quarta-feira, 1 de junho de 2011

Capítulo 6 - Tocaia dos Mortos

     Três guerreiros caboquena foram obrigados a procurar refúgio na ilha Saracá depois de serem surpreendidos por um temporal que se aproximou pelas bandas de onde o sol nasce, nos tempos das grandes chuvas. Os irmãos Yepá e Monawa e o primo dos dois, Benry, saíram da aldeia caboquena ainda nas primeiras luzes da manhã e foram descendo o rio Orowo, parando algumas vezes nos melhores pontos de pescaria ou nas praias onde costumavam fazer boa caça. Monawa e Benry remavam manso, com o remo quase acariciando a água, enquanto em pé, bem na ponta da proa, Yepá apontava seu arco na espreita de algum peixe aparecer no fundo. Se avistasse algum reflexo na água, então disparava a flecha, que quase nunca voltava sem a presa. Embora a época fosse de muito peixe, os animais de caça estavam escondidos, porque as chuvas tornavam o amanhecer bastante úmido.
         Quando o sol já tinha iniciado seu caminho para o poente, os três caboquenas alcançaram a foz do Orowo, no encontro com o lago Saracá. Eles avistaram a ilha onde viviam os guanavenas. Como Monawa não havia pensado em outra coisa a não ser em Tawacã, desde quando iniciara a viagem, a visão da aldeia onde vivia a jovem com quem sonhava foi um sentimento de angústia. O jovem guerreiro era o que tinha menor idade entre os companheiros, mas mesmo assim tentou convencê-los a parar na ilha para um descanso, conversar com os amigos e, só então, seguir viagem até a Ponta Grossa, uma travessia difícil em qualquer momento.
         - É muito arriscado atravessar o lago Saracá, saindo pela ilha, porque o encontro com as águas do Canaçari provoca muito banzeiro, comentou Benry, que conhecia os segredos dessas correntes. Junto com Yepá, já haviam ido muitas vezes ao Purema, mas agora se acompanhavam de Monawa, ainda inexperiente em guerras, caçadas e pescarias.
          Os três passaram pelo Estreito e seguiram na margem esquerda do Sanabani, navegando próximo da beira, sem correr risco de cruzar o lago para em seguida atravessá-lo de novo. Mas quando já contornavam a orla do lago, espremidos entre o barranco da Demanda e as águas do Saracá, avistaram a imensa tempestade surgindo no horizonte e, em pouco tempo, empurrada por ventos violentos, saiu dos confins do Canaçari e rapidamente encobriu todo o céu. Nuvens escuras voavam com rapidez e foi possível ver os banzeiros provocados pelos primeiros ventos já batendo forte contra a costa da Demanda. O temporal era um obstáculo intransponível entre os guerreiros e a Ponta Grossa, porque os vagalhões de águas jamais deixariam os caboquenas cruzarem o lago naquele momento. Os experientes guerreiros foram obrigados a aceitar o palpite de Monawa, optando por seguir em direção à ilha.
         De qualquer forma era uma travessia arriscada. Mesmo protegidos dos ventos vindos do Canaçari pelos barrancos da ilha, tiveram de dar muito impulso ao remo para vencer as correntes revoltas. Os caboquenas eram bons navegadores e tinham braços fortes, mas somente com muito esforço chegaram na praia da ilha, debaixo de chuva grossa, assustados com a ferocidade dos raios e o estrondo pavoroso dos trovões. Desembarcaram em terra e empurraram a canoa para o alto da praia, protegendo-a contra o açoite dos banzeiros.  Saíram correndo em direção à taba dos guanavenas, que não os aguardavam, mas mesmo assim os receberam sem surpresa.
         - Entrem rápido, bravos amigos! disse Nahpy, quando reconheceu os recém-chegados como membros da valorosa nação caboquena, seus aliados. O pajé ofereceu a hospitalidade habitual de sua gente, dando aos visitantes um lugar próximo à fogueira, ardendo no centro da oca, para eles se aquecerem, pois estavam encharcados da chuva torrencial. Os caboquenas agradeciam as gentilezas prometendo deixar alguns peixes ou caças quando retornassem, mas Monawa só se preocupava em encontrar os olhos de Tawacã, que deveria estar por ali, em qualquer lugar, deitada em alguma rede.
         A tempestade entrou pela noite e Nahpy convidou os caboquenas para dormir na oca dos visitantes. Eles aceitaram, como também receberam com gratidão a comida servida pelos anfitriões e ouviram com sincera atenção as histórias contadas pelo pajé dos guanavenas. Como sempre acontecia nestas ocasiões, reforçaram a fogueira com nova lenha, tomando o cuidado para as brasas substituírem as chamas, e Nahpy relatou com todo o espetacular efeito cênico as glórias dos seus ancestrais. Contou como as formigas ergueram a ilha Saracá e depois a entregaram aos primeiros guanavenas, que depois foram buscar seus parentes, trazendo as margens dos lagos, onde foram morar caboquenas e bararurus.
         Monawa não conseguia divisar Tawacã entre o emaranhado de redes armadas na oca, nas quais deitavam as mulheres, junto com as crianças, mas à jovem guanavena não passou despercebida à visita inesperada de três jovens guerreiros aliados, que pediram abrigo na aldeia para se proteger das chuvas enormes. Desde quando se iniciou o temporal, Nahpy recolhera a família para o lado onde dormiam, perto de uma fogueira numa extremidade da oca, mas se dirigiu ao centro da construção quando ofereceu um lugar aos convidados. Nesta mesma distribuição jantaram e ouviram os relatos do pajé. Depois os caboquenas foram se abrigar na cabana oferecida a eles por Nahpy e dormiram sono leve, como é aconselhável mesmo para visitantes em lar aliado, ouvindo a música acalentadora da chuva, que tocou implacável durante toda a madrugada.
         Ao amanhecer, o temporal tinha passado e o lago era um espelho refletindo as luzes da aurora, sem uma brisa sequer para perturbar a calidez de suas águas. Era um ótimo tempo para navegar da ilha em direção à Ponta Grossa, porque não havia banzeiro nem ventos soprando de frente. Os caboquenas então despertaram e foram se despedir dos anfitriões, encontrando Nahpy no pátio da aldeia, já dando as primeiras instruções às mulheres para assarem peixes e bolachas de mandioca e servirem alimentação farta aos visitantes.
         Tawacã e Aiauara estavam ao lado do pajé. O garoto agora era um guerreiro impaciente pela falta de guerras, mas a menina se mostrava em uma beleza a ponto de explodir. Monawa a olhou com o mesmo desejo com o qual sempre a viu. Enquanto para Yepá e Benry, mais velhos que o guerreiro apaixonado, a jovem guanavena não passava de uma criança, que precisaria ainda crescer muito para poder desposar. No entanto, para Tawacã, a figura de Yepá desenhou em seu espírito uma sensação estranha, que ela não soube compreender, mas adivinhou tratar-se de atração. Quando foi servida a comida, ela se encarregou de levar aos guerreiros as porções de frutas, uma hospitalidade guanavena, mas seu corpo sentiu pela primeira vez o raio louco do desejo quando seus olhos encontraram, de tão perto, os olhos de caçador de Yepá. Ambos se fitaram como se estivessem mirando uma fera a ser abatida.
         Depois de comerem, os caboquenas agradeceram a hospitalidade dos aliados, prometeram deixar na volta parte do que conseguissem pescar e caçar e foram em direção à praia, para colocar a canoa de volta na água. Eles arrumaram a carga a bordo e empurraram a embarcação para o leito do lago, que se encontrava estático pela falta de ventos. Foram caminhando até a canoa se desprender totalmente do fundo e poder navegar sem risco de encalhe, mas foi neste momento que Monawa sentiu a ferroada atroz rasgar seu calcanhar quando pisou no dorso lodoso de uma arraia, escondida no fundo do lago. Ele soltou o grito após sentir a picada, pois imediatamente seu rosto se contorceu em dores e não pode mais nem chorar. Estava entorpecido pela ação do veneno, causando uma dor tão intensa que poucos guerreiros conseguiam manter as tripas sob controle depois de sentir o ferrão da arraia penetrando na carne.
         Tiveram de socorrer Monawa e a viagem foi atrasada mais um tempo, porque os primos colocaram o ferido no colo e o levaram até a taba, onde se encontrava Nahpy.
         - Ajude meu irmão, grande pajé! suplicou Yepá, que conhecia de outra época o poder de cura do xamã dos guanavenas.
         Nahpy ordenou que pusessem o caboquena deitado na rede, dentro da taba onde realizava o ritual de cura. Monawa já começava a delirar com as primeiras febres e a dor lhe era tão intensa que seus olhos contemplavam o céu para não saltarem da cara, enquanto sua boca era um esgar de louco. Ele não tinha forças para gemer, apenas conseguia tremer a perna ferroada, babando saliva grossa e contorcendo o corpo em espasmos cada vez mais brutos. De imediato, Nahpy solicitou ajuda para dispor de uma mecha de pêlos pubianos, a qual o pajé enrolou em chumaço e pôs fogo. Depois o xamã recolheu a cinza gretada e passou na ferida de Monawa e este se aliviou das dores e o corpo desfaleceu reconfortado pela terapia certeira de Nahpy.
          - Agora ele vai ficar bom, disse o pajé aos primos, que olhavam incrédulos Nahpy manusear com tanta eficácia sua ciência.
          Os caboquenas nunca antes tinham visto a manifestação tão rápida de uma terapia, como a ministrada por Nahpy ao parente. Depois o ganavena limpou a ferida, aplicou emplastros com essências da selva, untou com óleos e seiva, acendeu seu cachimbo e baforou rolos de fumo sobre o doente, realizando as últimas preces aos espíritos curandeiros e despachou Yepá e Benry para a caça.
         - Não podem fazer mais nada por seu parente, disse-lhes Nahpy. Agora peguem sua canoa e vão pescar e caçar, que quando voltarem o guerreiro já estará restabelecido, ordenou o pajé dos guanavenas.
         Os primos foram confiantes e tranqüilos, deixando Monawa sob os cuidados do pajé, mas quando já estavam singrando com segurança as margens opostas do Saracá, Yepá não pode deixar de comentar com seu primo.
          - Nunca imaginei que pentelho fosse remédio, falou com sarcasmo.
          - Nem eu, confirmou Benry. E Ambos explodiram em risadas.
         Dias depois Monawa estava curado, mas a ferida ainda merecia cuidados que Tawacã ajudava o pai a dispensar, aplicando ervas e óleos. Para o caboquena não podia ser melhor o tratamento, porque deixara de sentir as dores terríveis e ainda tinha sempre por perto a jovem por quem estava cada vez mais decidido a desposar. Outros dias se passarem e a preocupação se transferiu para os dois primos que não retornaram de suas caçadas, obrigando Taobara mandar um dos seus bravos até a aldeia caboquena para buscar notícias dos dois, mas quando estes voltaram as notícias não foram de ânimo, porque o cacique Uataçara, também preocupado com a demora de seus guerreiros, já preparava uma expedição de busca para encontrar os caçadores perdidos.
         Foram dias de buscas infrutíferas nas matas, lagos e rios, e nenhum sinal dos primos. As três tribos aliadas se uniram na procura dos índios e só encontraram algumas pegadas numa praia formada nas margens oposta do paraná de Itapiranga, mas mesmo assim já estavam meio borradas pelas chuvas constantes daqueles dias. Umas foram feitas por pés pequenos, que desenhavam na areia marcas suaves, outras eram pisadas fortes, como se quisessem fugir, de desespero, afundando no chão sob o peso do medo.
         No fim de uma tarde de buscas encontraram a canoa abandonada e semi alagada numa enseada e, então, não restavam dúvidas de que Yepá e Benry foram seqüestrados por guerreiros inimigos.
          - Foram os muras, gritou convicto Taobara.
         O maioral guanavena encontrara o motivo que buscava para declarar guerra aos seus inimigos, principalmente quando o correto seria a participação de Uataçara, cujos comandados encontraram o fim nas mãos desses índios. Também era justo esperar o engajamento de Jauaraçu e dos guerreiros bararurus, porque os acordos firmados entre as três tribos determinavam a defesa de todos, quando qualquer um fosse atacado.
         - Se não reagirmos, em breve não poderemos mais pescar nem caçar nestes lagos e matas, afirmou Taobara.
         Os outros caciques concordaram e exortaram seus bravos para seguir as lideranças nas lutas que seriam travadas contra o inimigo mura. Era preciso preparar o ataque, para não deixar sem respostas esta agressão contra a terra sagrada dos aliados.
         - As margens direitas do grande rio foram dadas aos nossos ancestrais pelo grande Paharamim, por isso é nossa obrigação defendê-las com o nosso sangue, falou Uataçara, arrancando gritos de bravura de todos os guerreiros.
         Os bravos aliados seguiram em direção a ilha Saracá, morada dos guanavenas, para traçarem os planos de ataque. Foram remando as canoas que participaram das buscas, e a reboque, a embarcação dos guerreiros desaparecidos, como prova incontestável de seus destinos cruéis. Remaram no rumo da praia, em frente à grande taba, já com os gritos de desespero das mulheres, que adivinharam na canoa vazia o sinal de maus presságios. Na chegada, a confirmação só fez explodir os lamentos: não havia dúvidas, os jovens caboquenas, que passaram uma noite inteira gozando da hospitalidade dos guanavenas, estavam mortos.
         Monawa ainda se convalescia sob o cuidado de Nahpy e recebeu a notícia com dores mais lancinantes do que lhe provocara a ferroada da arraia. De pronto se colocou ao lado de seu maioral, Uataçara, disposto a vingar as mortes do irmão e do primo. Neste momento, o jovem caboquena esqueceu seus amores por Tawacã e só pensava que também poderia ter encontrado o mesmo fim, caso a fatalidade não o surpreendesse antes e o tivesse obrigado a se separar dos parentes e ficar na ilha para recuperar a saúde.
         Taobara e os outros maiorais aliados, juntamente com o conselho dos anciãos e Nahpy, se reuniram na oca das reuniões para decidir como seria feita a guerra contra os inimigos muras. Era preciso preparar as estratégias e a primeira seria colocar batedores para vigiar os passos dos adversários, conhecendo a localização de suas aldeias e seus costumes, visando um ataque fulminante, que não deixasse meios de defesa nem de resposta por parte dos muras.
         - Indico de minha parte o meu batedor mais experiente, Waripa, que vai encontrar as aldeias dos muras e nos passar as informações precisas, disse Taobara, apontando para seu aliado mais dedicado.
         Waripa era seu homem de confiança, capaz de realizar qualquer tarefa, desde que fosse ordenado pelo cacique, por isso se pôs de pé, esperando as determinações. Para ele não havia missão perigosa nem desonrada. Se fosse preciso dar sua vida para a glória de seu povo, estava pronto para o sacrifício. Taobara mandou ele sentar novamente, porque teria de ser ajudado por outros rastreadores a serem indicados pelos maiorais aliados. Uataçara recomendou o seu, um índio já de boa idade, mas respeitado na aldeia dos caboquenas, Pariti, e Jauaraçu mandou que se levantasse o guerreiro Utami, que faria parte do grupo de batedores. “Este bravo é capaz de seguir até as aves no céu”, enalteceu o cacique dos bararurus.
         - Isto é precipitação, bradou Itaúna, que se opunha a todas as guerras. Não temos certeza sequer de que os valorosos guerreiros caboquenas estão realmente mortos, e mais ainda se foram capturados pelos muras, que há bastante tempo não cruzam o grande rio Amarelo para caçar nas terras do Purema, concluiu o velho conselheiro.
         - Até quando vamos ter de esperar para termos certeza de que os muras estão entrando em nossos territórios? questionou Taobara, se dirigindo aos outros maiorais. Depois apontou seus olhos em direção ao velho Itaúna e o encarou com fúria. Será que vamos esperar os muras entrarem em nossa ilha, raptar as mulheres guanavenas para, aí sim, tomarmos uma atitude de homens?
         Itaúna conhecia o ímpeto dos jovens para as guerras, por isso não divergiu mais contra os argumentos de Taobara, mas pediu para dar um conselho aos presentes.
         - Se querem a guerra que a façam, mas serei sempre contrário a elas, sejam por motivos de vingança ou por vaidade pessoal, declarou o velho conselheiro. Portanto, peço permissão para me retirar do conselho, porque minha voz não agrada aos presentes aqui e meu coração sentirá as dores antecipadas pelas quais muitos jovens ainda irão passar.
         O ancião se levantou e saiu da cabana, deixando em Taobara um ar triunfante, que não era compartilhado com os demais caciques, pois as palavras de Itaúna acertaram os corações dos outros maiorais, plantando dúvidas sobre a justeza da guerra. O cacique guanavena compreendeu ser melhor encerrar a reunião, recomendando a todos voltarem às suas aldeias, para refletir melhor sobre os motivos da guerra. Deviam preparar suas gentes para os dias difíceis que se seguiriam, mas afirmando ser o sacrifício imprescindível. Vencer os muras era abrir às tribos aliadas novos e imensos territórios, uma licença para explorar as margens do grande rio Amarelo, conhecidas por sua abundância de caça e de recursos vegetais.
         No entanto, o grupo de batedores estava formado e Taobara convenceu aos outros caciques de que Pariti e Utami deveriam ficar na ilha e iniciar incursões nas terras dos muras. Mesmo que a guerra não fosse levada adiante, mesmo assim eles poderiam colher informações preciosas sobre o poder e a força dos inimigos, conhecer seus modos de vida, suas regiões de caça e os lugares mais apropriados para a pesca. Era precioso para os planos de Taobara, identificar a localização das aldeias e, o mais importante, saber suas fraquezas. Os caciques concordaram e deixaram seus batedores sob as ordens diretas de Taobara, desejando ao maioral guanavena sabedoria para dirigir os guerreiros no melhor proveito das tribos aliadas.
         Alguns dias se passaram desde quando Taobara incitara os caciques aliados à guerra. Durante este tempo não houve maiores tensões na aldeia guanavena, mas era consenso geral de que o conflito seria realizado a qualquer momento. Este sentimento era agravado ainda por serem bem recentes as lembranças dos jovens guerreiros caboquenas, que passaram sua última noite de tranqüilidade na paz da aldeia, comendo com sua gente, dividindo o calor da fogueira e ouvindo com atenção as histórias dos ancestrais contadas por Nahpy.
         Desgostoso com a decisão do cacique, Itaúna saiu para pescar, pois sua maneira de encontrar os melhores argumentos e os sábios conselhos para sua tribo era na solidão dos lagos, quando podia refletir sobre as coisas. O ancião juntou seu puçá, sua rede de enviras, alguns anzóis, o arco e as flechas e o arpão certeiro, colocou tudo em sua canoa e seguiu o rumo do Purema, onde a pescaria era farta, principalmente se realizadas pelas mãos experientes de Itaúna, conhecedor de todos os segredos e sobrevivente de muitos perigos. Remava sozinho, mas com determinação para alcançar rápido a Ponta Grossa, antes do vento da manhã tornar os banzeiros tão ferozes que navegar ao contrário deles era impossível.
         Taobara não deixou de observar o velho se afastar da aldeia e calculou seu rumo através das marcas deixadas na superfície do lago pelo cortar certeiro de sua canoa. Um momento depois Waripa estava na cabana do cacique esperando as ordens com a determinação de quem as cumpriria sem vacilar. Taobara se acercou do ouvido de seu homem de confiança e soprou as palavras dramáticas, e o batedor ouviu a determinação que jamais supunha ser possível de ser proferida. Ele entendeu cada palavra e em todas colocou sua lealdade como fiança de que o resultado seria o esperado. Então aguardou as sombras da noite camuflarem seus passos e embarcou em sua canoa, saindo da ilha sem nenhum olho o ver, rumando em busca dos rastros de Itaúna.
         O batedor remou toda a noite guiado por seu apurado sentido de localização até dobrar a Ponta Grossa, depois continuou navegando até cruzar o paraná de Itapiranga e chegar na entrada do Purena. Dentro do lago, Waripa se embrenhou pelo igapó, farejando os movimentos do ancião e atento a qualquer som que fosse estranho ao cantar dos pássaros noturnos ou ao zunir dos insetos. O remo de sua canoa apenas tocava nas águas, mas seu impulso era forte, arremessando a embarcação para frente, que se desviava com destreza das árvores submersas, sem um ruído denunciador da presença do batedor de Taobara.
         Logo depois Waripa concentrou sua atenção no cheiro forte de tabaco que a brisa de vez em quando anunciava no ar. Ele seguiu o rastro de fumo, a cada momento se tornando mais presente, até a claridade de uma baforada denunciar com precisão o local exato onde se encontrava Itaúna. O chefe do conselho dos anciãos estava sentado na proa de sua canoa, aguardando algum peixe fisgar a isca posta em lugar estratégico, sem perceber a outra canoa se aproximar sorrateira, escondida pelas trevas da noite sem lua e sem outro ruído que superasse a algazarra dos bichos da floresta.
         O velho não se deu conta do perigo. Tudo aconteceu com uma rapidez de raio quando Waripa pulou da canoa onde estava e embarcou na de Itaúna, pela popa, e com apenas dois passos precisos já estava com os braços enroscados no pescoço de sua vítima, com a faca em posição de degola, tentando imobilizar o corpo do ancião para este não reagir ao enforcamento inicial e tornar mais fácil o golpe mortal. Tentando se desvencilhar do ataque traiçoeiro, Itaúna retirou o caniço da água e tentou acertar na cabeça do agressor, mas as forças foram se esvaindo ante o poderoso abraço de sucuri de Waripa, até se render totalmente e oferecer o corpo ao sacrifício.
         Quando Itaúna não demonstrava mais nenhuma resistência, o guerreiro afrouxou o abraço, segurou os cabelos do velho, puxando a cabeça para trás e, então, encostou a lâmina na veia da garganta. Neste momento, o ancião recobrou os sentidos, mas só lhe restou tempo de proferir metade de sua frase.
         - Maldito és tu, assass...
         Um jorro de sangue interrompeu a frase de Itaúna, enquanto Waripa terminava seu serviço cortando por inteiro o pescoço da vítima. Em seguida jogou o corpo do velho nas águas do lago Purema, enquanto a cabeça ficou pendurada no galho de uma árvore, para testemunhar sobre o crime.
         Quando os guanavenas deram pela falta do sábio conselheiro, foram em expedição até o Purema procurar qual destino tivera Itaúna, que saíra para pescar e há dias não retornara à aldeia. Vários grupos se formaram e passaram a vasculhar os igapós do lago, mas logo identificaram a canoa do ancião encostada embaixo das árvores e, para desespero de todos, sua cabeça repousava pendurada nos galhos, sendo devorada lentamente por formigas carnívoras.
         Os guanavenas mergulharam nas águas do lago e resgataram o resto do corpo de Itaúna, levando-o para a aldeia, onde seria sepultado com todas as honras merecidas ao chefe do conselho dos anciãos. Foi uma comoção geral na tribo. Itaúna era muito respeitado, tanto por sua sabedoria quanto pela coragem sem limites que tivera quando cacique dos guanavenas, por isso o prantearam por dias e seus parentes prometeram vingança, embora o próprio Itaúna fosse contra atos intempestivos.
         Mais uma vez Taobara convocou seus bravos para proclamar guerra contra os muras e desta vez nenhuma voz ousou contestar-lhe as razões. O cacique prometia uma ação severa contra os inimigos, que deveriam pagar pelas injúrias cometidas contra as gentes das tribos aliadas e, mais ainda, pela crueldade como tiraram a vida de Itaúna, o mais sábio dos anciãos. Os guerreiros guanavenas se armaram e se colocaram diante de seu chefe, prontos para as ordens, mas Taobara mandou a notícia ser levada ao conhecimento dos outros caciques primeiro, para só então determinar o avanço contra os inimigos que estavam violando as sagradas terras do Canaçari.
         Nahpy depois pediu para ter uma conversa a sós com Taobara. Os irmãos, um chefe guerreiro e o outro detentor do conhecimento dos ancestrais, se reuniram na cabana do cacique e discutiram sobre as verdadeiras razões da guerra, e outra vez Taobara tentou convencer o pajé de ser isto assunto terminado, mas Nahpy não se deixou impressionar pelas forças das palavras do cacique, pedindo vingança como se realmente estivesse disposto a lutar devido a morte de Itaúna.
         - Vejo com tristeza meu irmão não querer que vingamos a morte do ancião mais respeitado de nossa aldeia, disse Taobara, olhando para Nahpy como se não acreditasse que a reação do pajé pudesse ser outra.
      - Itaúna era contra a guerra, comentou o pajé, segurando o cacique pelo braço para obrigá-lo a permanecer na cabana, de onde Taobara pretendia sair para encerrar a discussão.
          - Mas foram os muras que o mataram.
         - Não me julgues um tolo, irmão Taobara, porque a faca que cortou o pescoço do velho Itaúna não era mura, mas guanavena! sentenciou Nahpy, encarando com desprezo o cacique.

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