canoas se aproximaram lentamente, mais impulsionadas pelas correntes que pela força dos remos, devido a exaustão ter tomado conta dos guerreiros e eles sequer tinham disposição de chegar, retardando ao máximo o encontro com a verdade que os esperava na ilha. Os meninos em terra foram os primeiros a entrar na água e nadaram em direção das embarcações, foram seguidos pelas mulheres, aflitas por conhecer os detalhes da guerra e carpir pelos mortos, parentes ou não. Mas não se aventuraram a seguir além da água nos seios, deixando aos velozes meninos nadadores a tarefa de rebocar as embarcações até a praia.
O valente Byrytyty foi o primeiro a chegar até as embarcações e foi direto na canoa onde estava seu irmão Aiauara, acompanhado do tio Taobara, o primo Pikiwaha e o cunhado Monawa. Todos os seus parentes mais próximos estavam vivos. Na canoa ia também Yepá, o guerreiro misterioso da tribo dos caboquenas, sem marcas de lutas renhidas e seu rosto era o único sem a expressão da derrota. Byrytyty viu um ar de felicidade no riso imperceptível, sem saber que o irmão de Monawa estava em outro mundo, dopado por substâncias que o levavam a lugares onde os sofrimentos de seus companheiros não podiam chegar.
O pequeno guanavena segurou a proa da canoa e foi conduzindo-a até a praia, batendo com força os pés na água para dar impulso à embarcação, uma vez que todos os remos foram retirados do lago. Byrytyty estava ansioso de alcansar a praia e aceitou a ajuda de outros meninos, vindos em seu socorro, dando braçadas profundas e fazendo sua nave ser a primeira a tocar na areia. Quando chegaram perto das mulheres receberam suas ajudas e foram caminhando, levantando o cauixi do fundo e toldando a água do lago com tantos pés a desembarcar em busca de descanso aos espíritos destroçados.
O choro das mulheres se fez ouvir em toda a ilha, rompendo a imensidão do lago e convidando os moradores das comunidades próximas a prantearem os parentes mortos. Logo vieram canoas do Murucutu, do Estreito e da Demanda, com famílias inteiras, mães aflitas em busca de notícias de seus filhos. E se os encontravam vivos, choravam abraçadas a eles como se tivessem nascidos outra vez, mas quando procuravam e não os encontravam entre os bravos, ou entre os poucos feridos, então se desfaziam em gritos sem consolo, correndo pela praia como se podessem ao menos capturar seus espíritos e dar-lhes o abraço maternal que não podiam oferecer a seus corpos.
Nahpy de imediato deu início ao procedimento de cura aos feridos, ajudado por Tawacã, cujo ventre se avolumava com a aproximação de mais um parto. A situação da esposa envaidecia Monawa em seu retorno da guerra, com histórias de bravura para serem contadas por ele e por seus companheiros, pois sua coragem não passou despercebida a Taobara, que sempre o julgou um fraco diante dos inimigos por retornar sempre ferido, carregado por seus parentes. Agora foi diferente, pois veio com as próprias pernas e amparando Pikiwaha, com o rosto desfigurado devido o impacto do tacape mura que lhe arrancou os dentes da boca, e também Aiauara, cujo desgaste físico o deixou em um estado de torpor, sem forças sequer de abandonar a canoa e desembarcar. O filho de Nahpy foi retirado desmaiado da embarcação, colocado na praia e ali mesmo recebeu os primeiros cuidados do pajé e de sua família.
Tananta se agarrou ao corpo do marido pensando que o mesmo estava morto, mas foi só recebê-lo em seus braços e os olhos do jovem guerreiro se abriram como se estivessem vendo uma aparição sublime. O bravo tinha lutado com coragem e determinação, sem um momento de fraqueza, empunhou a borduna em defesa de sua vida e dos companheiros, matou quantos muras pode matar, viu o sangue expelido com força de dentro do crânio destroçado pela maça cair como chuva em seu corpo e nos dos combatentes a volta. No entanto, quando se alojou nos braços da esposa, sentindo sua barriga arredondada nas costas, pode então recobrar a ternura de seu espírito e voltou a desfalecer, mas na segurança do colo da mulher a quem tanto amava.
Não houve festas na volta dos guerreiros. Eles só desejavam comer o quanto pudessem e depois descansar da fatiga imensa de perder uma batalha. Nahpy cuidou dos enfermos, junto com Tawacã, enquanto Monawa dormia na rede armada no espaço da oca destinado à família do pajé, e Aiauara, assim como acompanhou o cunhando na guerra, também estava ao seu lado no momento de descaso. À noite, acenderam as fogueiras, mas os feitos dos guerreiros foram suplantados pelas lembranças de uma batalha cuja vitória esteve muito próxima, mas não se concretizou por falta de disposição de prosseguirem na luta, amedrontados com a chegada de reforços dos muras.
- Nossos bravos não suportariam um embate com guerreiros descasados, justificou o cacique mundurucu, explicando aos outros maiorais e aos anciãos o porquê de ter dado a ordem de retirada do campo de batalha.
- Poderíamos ter enfrentado os novos guerreiros se eliminássemos os muras antes do reforço deles desembarcar em Itacoatiara, ponderou Taobara, enfatizando ter se recusado a abandonar a luta, quando os inimigos se encontravam em fuga.
- Como aniquilaríamos os muras se já os estávamos combatendo um dia inteiro e não conseguíamos superá-los, argüiu Parakatejê, recebendo o apoio de Meyki, ambos considerando a retirada uma estratégia acertada.
- Estávamos no limite de nossas forças, não agüentaríamos mais tempo no ritmo da luta, disse Jauaraçu, o único cacique ao lado de Taobara, mas também compreendendo ser impossível prolongar a batalha contra os muras.
O maioral guanavena resmungava, mostrando a determinação de continuar lutando, mas suas bravatas foram descartadas quando Nahpy interviu, argumentando que se a decisão de abandonar a aldeia mura, antes da chegada dos novos guerreiros, serviu para salvar a vida de muitos bravos aliados, então fora acertada. O pajé tinha grande influência no conselho dos anciãos e sua palavra balizou a opinião de todos os presentes, determinando o final da reunião, sem desmerecimento à valentia dos guerreiros e com a convicção de que a guerra estava perdida para os muras.
Taobara saiu da oca do conselho, indo direto encontrar os bravos guanavenas para tratar do futuro de seu povo. Ainda na saída, Jauaraçu o segurou pelo braço, na tentativa de explicar-lhe melhor sua posição, mas o maioral não lhe deu atenção e soltou-se com descortesia ao aliado de todas as lutas. O cacique andou até a praia do Terceiro, tomando cuidado para seus passos não serem seguido, e lá encontrou os comandados de confiança mais sincera, o estado maior do povo guanavena. Chamou pelo nome de todos e todos atenderam ao chamado. Então transmitiu uma ordem a Warypa, o rastreador mais ladino da ilha Saracá.
- Tu vais até a aldeia de Itacoatiara e diga ao maioral dos muras que eu, o cacique Taobara, líder da tribo dos guanavenas, desejo ter uma conversa com ele.
Não sabia que o amigo era jornalista. Pensei que era apenas escritor. Eu também sou jornalista, assistente social e gostei de seu texto, porque mistura muito de história pelo meio. Um abraço,
ResponderExcluirCarlos Costa