A NOTÍCIA DA MORTE DE ITAÚNA CHEGOU RAPIDAMENTE a todas as aldeias aliadas e delas vieram os guerreiros atendendo ao chamado de Taobara. A guerra agora era questão de honra, de defender os territórios e os lugares de onde as tribos tiravam o sustento. Uataçara chegou com muitas canoas repletas de bravos caboquenas e Jauaraçu veio com seus guerreiros bararurus. Se encontraram na ilha Saracá, reuniram suas forças e aguardaram pelas informações sobre os muras que foram buscar os três melhores rastreadores aliados. O cacique guanavena acolheu a todos em cabanas erguidas na pressa da guerra, enquanto grupos se aventuravam dia e noite em busca de comida para alimentar as tropas de bravos.
Alguns dias depois chegaram Waripa, Pariti e Utami trazendo notícias sobre os muras. Eles chegaram ao grande rio Amarelo na mais escura das noites, remando a canoa com tanto cuidado que levaram quase a madrugada toda para cruzar as mesmas águas que em situações diferentes não levariam mais de algumas remadas. No entanto, com exagerada segurança eles seguiam mais a correnteza, mas mesmo assim conseguiram avançar pelas margens até o coração do território inimigo.
Para não deixar pistas aos oponentes, eles cavaram um buraco na argila, enterraram ali a canoa e, sob a proteção ainda das trevas da madrugada, se esconderam nas matas até o dia inteiro amanhecer, mas só saíram do esconderijo após se certificarem de nenhuma gente estar por ali. Fizeram o reconhecimento do terreno na beira onde caminharam, escondidos na vegetação como pequenos animais, atentos a todos os ruídos. Eles temiam mais encontrar o inimigo que as feras da floresta. Depois se embrenharam na mata, seguindo a descida da correnteza do rio, mas não chegaram a percorrer grandes distâncias, porque o temor tornava seus passos precavidos e curtos, observando mais que andando.
Dias se passaram nesta aflição, sem qualquer contato com a gente mura. No entanto, quanto mais rastejavam pelas trilhas da floresta, mais evidente se tornava a presença dos donos daquelas margens. Encontraram roçados deixados ao mato e aldeias abandonadas há tempos, nas quais a distribuição das cabanas dava a impressão de ter abrigado grande população. Também viram armadilhas armadas para a caça e deduziram que estavam em área de perambulação dos muras. Dias depois se depararam com uma derrubada recente, aguardando dias de verão pleno para arder no fogo. Próximo dela, eles encontraram ferramentas e utensílios pessoais guardados dentro de uma choça de palha. Havia indícios evidentes de gente vivendo ali, ou passando dias, porque uma fogueira ainda guardava o calor dos últimos fogos, nos quais se escondiam pequenas brasas.
Rapidamente os batedores recuaram para dentro da mata, tratando de subir nas árvores mais altas, escolhidas conforme sua posição estratégica, para melhor observar a movimentação na floresta. Passaram o resto do dia no alto dos galhos e foi pelo lado onde se encontrava Waripa, já no fim da tarde, que um barulho estranho denunciou a aproximação de um grupo de guerreiros. Eram no total de três, entre eles um bem mais velho, que poderia ser o pai dos dois mais novos. Traziam caça nova e se dirigiram à choça onde estavam abrigados. O batedor guanavena deixou que passassem por ele e do alto do galho onde estava tentou comunicação com seus parceiros aliados.
Ele palrou como um periquito, porque se tentasse o canto de um pássaro maior poderia atrair a atenção dos muras. Seus sons se perderam na algazarra da selva, então tentou o piar do anum, e logo recebeu de volta a resposta de Utami. O sinal era tão claro que o guanavena pode até localizar o aliado bararuru escondido entre as ramas de uma samaumeira, na direção da margem do rio. Waripa lhe fez um gesto e Utami confirmou também ter visto o grupo inimigo se deslocando na selva. O guanavena perguntou por Pariti, mas o outro não sabia.
Quando a noite caiu, Waripa e Utami desceram das árvores e foram em busca de Pariti, que deveria estar nas proximidades, não sendo difícil encontrá-lo no matagal, mesmo agachado e silencioso, como se fosse apenas um toco na paisagem úmida da selva. Os três então se reuniram e conversaram sobre os próximos passos a seguir, enquanto espreitavam o grupo mura. Decidiram ficar nas proximidades, mas um seria encarregado de vigiar cada movimento dos inimigos, verificando o deslocamento e avisando aos demais toda as vezes quando se afastassem da choça.
- Tu, Pariti, ficas aqui e não tiras os olhos dos muras, ordenou Waripa. Enquanto eu e Utami vamos percorrer a área, procurando descobrir se não há mais gentes deles nas redondezas.
Assim que amanheceu, Waripa e Utami saíram para vasculhar cada canto da floresta, mas não encontraram rastros de outros muras, levando-os a concluir que aquele era um grupo isolado, talvez de caçadores se aventurando mais fundo na selva, procurando um lugar onde o restante da tribo um dia pudesse ocupar, por isso deram início ao roçado, preparando o terreno para uma futura aldeia.
- Esta é uma prática dos muras, comentou Utami, que se dizia o maior conhecedor dessa gente, porque costumava caçar nesta margem do grande rio Amarelo. Eles se deslocam com freqüência, sempre construindo novas aldeias e assim se espalhando pelo território, afirmou o bararuru.
Ao final da tarde se encontraram com Pariti e este relatou que os muras saíram para pescar e já havia retornado. Estavam agora aumentando o fogo para assar o pescado e não desconfiavam da presença de seus observadores. Pelas palavras do caboquena se confirmaram as suspeitas dos outros batedores, de que os guerreiros muras formavam um grupo de exploradores em busca de um local propício para o levantamento de nova aldeia, por isso tinham derrubado parte da floresta para um roçado e faziam expedição na mata para conhecer seu potencial de caça, assim como no rio, se havia peixe em abundância. Waripa propôs matar os três guerreiros muras quando eles estivessem dormindo, mas Utami e Pariti o fizeram ver ser esta uma atitude desastrosa.
- Não é uma boa idéia, porque quando derem pela falta deles então os muras vão descobrir que outras gentes estão fazendo incursão em suas terras, advertiu Utami.
Resolveram continuar descendo o rio na tentativa de encontrar as aldeias dos muras e assim o fizeram já na manhã seguinte, quando deixaram os três guerreiros inimigos em suas ocupações e foram em busca de novas descobertas. Para isso andaram por mais outros dias, se esgueirando na floresta, com a atenção redobrada para cada som ou algo que destoasse do ambiente, até começarem a perceber sinais de movimentação de pessoas pela mata, pois estava se tornando comum galhos de árvores quebrados e mesmo pegadas, tão visíveis como se o pé que a fizera ainda pisasse pelo caminho.
Adiante, cheiros vieram até aos rastreadores, que acostumados à vida na selva e às suas dificuldades, logo sentiram o aroma de carne de capivara assando em fogo brando, deixando neles a lembrança de que já há muitos dias estavam comendo somente carne de macaco crua, porque nem acendiam fogo para não atrair a atenção de inimigos. Eles estavam próximos de uma aldeia mura e até os risos das crianças chegavam aos seus ouvidos, mas estavam com medo, pois sabiam que, se descobertos, a morte seria o destino final de todos.
Waripa tomou a iniciativa de subir na árvore mais alta que encontrou, um angelim branco de tronco grosso, o qual a peconha ligeira do guanavena não encontrou resistência na escalada. Ao atingir a copa, ele vislumbrou uma grande aldeia, com muitas cabanas e fortes guerreiros a protegê-la, quase duas vezes o tamanho da taba de sua gente. Viu também a oca principal gigantesca, capaz de abrigar inúmeras famílias em seu interior. Nas proximidades das margens do grande rio Amarelo, Waripa identificou a paliçada protetora contra invasões. Não era muito alta, mas poderia se mostrar um obstáculo intransponível em caso de um ataque por água, ainda mais protegidas por torres elevadas, onde poderiam se abrigar mais de dez guerreiros, oferecendo posições privilegiadas para repelir os invasores, com chuva de flechas.
A aldeia estava bem protegida na margem do rio, mas pela floresta os rastreadores identificaram algumas facilidades de ataque. Os muras sempre enfrentaram invasões vindas das águas. A floresta em volta da taba não merecia maior vigilância, embora algumas cabanas isoladas estivessem ali erguidas, como a linha extrema de defesa, onde não moravam famílias e sim macacos treinados para iniciar a gritaria ao menor sinal de aproximação de qualquer pessoa.
Os três rastreadores ficaram ainda mais alguns dias observando a vida da aldeia e quando tiveram informações suficientes sobre os muras retornaram ao local onde desembarcaram, seguindo ao contrário da correnteza do rio, mas sem relaxar na atenção ao inimigo, tanto que quando já se encontravam a apenas um dia de caminhada de onde pretendiam chegar, perceberam três guerreiros muras se aproximando. Eles passaram sem notar a presença de estranhos e nem os olhos que os observavam com a precisão de felino.
Retornaram à ilha Saracá e foram recebidos pelos maiorais das tribos aliadas, reunidos para escutar o relato dos rastreadores. Eles contaram tudo, acrescentando detalhes sobre as margens do rio Amarelo, sua grande oferta de caça e a fartura de peixes, pescados até nos barrancos. Falaram que viram piracemas fervilhando nas águas, com peixes saltando para dentro das canoas ou indo de encontro das margens até serem recolhidos pelos muras com as próprias mãos. Disseram que os inimigos estavam explorando uma área na intenção de construir nova aldeia, muito próxima das terras dos guanavenas, que poriam em risco a posse do Purema e do Jauara, pois bastavam essas gentes caminhar alguns passos e estariam na beira do lago Canaçari, de frente para o território sagrado das tribos aliadas. Relataram sobre a facilidade de um ataque pela retaguarda da aldeia, pois os muras defendiam apenas as margens do rio e apontaram a direção onde estava localizada a aldeia dos inimigos.
- Basta seguirmos rio abaixo e em duas noites de navegação a favor da correnteza estaremos nas proximidades da aldeia, informou orgulhoso Waripa, recebendo a confirmação dos demais rastreadores.
Não precisaram de maiores explicações. Os caciques rapidamente convocaram seus bravos e deram a ordem para a guerra. Que se preparassem, porque na manhã seguinte iniciariam a marcha até a aldeia dos muras.
Quando a noite caiu, Nahpy reuniu os guerreiros e iniciou o ritual de proteção. Colocou todos sentados em volta da grande fogueira acessa na praia, dançou para os espíritos protegerem seus corpos contra os ferimentos de morte, baforando sobre eles a fumaça de seu cachimbo e os envolvendo na nuvem que serviria de escudo contra as lanças, as flechas e os porretes dos muras. Sobre o corpo de Aiauara, Nahpy lançou uma porção maior de fumo e solicitou dos ancestrais cuidado redobrado ao jovem guerreiro, seu filho, menino ansioso pela primeira batalha.
Os guerreiros foram levados à dança, ritual para invocar coragem e força de Paharamim, necessárias quando a batalha se iniciasse. Os três caciques estavam reunidos na cabana de Taobara, junto com seus homens de maior confiança, traçando os planos do ataque. Depois de ouvirem pela última vez o relato dos rastreadores, acertaram os detalhes e então foram participar da festa. Até mesmo eles precisavam da proteção dos espíritos. Quando o ritual terminou, os guerreiros foram para suas redes dormir, alguns sonharam com conquistas e triunfos, outros atormeramram-se nas agonias da pré-batalha, mas todos foram levados para o mesmo sofrimento da proximidade da morte.
De manhã, os guerreiros embarcaram nas muitas canoas, atulhadas de gentes e de armas, outras levavam os víveres para os dias de campanha e eram conduzidas com rapidez por remos velozes, em direção à Ponta Grossa. A tropa seguiu o paraná de Itapiranga, até chegar ao canal que desemboca no grande rio Amarelo. Eles partiram em tumultuada alegria, disfarçando o medo de que muitos tombariam sob as armas dos inimigos. Sentiriam a dor das lanças, a espetada das flechas e o baque mortal das bordunas. Conheciam o sofrimento da dor, mas estavam preparados para isso, afinal nasceram homens e, como tais, sabiam das obrigações de seus destinos.
Na praia ficaram as mulheres e as crianças. Nahpy também estava no grupo que permaneceu na ilha. Junto com sua família, o pajé viu Aiauara pintado de vermelho e negro remando a canoa com destemor. Na mesma embarcação iam Pajuari e Pikiwaha, os três recém saídos do ritual de iniciação dos guerreiros. Portavam arcos e flechas atravessados sobre o peito, ostentando com orgulho os apanágios de homem com os quais participariam da primeira luta. Quando começaram a se distanciar da praia, os três olharam ao mesmo tempo para trás, como impulsionados por uma vontade irresistível de guardar na memória a beleza da ilha. Então se surpreenderam com o gesto de Tawacã, que ao lado da mãe, ergueu os braços e acenou em direção da canoa em que estavam.
Remaram o dia todo, ajudados pela correnteza a favor e quando o sol começou a se deitar atrás dos altos morros, Taobara, à frente do comboio junto com os outros caciques, avistou a samaumeira perfilada na margem. Ele conhecia a árvore e sabia que estava posicionada na entrada do canal que levava ao grande rio Amarelo. Então se pôs de pé na embarcação e fez o sinal para as canoas se agruparem. Os bravos iriam acampar esta noite na praia e só na manhã seguinte seguiriam rumo à aldeia dos muras, mas com o cuidado de lá chegarem na escuridão da noite, para evitar serem vistos pelos inimigos.
Os guerreiros obedeceram às ordens de Taobara e não acenderam fogueira para iluminar a noite, pois qualquer claridade poderia ser vista por olhos inimigos, delatando assim a presença dos aliados nas proximidades. Quando amanheceu, tomaram novamente o lugar nas embarcações e começaram a remar rumo ao grande rio Amarelo, mas por sugestão de Jauaraçu, acolhida pelos caciques, um grupo partiu na frente para sondar o caminho e manter informado o comboio sobre qualquer presença dos muras. Eles remaram até o começo da tarde seguidos apenas por imensos botos, que não deixavam de acompanhar os guerreiros.
Nesta outra noite, os bravos chegaram às margens do grande rio Amarelo e se aproveitaram da escuridão sem lua para empreender a aproximação à aldeia inimiga. Esta operação se mostrou desastrosa devido à correnteza bravia que arrastava as canoas, forçando os remadores a empenhar grande força para manter unido o comboio. Mesmo assim conseguiram chegar próximo da aldeia mura, denunciada pelas luzes das fogueiras acessas na taba e iluminando até o céu, dando uma visão clara de que deveriam iniciar o ataque ao desembarcarem na praia.
Os bravos foram saindo das canoas e se escondendo na mata, enquanto Waripe, Pariti e Utami indicavam as posições para melhor empreender o assalto à aldeia. Era ainda madrugada, mas mesmo assim os guerreiros enveredaram na selva para a batalha e o barulho provocado pelo deslocamento de tão numeroso exército despertou a atenção dos inimigos. Embora os muras tenham primeiro pensado se tratar de uma vara de porcos se aproximando da aldeia, aos poucos se deram conta da verdadeira ameaça. De imediato se prepararam para a guerra, buscando proteger o flanco de onde vinha a horda das tribos aliadas.
Os muras correram a apanhar suas armas e formaram a primeira coluna de flecheiros para surpreender os atacantes quando estes ainda imaginavam realizar o assalto de surpresa, ilusão desfeita quando uma flecha certeira atravessou o peito do guerreiro aliado mais afoito, fazendo-o recuar alguns passos antes de cair lavado em sangue. Em seguida, outras flechas cortaram a madrugada, zumbindo no ar e caindo impiedosas sobre os bravos do grupo da frente, fazendo-os recuarem em busca de abrigo nas árvores. Logo os de trás receberam a ordem de deter o avanço, dada por Uataçara, comandante da linha de frente dos guerreiros caboquenas.
Taobara seguia logo atrás, comandando os guerreiros guanavenas. Ele mandou seus bravos se espalharem na mata, procurando fazer o cerco à aldeia dos muras. O cacique chamou Waripa e o ordenou ir ao encontro de Jauaraçu comunicar que o ataque havia sido descoberto. Assim, o maioral bararuru deveria contornar o mais que pudesse a área de conflito para atacar os inimigos pela retaguarda, se aproximando da aldeia pelo outro lado. Waripa encontrou Jauaraçu ainda na praia onde haviam desembarcado e transmitiu o recado. O cacique bararuru chamou seus guerreiros e os mandou se embrenharem na mata para dar início ao combate.
Na linha de frente, guanavenas e caboquenas avançavam com cuidado, rastejando para evitar as flechas dos muras, mas como estavam em maior número puderam seguir adiante, forçando os defensores a recuar. No entanto, os inimigos tinham outra técnica de luta e formavam colunas de flecheiros que se sucediam na frente enquanto a primeira recuava depois de despejar os dardos contra os invasores. Isto dificultava o avanço, mas não impedia os aliados de conquistar terreno e se aproximar cada vez mais da aldeia sitiada.
Quando o dia clareou, os muras perderam a única vantagem para conter a invasão dos aliados: a escuridão. Por isso tiveram de colocar todo o contigente de guerreiros numa única frente, deixando a retaguarda sem a proteção devida. Por ela avançaram os bararurus e surpreenderam os muras que até o momento evitavam o combate corpo a corpo, como gostavam de lutar os invasores. Ao se sentirem cercados, os guerreiros do grande rio Amarelo se puseram em fuga, correndo em busca de proteção no interior de sua aldeia, mas incorreram no erro de buscar refúgio em campo aberto, aonde o maior número da tropa atacante iria se impor com facilidade.
Os muras travaram uma batalha árdua para defender os arredores da aldeia e permitir às mulheres e às crianças abandonarem o local antes da queda. Enquanto os guerreiros despejavam flechas em direção aos oponentes, uma multidão embarcava em canoas e seguia para o meio do rio, onde estaria protegida do ataque de flechas quando os aliados chegassem nas margens. Os muras foram cedendo espaço cada vez mais rápido, até não poderam mais conter o assalto final e então iniciaram a retirada, se debandando, correndo com todas as forças para chegar nas canoas e escapar à captura de morte. Alguns conseguiram pular nas embarcações, outros as alcançaram a nado, mas alguns não tiveram tempo de empreender a fuga e só restou a luta desesperada contra a horda invasora, partindo para o tudo ou nada, com a borduna na mão, mas sem nenhuma esperança de vitória. Os aliados não deixaram ninguém em pé e ainda foram até a margem e atiraram suas flechas em direção das canoas em fuga, mas não mais as podiam alcançar suas armas, apenas as palavras de insulto, proferidas de ambos os lados.
Foi uma vitória fácil e surpreendente, com poucas baixas ou feridos, pois não aconteceu o conflito corpo a corpo e os muras evitaram ao máximo a guerra aberta, mantendo o inimigo à distância imposta por suas flechas. Mas os caciques aliados, de posse da aldeia mura, sabiam que a retaliação não tardaria a acontecer, pois os muras eram uma grande nação e tinham outras aldeias espalhadas pela margem do grande rio Amarelo, da qual eram os senhores incontestáveis. De imediato, os maiorais se reuniram na taba principal e decidiram ampliar a paliçada, para terem mais proteção não só na frente como em todos os flancos da aldeia. Rapidamente os guerreiros descansaram suas armas e foram buscar lenha para realizar a tarefa. Era preciso urgência na construção da cerca. Nenhum deles ali tinha esperança de que o próximo combate, muito mais acirrado, não iria acontecer em questão de dias.
Enquanto durou a paz na aldeia conquistada, os aliados estocaram o máximo de alimento, por isso eram incessantes a pescarias nas margens e as caçadas aos animais das proximidades. Os caciques ordenaram às sentinelas para manterem-se alertas contra os muras a uma distância de até quatro gritos, enquanto outros afiavam pontas das lanças, com as quais esperavam conter o ataque em massa dos muras para reconquistar a aldeia perdida.
Os conquistadores não tiveram de esperar por muito tempo a aguardada retaliação. Antes mesmo da lua passar do crescente à cheia as canoas dos muras começaram a singrar insolentes o rio, navegando correnteza acima e depois voltando rio abaixo, apenas para mostrar aos aliados a disposição de tomar de volta sua aldeia. Quando surpreenderam um grupo aliado pescando mais ao largo, efetuaram um ataque feroz e mataram todos os ocupantes da canoa, depois retalharam seus corpos e fizeram a embarcação atracar em frente da aldeia, espalhando o terror entre as três tribos.
O ataque dos muras era eminente e ocorreu no dia em que centenas de canoas aportaram nas margens e delas desembarcou o exército dos guerreiros do rio Amarelo, ávido por vingar a invasão de suas terras. Eles cercaram a paliçada onde se protegiam os bravos aliados das terras do Canaçari, depois atearam fogo na cerca e quando só restavam brasas invadiram a aldeia com fúria imponente. Foram recebidos pelas pontas das lanças, enquanto flechas zuniam para todos os lados, até os adversários se encontrarem tão juntos que somente o porrete poderia ser usado na luta. Deixou de existir a estratégia e só a força prevaleceu no campo de batalha.
Os caciques aliados dispuseram seus guerreiros na formação de um grande círculo, em cujo interior outros guerreiros esperavam a vez para substituir aqueles tombados na briga. Esta estratégia permitiu minimizar o cerco dos inimigos, que avançaram de todas as direções, mas convergiam todos ao encontro dos aliados, concentrados no centro da aldeia. Assim, apenas poucos muras conseguiam entrar em contato com os oponentes, diminuindo a força de seu ataque. A primeira fileira resistia com bravura, repelindo os inimigos e obrigando-os a recuar, embora os muras da retaguarda forçassem os primeiros contra a massa compacta formada por guanavenas, caboquenas e bararurus.
A linha de frente dos aliados era formada por guerreiros fortes e experientes, ficando os mais jovens a espera do momento de entrar na luta em substituição aos feridos ou mortos. No início do combate o interior do círculo era reduzido, porque os guerreiros se agrupavam para impedir o inimigo de romper a frente aliada, mas no decorrer na luta, os muras diminuíram o ímpeto do ataque e o espaço foi se ampliando, levando os defensores, empolgados pelo fragor do combate, a avançar contra os atacantes, que recuavam, levando os aliados para o campo aberto, onde poderia prevalecer a superioridade numérica dos muras.
Vendo seus bravos avançar contra os adversários, Taobara gritava ordens para manterem a posição original e era seguido por Uataçara e Jauaraçu, já convencidos da autoridade do cacique guanavena sobre seus comandados. Os aliados recuavam, forçando os muras a iniciativa do ataque. No centro do campo de batalha, mas sem participar até o momento da luta, os guerreiros mais novos aguardavam impacientes um lugar na linha de frente. Entre eles estavam Aiauara, Pajuari e Pikiwaha.
A estratégia de Taobara fez a luta se prolongar por quase todo o dia, pois mesmo quando os guerreiros aliados tombavam pelas armas dos muras, outros prontamente ocupavam seus lugares, não deixando ao inimigo a oportunidade de furar a linha defensiva. Quando por fim o sol iniciou seu caminho em direção ao poente, os adversários renderam-se à extenuante realidade da luta e foram abrandando os golpes e a fúria, fazendo uma guerra mais com palavras e ameaças do que com armas. Os muras já não tinham forças para desfechar o ataque final e tampouco os aliados pretendiam prolongar o combate, partindo para a luta franca contra os oponentes, assim deixaram os atacantes recuarem sem perseguição.
A luta terminou sem vencedores, embora aos aliados restou a certeza de ter repelido um ataque dos guerreiros mais temidos da região do grande rio Amarelo, cujo território se estendia, em alguns pontos do vale pelas duas margens. O cacique Taobara trazia no corpo ferimentos profundos, mas ainda com força suficiente para manter a liderança sobre os bravos. Uataçara foi encontrado morto, o peito atravessado por uma lança, o crânio partido e sem maxilar, arrancado pela força da borduna inimiga, e Jauaraçu também estava ferido, mas com esperança, embora o olho direito estivesse totalmente fechado.
Os muras se foram navegando e deixaram aos aliados tempo de empreender a retirada da aldeia, com Taobara mandando recolher mortos e feridos e preparar o retorno à região do Canaçari. Embora tivessem repelido o primeiro ataque dos inimigos, um segundo cerco era eminente. Os aliados sabiam que os muras não atacaram com toda a força, mas da próxima vez, encontrariam resistência menos brava, depois de os aliados perderem o melhor de suas forças resistindo ao assalto desse dia.
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