segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Capítulo 16 - Tocaia dos Mortos


MEYKI REFEZ SEUS PLANOS E REVELOU A TAOBARA A ALIANÇA COM OS MUNDURUCUS, deixando ser vencido pela realidade. Todos os caboquenas reunidos não eram capazes de formar o contigente necessário para selar o acordo com os novos aliados. Os índios do Orowo não poderiam sozinhos abrir uma frente de guerra contra os muras por falta de guerreiros, ainda mais tendo de combater em território tão vasto. Era preciso reunir os antigos aliados, criar uma grande tropa com as três tribos e atacar o inimigo pelo grande rio Amarelo, na fronteira com o lago Canaçari, impedindo os muras de remeter reforços à boca do Mawé, por onde avançariam os guerreiros mundurucus e seus aliados saterês.
         Os planos foram relatados por Meyki a Taobara, que escutou muito atento, demonstrando surpresa a cada detalhe, embora soubesse de antemão sobre a aliança entre os caboquenas e uma grande nação inimiga dos muras, planejada por Meyki e executada pelo guerreiro Yepá. O cacique guanavena queria o comando das operações, mas o caboquena se mostrou irredutível às pretensões de Taobara, argumentando ter sido dele a iniciativa de buscar aliados poderosos na luta contra o inimigo comum.
         - Tu não podes enfrentar os muras sozinho e nem firmar aliança com os mundurucus devido teu pequeno grupo de bravos, disse Taobara a Meyki.
         - Mas fui eu quem buscou novas alianças para a guerra, enquanto tu e teus bravos ficaram acovardados neste território, contestou o cacique caboquena.
         - No entanto, somente comigo os bararurus participarão da luta, concluiu Taobara.
         Esta era uma verdade aceita, mas não assimilada, por Meyki. Ele sabia ser impossível levar Jauaraçu aos combates sem o aval e a influência de Taobara, mas não estava disposto a ceder o comando ao cacique adversário, mesmo tendo de enjeitar o apoio dos bararurus, que somente lutariam sob o comando do guanavena. Meyki ainda era um jovem maioral e tinha pouco destaque entre os bravos das três tribos aliadas, embora fosse muito respeitado entre sua gente, no meio dos quais era visto como o legítimo sucessor de seu tio Uataçara, o venerado cacique morto nos combates contra os muras.
         Taobara tentava convencer o cacique caboquena conclamando a memória de Uataçara, que sempre fora fiel aliado e compartilhava do desejo comum de todas as tribos da região do Canaçari, de expandir o território até o grande rio Amarelo, rico em alimento e em recursos. “Nossos povos sempre se uniram em busca desse sonho”, repetia o guanavena, buscando nas recordações de tantas batalhas a força capaz de dissuadir Meyki a enfrentar os muras comandando a tropa aliada.
         - Uma guerra exige grande experiência, disse Taobara a Meyki. Mas um dia chagará a tua vez de comandar tantos bravos e eu ficarei orgulhoso de ver-te capaz de tal glória, acrescentava o guanavena ao outro cacique, que fazia o possível de não concordar com seu opositor.
         Meyki insistia em tomar a frente da tropa porque era o elo de ligação com os mundurucus, mas este argumento foi posto abaixo quando Taobara disse conhecer os detalhes do acordo e na insistência de Araweté em ter um grande número de bravos na aliança, condição que o caboquena não podia oferecer. Taobara ofereceu a Meyki o segundo posto na hierarquia da guerra, destacando o jovem maioral e ajeitando as coisas para os dois lados: não usurpava a condição de líder do guanavena, nem diminuía a importância do caboquena diante de seus comandados.
         Depois de selar o acordo com Meyki, saindo vitorioso na argumentação, Taobara convocou o conselho dos anciãos e anunciou que um novo tempo de guerras estava por começar, desta vez com aliados poderosos e condições palpáveis de uma vitória sobre o inimigo de tantas lutas anteriores. Para convencer os conselheiros da justeza da guerra, o cacique acenou com a possibilidade de recuperação das filhas guanavenas entregues aos muras como compensação no último embate, acarretando assim grandes problemas à tribo, ao se desfazer muitos casamentos marcados e gerando desconforto entre as famílias que não puderam honrar seus compromissos matrimoniais.
         Desta vez o cacique não teve dificuldade de receber o consentimento dos anciãos, devido agora não ter a lhe fazer oposição a voz de Itaúna. Nahpy não se interessou em opor-se à luta, pois vislumbrou dessa forma a possibilidade de trazer Tawacã para sua companhia, não importando a ele o destino do esposo da filha. Ao final da reunião, o pajé chamou seu irmão Taobara a um canto da oca e lá pediu por seu filho Aiauara, agora um homem casado e com uma família para cuidar.
         - Ele vai lutar sempre ao meu lado, na companhia de meu filho Pikiwaha, prometeu o maioral a Nahpy.
         O pajé se deu por satisfeito e foi até junto de sua família contar as notícias de reunião, mas, como sempre ocorria, os boatos chegaram primeiro e Nahpy apenas confirmou o que as mulheres e crianças já sabiam. Aiauara se mostrou animado com a iminente partida para as batalhas, mas Matepi vislumbrou a má sorte de perder algum dos inúmeros pretendentes que queriam se casar com ela, enquanto Byrytyty se angustiava por não ser consagrado ainda um guerreiro e não poder partir junto com combatentes. Somente Xirminja ouviu com pesar as notícias do esposo, sabendo que sofrimentos viriam ao seu povo, derrotado ou sendo vencedor.
         Em pouco tempo, de todas as partes começaram a chegar os guerreiros na ilha Saracá, ponto de encontro em todas as batalhas neste mundo. Vindos do rio Sanabani, as tropas dos bararurus eram chefiadas pelo cacique Jauaraçu, enfeitado com vistosas penas tremulando ao alto da cabeça. Os bararurus entraram pelo lago Saracá e se apresentaram na praia em frente da aldeia dos guanavenas, enquanto Meyki e seus bravos chegaram pelo Canaçari, contornando as ilhas do Marupá, aproveitando-se de ventos favoráveis, que neste dia sopravam rio abaixo, em meio a tanta euforia que o fato nem foi considerado um mau agouro. Quando o cacique caboquena pisou na areia da ilha, exortou os comandados à luta.
         - O grande Paharamim esté conosco e até mandou ventos favoráveis para apressar nossa vitória, gritou Meyki aos caboquenas, num tom capaz de ser ouvido por guanavenas e bararurus, felicitando-se todos pelos bons augúrios lembrados pelo jovem maioral.
         Taobara foi recebê-los com felicidade na praia, fazendo grande reverência a Meyki e entregando-lhe ali mesmo o posto de segundo na hierarquia. O guanavena proferiu mais algumas palavras de agravo ao cacique caboquena, lembrando a descendência direta dele do grande Uataçara e fazendo crer a todos que o jovem maioral conquistara o posto de líder de seu povo por merecimento, assim como se cobriu de glória antes de estar no subcomando das tropas aliadas.
         Os outros guerreiros reconheceram a liderança de Meyki dando brados de viva e gritando o nome do maioral caboquena, que batia no peito em sinal de reverência, com um sorriso de vitória nos lábios e a expressão de quem ainda quer conquistar muito mais fama. Meyki foi até Taobara e lhe fez o juramento de segui-lo nas batalhas, lutando sob seu comando, enfrentando o inimigo comum e morrendo, se possível, pela glória das três tribos.
         Aguardando a ordem de partir, os guerreiros se mostravam ansiosos de entrar em combate, por isso todos os dias treinavam lutas entre si, testando suas forças e habilidades no manejo de arcos e flechas e também na borduna. Nahpy não parava um só instante preparando remédios para proteger os guerreiros na guerra, fazia defumação, lançava suas infusões sobre os corpos dos bravos e dava-lhes de beber os chás que deveriam fortalecer seus espíritos e atiçar-lhes a coragem. O pajé mandava seus ajudantes buscar mais raízes e folhas com as quais deveria fazer novos preparos e, quando a noite caía, contava aos guerreiros reunidos sob a claridade da fogueira as histórias de sua gente.
         Yepá e Monawa chegaram na ilha com outros guerreiros vindos das regiões mais acima do rio Orowo. Com eles vieram Tawacã e a pequena Waiãpi, que ficariam com seus parentes guanavenas durante o desenrolar das batalhas. Yepá apresentou a Nahpy algumas sementes de guaraná e disse tratar-se de uma fruta do território da Mundurucânia, que renovava as forças e deixava alerta aos mofinos. O pajé não conhecia como aquelas sementes poderiam revigorar aos guerreiros, mas mesmo assim as recebeu com interesse e de pronto se dispôs a preparar uma cabaça cheia com infusão daquelas sementes.
         - São sementes mágicas, que nos fazem sentir o esplendor de nossas forças, disse Tawacã ao pai, pegando um pilão e transformando em pó, ela mesma, os caroços oferecidos pelo cunhado.
         Nahpy se inteirou de seu preparo e foi também o primeiro a provar o suco quando a filha misturou à água o pó extraído do pilão. Ele saboreou seu frescor e mordeu os pedaços maiores das sementes, triturando no dente aquilo que a força do tacape não pode fazer. Depois distribuiu entre os guerreiros e todos ficaram excitados, alguns correndo pela praia, outros simulando brigas corporais de teste dos reflexos. Alguns estavam tão ansiosos pela guerra que remavam suas canoas até as margens opostas do lago, nas proximidades do grande rio Amarelo, na intenção de encontrar os muras e desafiá-los à luta.
         Enfim chegou a notícia da invasão dos mundurucus e dos saterês pela foz do Mawé, que tinham postos em fuga os muras moradores das proximidades desse rio. Os aliados se prepararam para interceptar tanto os esforços inimigos, quando descessem o rio, quanto os fugitivos que subiriam em direção ao interior do território dos muras. Eles ficaram entrincheirados nas ilhas, nas proximidades do furo que dá acesso do lago Canaçari ao grande rio Amarelo, dispostos a impedir a passagem do inimigo.
         Passaram-se alguns dias de espera na trincheira insular quando enfim as primeiras canoas com muras em fuga surgiram no horizonte, rio abaixo. Eram em sua maioria mulheres e crianças, protegidas por alguns guerreiros que buscavam se reagrupar e voltar mais fortes para combater os invasores da Mundurucânia. Mesmo assim os aliados atacaram com fúria repentina, surpreendendo os fugitivos em um cerco inescapável. Cercaram as canoas e atiravam suas flechas, forçando uma rendição dos muras, que aconteceu imediatamente devido à impossibilidade de resistência.
         Os bravos aliados fizeram a abordagem e prenderam os inimigos, depois separaram dentre os capturados mulheres e crianças dos homens, estes postos amarrados em uma canoa maior e levados às margens das ilhas, enquanto o outro grupo seguiu rumo à entrada do furo ligando o rio ao lago Canaçari. Eram os primeiros troféus de guerra e seriam encaminhados até a ilha Saracá, enquanto os homens foram sacrificados na solidão dos igapós das ilhas, como um sinal de que a guerra era para enfraquecer a superioridade numérica dos muras e expulsá-los das margens do grande rio Amarelo, onde habitavam apenas as tribos mais belicosas, capazes de defender o território ambicionado por outras nações menores.
         Esta primeira vitória sem luta deu ânimo aos aliados de se exporem ao inimigo, ainda mais que em poucos dias outras canoas surgiram, desta vez descendo o rio, e eram tantas o suficiente para formar uma linha de embarcações e ocupar todo o leito do grande rio. Era uma tropa enviada com objetivo de conter a invasão dos mundurucus, vinda da aldeia principal dos muras, Itacoatiara, e reforçada por bravos de outras aldeias menores, que se juntavam ao comboio ao longo do rio. A formação dos inimigos incitou os aliados à luta e eles logo deixaram as ilhas e se coloram prontos a interceptar os muras e impedir sua passagem em direção à foz do Mawé.
         Esta primeira batalha seria travada em canoas e as tropas inimigas remaram em direção de confronto, procurando contato e colocando-se em posição de atirar suas flechas. Quando estavam próximos e dentro do raio de ação das armas, as remadas diminuíram e as embarcações tomaram posição de combate. Primeiro foi uma saraivada de flechas atiradas em ambas as direções, buscando atingir o maior número de inimigos. Os muras receberam o primeiro golpe com a carga aliada caindo sobre eles como uma chuva da morte, então seu comandante percebeu que a luta com arcos lhes seria inadequada e partiu ao confronto corpo a corpo, mandando seus guerreiros remarem com todo ímpeto até as canoas ficaram tão próximas quanto à distância entre as bordunas.
         Foi uma decisão temerária. Os aliados também tomaram posição de batalha, porém deixando menos guerreiros remando e mais atirando suas flechas em direção à esquadra dos muras. Quando mais as tropas se aproximavam uma das outra, maior era a carga de flechas atirada contra as canoas e mais guerreiros tombaram nas águas barrentas, tingindo de sangue o grande rio Amarelo. Quando os adversários estavam tão próximos, os arcos foram deixados de lado e os guerreiros pegaram suas bordunas e partiran à luta final.
         Eram tantas as embarcações e tantos os gritos que a fauna enlouquecida das ilhas próximas se calou e apenas se ouvia o brandir das armas e os lamentos dos feridos. Os bravos pulavam das canoas para as dos adversários, matando e morrendo e os corpos eram atirados no rio, alguns ainda tentavam alcançar novamente as embarcações, mas eram atingidos com novos golpes e não retornavam mais a tona. A luta era rápida, com o conflito se resolvendo na base da força bruta, onde quem matasse mais estaria a salvo e poderia comemorar a vitória.
         Taobara incentivava seus guerreiros ordenando-os a não deixar os muras romperem a linha de defesa, assim mandou alguns bravos permanecerem remando enquanto outros travavam a luta, cercando os inimigos e atacando com fúria. Meyki estava no centro da batalha, empunhando sua borduna e brigando ao lado de seus homens, na mesma canoa onde se encontravam os irmãos Yepá e Monawa, enquanto o cacique bararuru atacava pela margem esquerda do rio, procurando causar o maior número de mortos em sua investida.
         Os muras logo descobriram a impossibilidade de romper a linha dos aliados e tentaram um recuo, mas as tropas comandadas por Taobara não queriam o fim da luta, ainda mais quando estavam em superioridade numérica e aplicando severas baixas ao inimigo. Os muras sentiram as dificuldades e empreenderam a fuga, mas precisavam remar contra a correnteza e seus flancos estavam desprotegidos, com os aliados em seus encalços, atirando flechas nos remadores e dizimando a força de locomoção das enormes canoas, que se mostravam boas para avançar rio abaixo, mas inadequadas no momento de escapar sob ataque cerrado.
         O sentimento dos aliados estava concentrado nas últimas batalhas contra os muras e por isso exacerbavam na vingança, com os bravos no maior esforço para derrotar os inimigos e assim purgar a humilhação anterior de terem entregado suas filhas, irmãs e prometidas aos oponentes. Uma vitória incontestável mostraria aos muras que seu tempo de domínio sobre as terras do grande rio Amarelo chegara ao fim, por isso Taobara não concedeu aos inimigos a indulgência da fuga, partindo em perseguição aos derrotados mesmo quando eles já se jogavam na água, tentando escapar a nado das armas de seus perseguidores.
         Os maiorais das tribos aliadas mandaram seus guerreiros investir contra os muras, matando-os até quando fosse preciso penetrar na mata e capturar aqueles que conseguiram nadar até as margens. Quanto mais sangue inimigo era derramado, mais o frenesi dos bravos se intensificava, com alguns caindo na água e buscando nos barrancos os adversários protegidos nas encostas. A perseguição se transferiu também ao alto das árvores, onde alguns índios se refugiaram e, mesmo lá, não encontraram clemência, sendo derrubados dos galhos, a flechadas, e uma vez no chão eram golpeados pelas bordunas dos inimigos.
         O alarido da guerra só cessou quando os muras estavam mortos e mesmo aqueles capturados ainda vivos eram executados sumariamente, fornecendo ainda mais sangue à comemoração da vitória dos aliados. Quando a noite caiu sob a selva, os vencedores dessa primeira batalha acenderam grandes fogueiras e dançaram em honra a Paharamim, agradecendo aos ancestrais que os encorajaram na luta, levando suas tribos a empreender uma vitória avassaladora sobre os muras.
         Os índios passaram a noite se vangloriando de seus feitos, contando diversas vezes como mataram os muras, valorizando os golpes para quando a história fosse contada nos outros dias resplandecesse de mais triunfos ainda. Até aqueles que se encontravam feridos com menos gravidade participavam da festa na qual o insulto ao inimigo morto era o auge da celebração. E o desejo de vingança era tão exacerbado que não bastava apenas a morte dos muras, mas o vilipêndio de seus cadáveres também e assim foram empilhados nas margens e espancados até a dilaceração dos membros. Outros tiveram as cabeças arrancadas e espetadas em varas e seus órgãos serviram para aumentar a alegria da festa, sendo atirados uns contar os outros, no auge da celabração.
         Os muras foram servidos grelhados, comidos com farinha em desgraça e humilhação completadas e também forneceram aos guerreiros vitoriosos a essência daquela gente, conhecida pela coragem incomensurável e a valentia assustadora, que garantiram a eles o território cobiçado do grande rio Amarelo.
         Na manhã seguinte, Taobara ordenou que os corpos dos bravos aliados tombados na batalha fossem levados até a ilha Saracá, juntamente com os feridos, para Nahpy proceder aos primeiros um funeral honroso e aos segundos, a bênção de seus remédios. Algumas canoas se dirigiram ao lago Canaçari, enquanto o restante da tropa manteve sua posição, sabendo que em breve os guerreiros muras estariam de volta, em combates mais renhidos.
         Taobara queria manter o moral de seus guerreiros em alta, pois tinha certeza de que uma vitória tão espetacular contra os muras, resultando em dizimação completa de sua tropa, logo mereceria retaliações, uma vez que os habitantes do grande rio Amarelo tinham a fama, sempre comprovada, de nunca deixar sem resposta um ataque no qual fossem vencidos. O maioral guanavena reuniu os outros caciques e traçou novas estratégias de luta, na certeza de em breve os combates seriam mais acirrados, quando os muras soubessem que os ataques aos seus territórios eram coordenados, tendo agora a dimensão exata dos inimigos e sabendo como proceder para expulsá-los do rio onde eram senhores.
         Os dias se passaram e os muras não voltaram, até os aliados avistarem se aproximando rio abaixo algumas canoas no horizonte e logo em seguida outras tantas a pontilhar de preto a imensidão amarela do rio. Mas não eram os inimigos tão aguardados e sim a tropa de assalto formada por mundurucus e saterês, subindo o rio sem encontrar oponentes a impedir-lhe a passagem. Traziam muitos prisioneiros capturados ao longo do rio, a maioria mulheres e crianças, e poucos guerreiros, vez que estes resistiam até a morte e os poucos capturados vivos eram amarrados e humilhados, como de praxe se devia fazer com aqueles que capitulam.
         Para surpresa de Taobara sua filha Mauri estava entre os prisioneiros trazidos pelos aliados. Ela morava em uma pequena aldeia dos muras nas proximidades da foz do rio Jacarandá, onde os guerreiros do grande rio Amarelo mantinham um posto avançado de proteção de seus territórios contra o avanço de tribos vindas do centro da floresta. O cacique guanavena a reconheceu de imediato entre as mulheres aprisionadas porque conservava ainda intacta a beleza de sua gente.
         O cacique soltou as cordas que mantinha a filha cativa e ela deixou cair lágrimas vastas em seu rosto, pedindo que as outras mulheres e crianças também fossem libertas. Taobara hesitou por um momento, mas atendeu ao pedido da filha que há muito tempo perdera a esperança de encontrar e quando a viu livre de seu destino também não pode conter as lágrimas em seu rosto.
         - Me perdoe, minha filha! Disse o cacique a Mauri, carregando naquele momento todo o peso de sua decisão de entregar as mulheres de sua tribo aos muras, e aplacar-lhes a sanha de vingança contra seu povo.
         - Eles mataram meu marido, respondeu Mauri ao pai, com o coração estraçalhado pelas mágoas de perder o homem que a fizera feliz, embora houvesse sido entregue a ele como um butim de guerra.
         Quando Taobara ainda estava sob o forte impacto do encontro com a filha fora chamado por Meyki para uma conversa com os caciques Araweté e Parakatejê, o maioral saterê, que venceram os muras e conquistaram-lhes vastos territórios. Taobara mandou sua filha e as outras mulheres e crianças serem levadas até a ilha Saracá, enquanto os guerreiros aprisionados deveriam ficar vigiados, porque o destino deles seria resolvido na reunião dos maiorais.
         Quando o guanavena chegou ao local da reunião se dirigiu até onde estavam Araweté e Parakatejê e os dois ficaram impressionados com a vitalidade de Taobara, que trazia muitas cicatrizes de guerras, mas inspirava temor devido sua compleição física avantajada.
         - Este é Taobara, disse Meyki aos dois novos caciques aliados.
         - É o maioral dos guanavenas e líder das tribos da região do Canaçari, completou Jauaraçu, com suas palavras sendo traduzidas por Yepá, o intérprete na reunião dos caciques.
         Os líderes fizeram um balanço dos combates e concluíram que os muras não estavam vencidos por completos, visto sua gente se espalhar por muitas terras ao longo do grande rio Amarelo, chegando até à região onde se aliavam com os parintintins, guerreiros conhecidos pelos mundurucus e saterês, com os quais já haviam se embatido e sempre foram derrotados por eles.
         - Os muras podem rapidamente formar alianças com as tribos ao longo do grande rio, como os omáguas e parintintins, disse Parakatejê, o cacique saterê, temeroso de uma reviravolta na guerra e por conhecer o poder de retaliação dos inimigos.
         Os outros caciques concordaram com a afirmação do saterê, mas agora não era o momento de temer mais lutas, se o desafio fora lançado a um grande grupo tribal, deviam agora estar preparados para enfrentar batalhas ferozes, contra adversários tão aguerridos quanto eles. A nova aliança fortalecia a vontade de continuar os combates contra os muras até a destruição total deles e, para isso, era preciso um ataque à sua aldeia principal, e desta forma Itacoatiara foi colocada como o objetivo final dos aliados. Era preciso tomar a aldeia mura e destruir o símbolo de seu domínio, mostrando aos outros índios da região que um novo poder estava surgindo ao conquistar as terras férteis da várzea, numa aliança de guerreiros fortes e caciques corajosos, que jamais temeriam impor a vontade de suas nações a usufruir as riquezas abundantes das margens do grande rio Amarelo.
         A reunião dos caciques aliados terminou em júbilo e a nenhum deles pairava qualquer dúvida sobre a vitória iminente e definitiva contra os muras. Todas as oportunidades apontavam um desfecho favorável aos guerreiros vencedores da primeira batalha: eram cinco tribos dispostas a por fim ao domínio dos muras sobre a região, estavam inebriados pelos resultados de uma vitória fácil contra inimigos em fuga, já haviam conquistado parte considerável de seus territórios e reuniam tropas bastantes para vencer quantas guerras fossem preciso e manter as terras tomadas.
         Taobara ofereceu uma grande festa aos aliados, quando repartiram as mulheres e as crianças aprisionadas dos muras e praticaram o ritual da vitória, numa noite iluminada por imensas fogueiras nas quais assaram muitas tartarugas e peixes, também trouxeram as caças da região do Canaçari, ofereceram caxiri aos guerreiros e serviram retalhados os muras aprisionados.
         - Aproveitem esta grande festa, meus amigos, e preparem-se para mais farturas quando tivermos vencidos nossos inimigos, prometeu Taobara aos aliados quando já se encontrava entorpecido pelo efeito da bebida dos índios.

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