AS COMEMORAÇÕES PELAS PRIMEIRAS VITÓRIAS LOGO DERAM LUGAR ÀS LUTAS INTERNAS entre os caciques. Meyki queria assumir o posto de principal chefe das tropas aliadas por conta do apoio de Paraketejê e de Araweté, e pensando mais adiante em dividendos maiores, quando por fim a vitória sobre os muras fosse definitiva e a paz retornasse à região, mas desta vez sob o domínio dos caboquenas. Meyki tinha alguns trunfos ao seu lado e o principal era Yepá, conhecedor da língua dos mundurucus e capaz de se entender com os saterês. O maioral podia assim manobrar tranqüilamente e fazer valer sua vontade, minando a força de Taobara sobre os aliados do Canaçari.
Mas se contrapor a Toabara era uma situação distinta de vencê-lo na argumentação, então o cacique caboquena adequou seus planos à realidade e indicou Araweté para comandar as tropas aliadas, por ter mais bravos sob seu comando e conhecer melhor ainda as táticas de luta dos muras. Paraketejê concordou com a proposta de Meyki, numa atitude óbvia por não ser interessante aos principais caciques ficar sob as ordens de um maioral cujo território não ultrapassava os limites do lago Canaçari e com tropa bem menor que a dos guerreiros vindos da Mundurucânia.
- Esta é uma proposta condizente com a força de meus guerreiros, disse de forma incisiva o maioral mundurucu, rejeitando qualquer argumento de Taobara, que insistia em ficar a frente dos aliados.
Taobara aceitou resignado a realidade da guerra, mas seu peito afastou qualquer espaço onde pudesse caber consideração por Meyki, e isto deixou bem claro quando, ao final da reunião, abandonou a taba onde estavam os caciques lançando olhares de ódio ao caboquena, que respondeu com riso maroto de satisfação. Parecia ser a primeira vitória política de Meyki sobre Taobara, porque este fora alijado da supremacia sobre as tribos da região do Canaçari, mas o cacique guanavena ainda tinha muita força e também sagacidade por estar acostumado a manipular as situações adversas e conquistar ganhos adiante.
Foi isso que Taobara resolveu fazer ao aderir com calculado entusiasmo ao novo comando dos guerreiros, tentando ajudar da melhor maneira possível nos preparativos da guerra e oferecendo seus bravos mais próximos para missões de reconhecimento. Numa jogada de grande esperteza, protestou de imediato quando Meyki propôs colocar Yepá na linha de frente dos rastreadores, que deveriam se aproximar muito perigosamente da aldeia dos muras e conhecer suas defesas.
- Yepá é o melhor rastreador que temos entre nossa gente, mas ele será muito mais útil estando entre nós do que partindo em uma missão de alto risco, disse Taobara durante a reunião dos caciques e recebeu o apoio de todos, evidenciando assim a inexperiência de Meyki na montagem de estratégias.
O cacique guanavena indicou até o caboquena Zo´é para a missão de reconhecimento nas terras inimigas e explicou tratar-se de um rastreador de visão acurada, deixando claro aos comandantes da guerra que conhecia muito bem sua tropa e a dos caboquenas. Meyki percebeu a intenção de Taobara de diminuí-lo perante o conselho dos caciques, mas não encontrou argumento para contestar o guanavena. Ele tinha razão: Zo´é era o melhor homem entre os caboquenas e daria conta da tarefa, e Yepá era o único entre todos que conseguia se comunicar em todas as línguas faladas entre os aliados.
O pequeno grupo formado por representantes de todas as tribos aliadas partiu para as terras dos muras com a finalidade de traçar os melhores caminhos de ataque a aldeia Itacoatiara. Eles seguiram em leves canoas pelo lago Canaçari, esgueirando-se pelos igapós até atingir os confins lacustres onde as águas já não tinham dono por estarem localizadas na fronteira indefinida entre os territórios dos povos inimigos. Desembarcaram durante a noite e adentraram na selva em busca de proteção, mas quando se reuniram pela manhã, constataram que estas terras estavam desabrigadas e então seguiram adiante, percorrendo caminhos abandonados pelos muras e encontrando em toda parte sinais visíveis de pessoas terem deixado esta região e se concentrado na aldeia principal.
- Os muras estão se reunindo em Itacoatiara, disse Zo´é aos demais bravos.
- Por isso mesmo devemos aumentar nossa vigilância. Os muras são ladinos e vão deixar observadores na região, para impedir um ataque surpresa em sua retaguarda, explicou Warypa, o experiente rastreador guanavena, participante de muitas missões iguais a esta.
Eles avançavam cautelosos pelas matas, cada um sozinho, porque juntos seriam mais facilmente localizados caso encontrassem os esperados vigias muras. Se comunicavam através de piados de pássaros e estavam atentos a qualquer movimento que pudesse delatar a presença do inimigo. No final da tarde se reuniam nas árvores mais elevadas, onde se escondiam dos perigos da noite e então relatavam suas observações, tramando novos rumos para avançarem até a aldeia principal dos muras.
As evidências da proximidade dos muras se tornavam claras quanto mais os aliados avançavam no território. Eles viram os índios preparando paliçadas em busca de proteção contra ataques pelos flancos e pela retaguarda. Viram mulheres recolhendo frutas e cuidando dos roçados, enquanto as meninas colhiam mandiocas e estocavam na aldeia. Tiveram muitas vezes de se esconder a fim de não serem descobertos pelas crianças quando brincavam nas proximidades e observaram os muras escondendo muitas canoas nas margens do rio, se precavendo de um possível ataque fluvial.
Os rastreadores tomaram conhecimento das estratégias de defesa dos muras e então resolveram retornar à ilha Saracá e contar aos seus comandantes sobre a situação do território a ser atacado. Atravessaram a selva até se encontrarem nas margens do lago Canaçari, onde desenterraram as canoas escondidas e embarcaram nelas para a longa viagem de retorno. Quando chegaram na proteção da ilha, diante do conselho dos maiorais, relataram tudo que viram. Que os muras estavam preparados para longas batalhas, reuniam homens de todas as localidades próximas, dispostos a defender a aldeia de Itacoatiara.
- Vamos atacar rápido e por todos os lados, disse Araweté, recebendo a concordância de todos os outros caciques.
Taobara desenhou no chão um círculo, representando a aldeia dos muras, e dispôs as tropas no ataque, colocando cada tribo em uma posição. Seus argumentos eram precisos e até Araweté, o comandante dos aliados, concordava com o arranjo dos guerreiros. Somente Meyki não gostou quando se viu no centro da formação que atacaria por terra, deixando o flanco do nascente aos guanavenas, enquanto os bararurus atacariam pelo poente, por onde se supunha os inimigos tentariam fugir caso o ataque dos aliados obtivesse sucesso.
Parakatejê interveio a favor de Meyki, questionando o posicionamento das tropas que atacariam por terra. Ele considerava os guanavenas, em maior número, mais capazes de atacar pelo centro, auxiliados pelas laterais pelos guerreiros caboquenas e bararurus. Os bravos saterês e mundurucus atacariam pelo rio, por suas destrezas em empreender o assalto nas margens, pois suas canoas eram maiores e podiam carregar muito mais homens.
- Meus bravos não temem enfrentar o inimigo por nenhuma posição, jactou-se Taobara, aceitando colocar seus homens no lugar dos caboquenas e exortando todos ali a abdicar de seus receios porque seu irmão Nahpy preparava uma porção que protegeria os aliados contra as armas dos muras.
- Temos de estar unidos na batalha, sem dispersão de objetivos. Qualquer fraqueza será nossa derrota, enfatizou Araweté, reafirmando sua posição de líder no conselho dos maiorais.
Era preciso preparar os últimos detalhes e partir ao ataque final contra Itacoatiara, a aldeia imensa dos muras, nunca antes cercada e nem posta à prova suas defesas. A quantidade numérica dos aliados os encorajava a tentar uma estratégia perigosa, pois dificilmente poderiam contar com o elemento surpresa e vencer os inimigos concentrados em seu território. Mas a possibilidade de recuo ou tentativa de fazer um acordo de paz era improvável e a única alternativa restante era dizimar os muras, embora eles também estivessem preparados para as piores batalhas, como sempre foram.
Quando o dia da partida chegou os guerreiros se concentraram na praia e ouviram as orientações dos caciques, depois receberam a porção protetora de Nahpy, cujos ingredientes eram uma mistura de todas as fórmulas mágicas trazidas pelos pajés de todos os povos que compunham a tropa aliada. Nunca na ilha Saracá houve uma concentração tão grande de canoas, ocupando toda a extensão da areia, desde a praia do Terceiro até o igarapé do Mucajatuba.
Nahpy, Tawacã e outros pajés distribuíram a porção aos guerreiros e todos beberam com a convicção de estar protegidos das armas inimigas. Alguns até gritando palavras de encorajamento à tropa, recebendo em resposta urros de guerra. Estavam todos pintados, mas mesmo assim Nahpy fez questão de passar em cada um deles a tintura vermelha, a cor da profilaxia, entoando a canção de atrair os espíritos da coragem e da bravura, sabendo o pajé que toda a proteção aos guerreiros seria pequena diante do desafio que os aguardava.
Quando se encontrou diante de Aiauara, Nahpy entornou sobre a cabeça do filho o restante da tintura vermelha da cuia, deixando seus cabelos impregnados do urucum. O cacique olhou nos olhos do filho e invocou proteção ao deus Paharamim, para guardar o corpo do guerreiro que viu nascer, crescer, se tornar homem e por quem seu coração se estilhaçava todas às vezes quando o via partir para a guerra.
- Vai meu filho, e os espíritos de nossos ancestrais te acompanhem durante a luta, soluçou Nahpy ao filho. Saiba honrar o sangue do teu povo, pediu por fim.
Taobara se aproximou do irmão tentanto evitar que a encenação do Nahpy afrouxasse a determinação dos outros guerreiros. Era um exemplo ruim do pajé, demonstrar sentimentos. Ao cacique custara inserir nos comandados atitudes de coragem e desprendimento com a própria vida, mas o pajé estava se mostrando pouco honrado ao dedicar ao filho maiores cuidados que aos outros guerreiros. Taobara segurou seu irmão pelo braço e o mandou continuar a cerimônia de proteção, sem gestos de fraqueza e sem contaminar seus bravos.
- O quê tu pretendes com sentimentos de mulher? questionou o cacique ao irmão. Por acaso queres desmoralizar o sangue guanavena?
- Este é meu filho e não gostaria de vê-lo voltar morto da guerra, explicou o pajé, quase soluçando.
- Ele lutará ao meu lado e de seu primo Pikiwaha e cada um de nós trará uma cabeça de mura como troféu de guerra, prometeu Taobara ao pajé.
Nahpy venceu suas emoções e terminou o ritual com o orgulho recuperado, oferecendo a cada guerreiro o escudo das porções mágicas criadas em conjunto com os outros pajés.
Quando o sol da tarde começou a descida rumo às cabeceiras do rio Orowo, os bravos iniciaram as danças ritualísticas, que invocavam a proteção de seus deuses. Antes da noite se estender sobre o mundo eles embarcariam nas canoas, rumo à batalha da qual nem todos retornavam. Lá, os aguardavam as incertezas de lutas ferozes, e estas plantavam dúvidas na coragem dos mais valorosos guerreiros, fazendo-os temer o destino de cruel de ser feito prisioneiro dos inimigos. Os bravos dançaram até o sol se esconder e então tomaram o rumo do lago Canaçari, saindo em muitas canoas rumo ao destino incerto.
Antes, Monawa fora se despedir de sua esposa e prometeu a ela retornar trazendo um grande botim da aldeia de Itacoatiara, para encher-lhe de orgulho pelo marido honrado que sabia lutar e não temia os perigos das guerras. Tawacã levou as mãos de Monawa à sua barriga e o fez prometer não a ela, mas à criança em seu ventre. O caboquena sentiu as pulsações da pele de sua esposa e garantiu um retorno rápido, a tempo de ver a família receber mais um membro de sua gente. Depois ele embarcou com a tropa dos guanavenas, remando junto do cunhado Aiauara e seu primo Pikiwaha, ao lado da embarcação onde seguia o cacique Taobara.
As canoas sumiram na escuridão do lago, contornando as últimas árvores do Mucajatuba até estarem todas enfrentando as águas do lago, num alvoroço de gritos de exaltação e de remadas. Mas só foi a tropa deixar os contornos da ilha e o silêncio invadiu o ambiente, quebrado apenas pelas batidas dos corações dos guerreiros, agora todos em um mesmo pensamento, concentrados em imaginar como seria a batalha e pedindo a Paharamim para não tombarem durante a luta.
Era um momento de tensão, no qual cada guerreiro se fechava absorto, procurando concentrar-se no destino mais próximo a cada remada, a cada banzeiro vencido, e o inimigo espreitando a frente, também tenso na longa noite que traria a morte ao campo de batalha. Os aliados avançavam protegidos pelo silêncio e pela noite, até atingirem o canal que liga o lago ao grande rio Amarelo, onde se separariam até o cerco à aldeia dos muras, logo nas primeiras luzes da aurora.
Assim como estava planejado, os guerreiros das tribos mundurucu e saterê adentraram no imenso rio, remando com fúria e vencendo a correnteza contrária até Itacoatiara. Pelo lago seguiu o restante da tropa, sob o comando de Taobara, cuja experiência em guerras o transformara na esperança de vitória fácil.
Taobara mandou seus guerreiros apressarem as remadas porque queria surpreender o inimigo antes mesmo de mundurucus e saterês atingirem a aldeia e os bravos obedeceram com entusiasmo. Eles também estavam ansiosos pelo início da batalha, para superarem os momentos de angústia do pré-combate. O cacique sabia da aflição de cada um dequales índios e, por isso, quanto logo se iniciasse a batalha, mais rápido estariam livre da agonia de esperar o seu momento decisivo.
A tropa aliada estava nas margens do lago Canaçari, na retaguarda da aldeia dos muras, mas quando desembarcaram não encontraram nenhuma resistência por parte dos inimigos. Os caciques então reuniram seus homens e avançaram pelo território em marcha acelerada, com os primeiros pássaros já iniciando o alvoroço do despertar e a tropa devendo completar o cerco antes das primeiras luzes da manhã, surpreendendo assim os adversários quando eles estivessem acordando.
Mas os muras não dormiam nesta noite, assim como deixaram de descansar nas muitas noites que antecederam esta madrugada. Os primeiros conflitos se deram em emboscadas preparadas pelos defensores, com rajadas de flechas zunindo da escuridão da floresta até surpreender os combatentes invasores. Essas escaramuças foram apenas para retardar o avanço dos aliados, mas estes continuavam a seguir em frente, penetrando na selva a caminho de Itacoatiara, buscando agora mais proteção entre as árvores, mas com o único e definido objetivo de esmagar os muras.
Mesmo enfrentando os ataques esporádicos dos inimigos, os aliados foram diante das primeiras paliçadas da grande aldeia mura e encontraram uma fortificação capaz de deter seu avanço, mas não o suficiente de conter o ímpeto dos guerreiros. Taobara posicionou sua tropa e recebeu a informação de que Meyki estava pronto para o ataque, assim como Jauaraçu e os guerreiros bararurus. O golpe final contra os muras estava armado, a claridade da aurora se anunciava no horizonte e os homens posicionados, todos com objetivo de matar e não morrer.
- O momento da verdade é agora, chegou o dia de cada um mostrar sua coragem e honra, gritou Taobara aos índios, erguendo a clava e avançando contra os muras.
Os guanavenas seguiram seu cacique no ataque e as outras tribos também iniciaram o avanço, no entanto, a primeira linha de atacantes tombou diante das flechas inimigas, mas as hordas conseguiram se esgueirar entre as árvores, levando os primeiros guerreiros a atingir as paredes da paliçada. Na retaguarda, uma linha de arqueiros disparou suas flechas contra a defesa dos muras, reduzindo um pouco a ferocidade dos defensores. Taobara ordenou o avanço de outra turma às paliçadas e novamente as flechas cruzaram os céus de ambos os lados, atingindo aqueles que corriam e também os escondidos atrás das paredes protetoras da aldeia.
Pelo lado da nascente, Meyki mandou seus homens rastejarem e procurarem a proteção das cercas, mas mesmo assim eram atingidos pelas flechas, enquanto seus arqueiros também atiravam contra a fortificação. Jauaraçu atacou apenas com flechas, evitando expor seus guerreiros a um assalto em franca desvantagem. Mesmo assim, os bararurus fustigavam as defesas dos muras e apoiavam o avanço dos guanavenas com novas saraivadas de setas.
Os invasores estavam concentrando seus guerreiros em torno da cerca que protegia a aldeia, mas venciam com dificuldades o descampado entre a floresta e a paliçada, perdendo muitos bravos sob as flechas dos muras. Taobara estava ansioso pelo início do ataque no rio, com mundurucus e satarês, mas estes estavam atrasados na luta e ainda não formaram a outra frente de batalha, fortalecendo a defesa dos muras. Então Taobara mandou um aviso aos outros caciques, de retardar o assalto à cerca e a invasão da aldeia, e ficaram trocando flechas, muitas vezes devolvendo as mesmas lanças atiradas pelos adversários.
A luta estagnou por um momento a ferocidade, mas o ímpeto dos aliados voltou a crescer quando gritos vindos das margens do grande rio foram ouvidos e percebeu-se uma correria nas defesas dos inimigos. O aviso chegou primeiro a Meyki e este mandou passar logo a informação a Taobara: os mundurucus e os saterês estavam invadindo as margens do grande rio Amarelo e pressionando os muras por todos os lados. A grande batalha ia ter início e, dela, somente os mais valorosos sairiam com vida.
Taobara mandou outra linha de guerreiros avançar até a paliçada e os bravos seguiram adiante, enfrentando agora menos resistência por parte dos defensores. Os guanavenas foram rastejando e todos agora atingiram o objetivo, sem o perigo das flechas muras. O cacique ordenou que outro grupo avançasse, e depois mais outro, até chegar a vez de Pikiwaha, Aiauara e Monawa assumirem posição no ataque.
O cacique sentiu a respiração arfante dos jovens guerreiros e lembrou rápido do filho pequeno, brincando nas areias da praia, nadando no Canaçari e correndo para abraçá-lo. No entanto, sua posição de chefe se desfez desses pensamentos e mandou Monawa, o bravo caboquena sob seu comando direto, assumir a liderança do grupo e deu a ordem de avançar.
Por um instante o cacique esqueceu a responsabilidade da guerra e observou o grupo correndo até chegar na paliçada. Viu Pikiwaha se esgueirando entre as árvores, seguido por seu primo Aiauara. Viu os dois jovens desprotegidos na floresta entrarem em campo aberto, e ambos se jogaram no chão, rastejando para evitar a picada mortal das flechas. Taobara teve um momento de pânico ao ver os muras aparecerem no alto da cerca, apontando seus arcos contra os atacantes, num ângulo capaz de atingir os bravos guanavenas no chão.
- Atirem contra o alto da paliçada, ordenou Taobara à linha de flecheiros na retaguarda guanavena.
Uma saraivada de setas foi lançada contra os muras, atingindo alguns no alto da cerca e diminuindo assim o ímpeto da defesa adversária, que tinha de atirar do próprio chão contra os inimigos rastejantes. O cacique ficou aliviado quando os bravos conseguiram a proteção da cerca, mas agora estavam em iminente perigo porque os muras poderiam sair para a luta direta. O maioral ordenou e mais guerreiros avançaram contra as fortificações. O assalto contra a paliçada seria imediatamente, com luta direta e na força bruta, dentro da inexpugnável Itacoatiara.
Taobara enviou emissários com ordens aos outros caciques, esperando apenas suas palavras serem transmitidas, e obedecidas, e correu com a tropa inteira contra as defesas adversárias. Deixou na retaguarda uma linha de flecheiros dando proteção, enquanto avançavam até a paliçada, com as bordunas erguidas em sinal de fúria e gritos medonhos de calar a defesa dos inimigos.
Mas os muras não se intimidaram e mesmos cercados e sob ataque cerrado esperaram os inimigos romperem suas linhas e então se mostraram por completos, com as caras pintadas de vermelho e negro, as cores da guerra, e eram muitos, agrupados em diversas frentes, prontos para empreender a defesa de sua aldeia invicta, em cujo solo jamais o inimigo pisara com objetivo de conquista. Esperaram com paciência o cerca se fechar contra eles e quando viram os inimigos avançando, saltaram de suas defesas, com gritos ferozes e uma determinação de pôr à prova a vontade dos aliados em empreender a luta.
Os bravos aliados foram ao encontro dos muras, ostentando no ar suas armas até chegarem a uma distância da qual não mais poderiam recuar, impulsionados por outra leva de guerreiros avançando na retaguarda, forçando a corrente humana à batalha. Os primeiros confrontos se deram com lanças e cada grupo atingiu o inimigo com igual ímpeto, espetando os que não conseguiam se desvencilhar da morte. Mas em pouco tempo as lanças se tornaram inúteis, tal era a multidão compacta se engalfinhando até mesmo com as mãos.
A partir desse ponto, todo o comando perdeu sentido e ninguém mais cumpria ordens no campo de batalha, com os bravos guiados apenas pelo instinto de matar e empenhados em eliminar o inimigo sem perder a própria vida. Taobara gritava aos seus homens, mas não era mais ouvido. O eco de seus comandos retornava até ele, deixando-o exaltado por tantas ordens descumpridas, até que a vontade de lutar suplantou sua razão e a ele se atirou com ódio contra os inimigos, vendo em sua frente os muras a serem derrubados pela força de sua borduna.
Pikiwaha e Aiauara lutavam ao seu lado e a empolgação do cacique contagiou o espírito dos jovens guerreiros. Monawa também abandonou seu receio cauteloso, esquecendo por um momento os aconchegos de Tawacã e a felicidade de Waiãpi e se entregou ao fragor da luta, com uma coragem intrépida. Chegou a salvar seu cunhado de um golpe mortal quando um guerreiro mura levantou a borduna e ia atingir a cabeça de Aiauara, que se embatia com outro inimigo, golpeando-o mortalmente as costas do atacante e impedindo o mesmo de desferir seu ódio contra o irmão de Tawacã.
Aiauara ouviu o estalido do baque e sentiu o corpo do mura tombando atrás de si, num esgar de morte súbita. Isso o fez recuar da luta contra o adversário a frente e pode contemplar o desfecho da cena, com a borduna de Monawa ainda guardando a posição de ataque contra o inimigo morto. O guanavena compreendeu que seu cunhado salvara-lhe a vida, e olhou agradecido a Monawa e se voltou com fúria contra o adversário, na certeza de que sua retaguarda estava protegida pelo bravo caboquena.
Pikiwaha estava dominado pela força do grande cacique guanavena, investindo com coragem contra o bloco cerrado de muras, lavado no sangue e no suor que respingava de seu pai a cada golpe certeiro da clava do maioral, que neste momento comandava mais pelo exemplo do que com palavras. O filho de Taobara mostrava determinação ao se deixar ver por todos que o sangue do pai corria em sua veia e acirrava a luta toda vez que a borduna atingia o inimigo, mesmo que apenas servisse para afastá-lo, mas sentiu a sabor da morte quando um mura entrou em seu raio de ação e a força da arma foi lançada contra ele.
Num primeiro momento, o adversário conseguiu se desvencilhar e tentou o contragolpe, mas com agilidade felina Pikiwaha se pôs a salvo do ataque, desviando-se da borduna inimiga e, ato contínuo, erguendo sua clava em precisão assassina. O bravo guanavena ameaçou com o golpe pelo alto, mas um rodopio em seu corpo desnorteou a defesa do adversário e o ataque saiu pelos flancos, ainda na altura de atingir sua cabeça com tanta precisão que o jogou no solo, enquanto o sangue inimigo espalhado ao vento atingiu com abundância o peito de Pikiwaha, respingando até mais além em seu primo e em seu pai. O filho do maioral guanavena se inebriou com o sangue adversário em seu corpo. Passou a mão em seu rosto encoberto pela morte e bradou aos seus companheiros.
- Vamos valentes guanavenas. Ao ataque contra os muras infames.
A exortação de Pikiwaha levantou o moral dos demais guerreiros e seu pai viu neste gesto um ato de valentia tal, a ponto de o filho garantir neste momento o direito de herdar a liderança de seu povo, mas ao cacique também não escapou o pressentimento de o brado do jovem ter sido uma primeira tentativa de usurpação, e a dualidade de suas emoções o colocou novamente no posto de comando.
Taobara recuou da linha de frente para melhor compreender o instante da guerra, observando os índios indo ao encontro do inimigo que usava a tática de se fechar em círculo e enfrentar o adversário no menor espaço. Procurou seu filho e Aiauara na confusão da luta e os encontrou lado a lado, brigando com coragem. Chamou-os para próximo de si, porque entendia que a guerra seria vencida com inteligência e não com desprendimento de valentes.
O maioral de todas as tribos do lago ordenou seus comandados conterem o ânimo da luta e investirem contra os muras com menor ferocidade, posto que o inimigo se agrupara e os ataques não estavam resultando em vantagem aos aliados. Deixou seus bravos fustigando os adversários e mandou seu filho procurar Jauaraçu, enquanto Aiauara foi em busca de Meyki. Logo os caciques estavam reunidos e, juntos, se dirigiram às margens do grande rio Amarelo, na esperança de conjecturarem com os chefes mundurucu e saterê, que combatiam os muras ainda nas barrancas.
Encontraram Arawetê ainda montado em sua canoa, no meio do rio, comandando seus bravos no cerco à fortaleza dos muras, no alto do barranco. Paraketejê e os bravos saterês entraram por um jauarizal e subiam o morro, mas eram detidos não por ferozes guerreiros, e sim pelo intricado cipoal e galhos, além de formigas vorazes, que não respeitavam as tinturas e nem as essências repelentes usadas justamente para se livrarem dos insetos.
Taobara mandou recados aos aliados, pedindo que evitassem fechar o cerco sobre os muras, porque eles eram em bom número e estavam esperando a oportunidade de se lançarem contra seus atacantes, numa decisão de tudo ou nada, apenas confiando em sua capacidade de retaliação. O cacique guanavena conhecia está tática, já a havia usado quando fora cercado pelos muras, com resultados, senão de sucesso, porém menos trágico. Era preciso ter paciência, fustigar o inimigo em seu cercado, causar medo nos corações de guerreiros ferozes, que enquanto estivessem no controle da situação, resistiriam com tenacidade.
Os caciques decidiram se reunir e traçar a nova estratégia de combate, mas de início ordenaram que a luta deixasse de ser a bordunas e passasse à troca de ofensas, com os guerreiros desferindo insultos, ao invés de golpes mortais, mostrando suas forças, correndo até quase a linha de combate e retornando rápido, porque as flechas de súbito rompiam o ar em busca de um alvo. A trégua momentânea serviu também para tirar do campo de batalha os feridos de ambos os lados, enquanto os mortos continuavam a sangrar no chão da aldeia dos muras.
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