segunda-feira, 18 de julho de 2011

Capítulo 9 - Tocaia dos Mortos

OS LONGOS CABELOS DE TAWACÃ FORAM CORTADOS ATÉ RESTAR UMA CARECA LISA, raspada com o fio amolado do cipó titica. Xirminja recolheu depois as madeixas e as guardou em um cesto de fibra de arumã para serem usadas na cerimônia de despedida da filha, quando ela saísse da casa das mulheres. Depois teceu a guirlanda com as flores recolhidas por Aiauara e enfeitou a filha, fazendo ressaltar a beleza de mulher que em breve estaria aflorando. Tawacã iria permanecer um ciclo de água reclusa na cabana com as meninas que aguardavam a menarca. Todas ficariam protegidas dos olhos dos homens enquanto seus corpos se transformavam de frágeis meninas em mulheres adultas, aptas a casar e ter filhos. Neste período, as jovens seriam alimentadas por suas mães, elos de ligação delas com o mundo, durante o tempo que ficassem recolhidas na redoma de palha intrincadamente trançadas para não permitir a espiadela dos afoitos, mas também sem frestas por onde pudesse renovar o ar ou entrar os raios de sol.
         Quando a cabeça de Tawacã ficou totalmente encoberta pela rama de flores foi então levada ao centro da taba dos guanavenas. Ela viu as meninas com quem teria de conviver durante um período de sua vida. Algumas já conhecidas da mesma aldeia, mas outras vieram de comunidades guanavenas afastadas. Viu sua prima Cayabi, moradora da aldeia próxima ao Estreito, na parte da ilha onde o sol se punha. Reconheceu a prima embora a tiara de flores encobrisse toda a cabeça dela, com pétalas sobre o rosto, escondendo a forma dos olhos, o flanco desprotegido por onde escapa os desejos femininos e assalta a vontade dos homens. A jovem índia do Estreito se vestia com uma coroa de muitas flores, recobertas de sementes e penduricalhos cujo efeito encobria toda sua face, mais do que nas outras meninas, as quais as guirlandas apenas protegiam a cabeça calva dos olhos vorazes dos guerreiros.
         Tawacã ficou espantada com a vestimenta da prima, pois a conhecia de muito tempo e não compreendia tanto pudor por parte da família dela em proteger seu rosto dos olhos estranhos.
         Não pode ter ficado assim tão feia! Pensou Tawacã consigo mesma, mas logo sua atenção foi desviada até a voz grave de seu pai, posicionado no centro do círculo formado pelas jovens guanavenas. Elas escutaram as palavras que o pajé maior da tribo dirigiria a elas. Nahpy explicou o porquê das jovens estarem sendo recolhidas na cabana, onde se tornariam mulheres na plenitude da forma, esposas prendadas nas artes da casa e mães venturosas na criação dos filhos.
         - Assim tem sido o destino das mulheres, afirmou Nahpy, desde quando o tempo é tempo e ocorreu a separação do corpo feminino das entranhas de um poderoso deus guerreiro, que em seguida concedeu às elas a honra do parto.
         O pajé depois ungiu o corpo de cada jovem com as águas perfumadas de uma cabaça, cuja essência era uma mistura de flores silvestres com o âmbar de pau-rosa e resinas de andiroba. Tawacã por algum motivo sentiu um ardor quando as gotas do líquido atingiram seu corpo, numa sensação que ela sentiu como se um rio de fogo corresse em sua pele, no mesmo caminho por onde passaram as águas que escorriam no corpo.
         As jovens depois tiveram de dançar em busca do transe, com os tambores cada vez entoando notas mais rápidas. Primeiro Tawacã viu o céu girar em redemoinho de nuvens até ficar escuro, mesmo com o sol brilhando em todo o esplendor. Seus olhos foram perdendo o foco e passou a mirar todas as coisas sem precisão, com tudo ficando disforme e translúcido. O som dos tambores entrava em sua cabeça e ocupava seu pensamento, então sua razão apagou e o ritmo da dança comandou seu corpo até a última batida dos instrumentos, que pararam de chofre, ao mesmo tempo, deixando apenas a reverberação do ruído entoar em todo o ar, até ao infinito, onde acompanhou os pensamentos de Tawacã.
         Foram momentos de torpor, nos quais a jovem índia girava o corpo num gozo cujo segredo desconhecia, mas sustentado no silêncio dos tambores e no murmúrio dos pés das jovens dançando no centro da taba. Depois de um tempo, as garotas voltaram ao mundo, deixando para trás a satisfação conhecida naquele momento, mas que faria parte de suas vidas, agora e quando deixassem a casa das mulheres e conhecessem seus maridos.
         Após a cerimônia, Tawacã e as outras índias foram levadas à casa das mulheres. Era uma cabana feita de madeiras vigorosas, toda coberta de palha até o chão e com apenas uma pequena abertura por onde se esgueiraram as jovens, seguidas por suas mães. Em seu interior havia espaço para muitas redes e Tawacã armou a sua ao lado da de sua prima Cayabi. Então elas começaram a retirar o adorno de suas cabeças, cuidando de preservar o enfeite, e foram arrumando as flores no piso de madeira da casa. Quando Cayabi retirou sua coroa e deixou o rosto à mostra todas as outras se surpreenderam com a beleza incomum da jovem do Estreito.
         Tanta beleza assim só poderia garantir um grande marido, pensou Tawacã, vendo a prima prestes a se transformar em mulher formosa. Haviam escapado ao dote dos muras, assim como todas ali dentro porque não tinham atingido a puberdade naquela época, mas agora estavam destinadas a dar aos guerreiros guanavenas uma geração de homens e mulheres, todos saudáveis e honrados, permitindo assim que a cultura e a tradição de seu povo sobrevivessem perante toda a eternidade.
         As mulheres experientes contaram às jovens como estas deveriam passar o tempo de reclusão na cabana, aprendendo a fiar as palhas com tranças elaboradas, traçando bordados e desenhos que faziam das cestarias dos guanavenas peça cobiçada nas trocas com outras tribos. Cada peça de fibra teria de resistir ao mais duro trabalho, carregando ouriços sem deformar ou romper. As cestas também conservavam uma beleza plástica típica da cultura da aldeia, com muitos desenhos representando a elaboração de Paharamim na construção do mundo, por isso as linhas eram harmoniosas, como por si só pode ser a criação.
         Quando estava anoitecendo, as mães levaram frutas para as meninas e estas comeram a farta. Nelas, as danças da revelação havia despertado não apenas o apetite por algo desconhecido, mas uma fome animal de quem desgasta o corpo em busca de respostas que apenas o tempo poderia dar.
         - Mãe, por que a dança da revelação nos abre um apetite grande, mas que em nada lembra a fome? A pergunta de Tawacã para Xirminja serviu para todas as meninas e elas ficaram esperando uma resposta, que as mães tiveram dificuldade de explicar, por envolver o relacionamento entre o homem e a mulher.
         - Quando vocês tiverem seus maridos vão descobrir o prazer de deitar com eles, sentirão o peso do corpo deles sobre os seus e saberão que o gozo deve ser compartilhado para os seus filhos serem saudáveis, explicou Xirminja, recebendo a confirmação das outras mulheres, embora, na realidade, cada uma delas tinha uma experiência diferente com relação ao ato sexual.
         As mães se foram, deixando as meninas trancadas na cabana inviolável. Fecharam a pequena abertura com pesadas tábuas para não serem removidas com facilidade, amarraram a porta contra mourões ainda mais fortes e se sentiram seguras de deixar suas filhas sob a proteção de apenas uma mulher, que armou sua rede na boca da entrada e se plantou como a sentinela daquela noite. De agora em diante sempre haveria uma vigia nas proximidades, tanto para evitar possíveis fugas das meninas, como arrefecer o desejo de jovens e impetuosos guerreiros de seqüestrá-las, como era comum entre homens da tribo.
         Esta primeira noite foi de relativa tranqüilidade, mas outras deixaram as meninas incomodadas, pela reclusão forçada e pela ausência de atividades prazerosas, como se banhar no lago ou fazer a coleta de frutas e raízes na floresta, quando a convivência com familiares e amigos tornava o dia-a-dia delas uma rotina agradável. Agora, isoladas do mundo por paredes pelas quais nem a própria a luz do sol penetrava, as meninas ficavam irritadas com facilidade e discutiam entre si com freqüência, forçando-as a formar grupos separados no espaço exíguo da cabana.
         Desde os primeiros dias, Tawacã procurou ampliar seu relacionamento com Cayabi, cuja beleza havia atraindo a antipatia das outras meninas, mas serviu como fator de atração e de proximidade entre as primas. A visita das mulheres era o momento de descontração, quando as meninas eram lavadas e arrumadas. As mães se preocupavam em manter a limpeza das jovens índias, com asseio diário, ainda mais que os primeiros dias de reclusão coincidiam justamente com a época dos grandes verões, nos quais as águas do lago recuavam e deixavam a mostra maravilhosas praias. Esta era a época de maior fartura nas aldeias, propícias às festas noturnas quando toda a tribo se reunia em volta da fogueira para escutar do pajé as histórias e lendas dos ancestrais.
         Também era preciso redobrar a guarda sobre a cabana das meninas. O efeito encorajador do caxiri que os jovens bebiam durante essas comemorações fazia-os se aventurar nas proximidades da casa, rondando como predadores as manadas de caças. Por isso, era comum que, enquanto Nahpy fazia pregação à tribo, Xirminja se punha de guarda na entrada da cabana, enxotando guerreiros de primeira luta das presas fáceis que se ocultavam por detrás de paredes de palha trançada. A cidadela era incapaz de resistir à investida de um grupo de guerreiros decididos, ainda mais sob o efeito embriagador da bebida fermentada, a raptar as meninas e forçá-las a desposar antes mesmo de passarem pelo ritual de reclusão.
         Com o passar dos dias chegou a estação das chuvas e o ânimo das meninas não suportou a umidade das paredes de palha e nem o frio de noites de temporais que assolavam impiedosos a já alquebrada vontade de resistirem impassíveis ao peso da tradição. Tawacã suportou estóica aos primeiros dias com a resolução de filha de pajé, pois sua fraqueza poderia respingar desconfiança sobre a conduta do pai, cuja autoridade de determinar obrigação a todos os membros da tribo deveria ser confirmada também em aplicá-la aos de seus parentes. Mas numa noite de chuva forte o suficiente para permitir confidências entre tantas garotas dormindo amontoadas, Tawacã disse a Cayabi o desejo de fugir da reclusão, por não suportar seu martírio.
         A prima se assustou com as palavras de Tawacã e procurou encorajá-la a resistir com bravura. Ali estava em jogo a força do sangue da família e implicava também no próprio valor de Cayabi, que poderia se ver diminuída caso uma parente tão próxima se mostrasse incapaz de resistir à reclusão das mulheres.
         - Tu estás louca! disse Cayabi irritada. Não vou passar tantos dias de sofrimento neste lugar para minha prima pôr tudo a perder.
         - Mas eu não agüento mais esta solidão da cabana, minha prima, confessou Tawacã com os olhos em lágrimas.
         - O que será de nossa família diante dessa vergonha. E de mim? Tawacã!
         - Eu já pensei nisso tudo, insistiu Tawacã, mas não tenho forças para suportar tanta privação. Eu preciso de liberdade.
         - Vá dormir, prima. Tu precisas de descanso, disse Cayabi, e em seguida passou as mãos em volta dos cabelos da jovem filha de Nahpy e ela, entre soluços, buscou o sono que lhe veio em breve.
         Cayabi ainda permaneceu mais algum tempo acordada, mirando os reflexos rápidos dos relâmpagos golpeando a cabana com força implacável. A jovem índia do Estreito escutava os trovões e sentia apenas o ecoar em seu peito, arfava a cada lufada de vento, tremia com as rajadas de chuva, suava com a sensação de sua casa, erguida no alto do morro do outro lado da ilha, aonde os ventos do Canaçari chegavam com mais impacto, estar sofrendo os mesmos tormentos de sua pequena prisão, dividida com tantas meninas da mesma idade e de um único objetivo: se mostrarem fortes e capazes de resistir às dores do parto e as obrigações maternas.
         Quando o sono encontrava-se perto de dominar o corpo de Cayabi, um ruído despertou seus sentidos e ela aguçou os ouvidos para destinguir entre trovoadas e relâmpagos, rajadas de chuvas e lufadas de ventos, um farfalhar que se encontrava bem próximo de onde ela estava deitada. Eram mãos rápidas, procurando desfazer as amarras das fibras que as protegiam do mundo exterior e de seus perigos. Então, o clarão de um relâmpago denunciou um buraco na parede da cabana e Cayabi pode ver um corpo se esgueirando por ele e sumindo na escuridão de fora. Num impulso ela procurou pela prima que dormia ao seu lado e encontrou Tawacã atormentada em seu sono de dúvidas e ficou feliz em saber que outra havia desistido. Em seguida pensou que talvez a provável fuga fosse um rapto, mas logo seus pensamentos recobraram a sensatez e Cayabi refletiu com sarcasmo: Não é minha parente e que a vergonha a acompanhe. Depois dormiu abraçada em Tawacã, igualmente para protegê-la de qualquer investida externa como também para proteger-se a si mesma de tal infortúnio.
         Quando clareou o dia, o buraco na parede da cabana denunciou de imediato a violação na casa das mulheres. Em seguida descobriu-se a rede desocupada da jovem Taoara, filha do guerreiro Waripa. A mãe da menina deitou no chão da cabana e ali chorou sua vergonha em prantos contidos, para os espíritos dos seus antepassados não serem informados do destino de Taoara e não se magoassem diante de tamanha ofensa. Mas quando a notícia se espalhou pela aldeia, uma revoada de mulheres procurou Taobara, a fim de cobrar do grande cacique providências, no sentido de evitar que os guerreiros continuassem raptando as meninas antes mesmo delas estarem preparadas para o casamento e pondo em risco as famílias dos guanavenas, uma vez que esposas despreparadas não garantiriam o sustento dos filhos nem a felicidade dos maridos. Taobara prometeu agir dentro das possibilidades, mas as mães em gritarias queriam uma busca por todo o local, até descobrir pistas da índia desaparecida. Mas nem Waripa, pai da menina e exímio rastreador, pode encontrar qualquer indício, desfeito pela chuva torrencial que ajudou a esconder os fugitivos.
         Nahpy procurou consolar a mãe da Taoara, exortando-a a ser forte neste momento, mas a situação de uma filha desgarrada da casa das mulheres era uma vergonha que acompanharia a família dela por muito tempo, comprometendo a honra da palavra empenhada por seus parentes, pois na maior parte das vezes as meninas levadas à cabana eram compromissadas com futuros casamentos e tal fato poria dúvida à vitalidade de seu sangue. A fuga da jovem era uma evidência da incapacidade dela de suportar os rigores de ser mãe e, se raptada, pairava a incerteza de ter facilitado a ação do raptor ou já o ter combinado antes com o parceiro, mostrando pouca virtude de esposa.
         Em poucos dias a vida voltou ao normal na casa das mulheres, mas o nome de Taoara ficou entre as jovens como um tabu, cuja pronúncia deveria ser evitada a fim de não atrair às remanescentes as desgraças advindas da fugitiva. Sem a chuva dar trégua no inverno da ilha Saracá, a rotina das meninas dentro da cabana era tentar adivinhar o destino da jovem desaparecida. Todas comentavam como a mãe de Taoara evitou se esbaldar em pranto, com vergonha da própria vergonha. Cayabi, sempre mais madura que as demais, comentou ter conhecido a história de uma jovem que fugiu da casa das mulheres e mesmo assim casou com um poderoso da tribo dos bararurus.
         - Como tu sabes tantas histórias? questionou uma jovem de nome Sanca, nascida em uma família do Murucutu.
         - Eu sou do Estreito, onde se juntam os territórios dos guanavenas, bararurus e caboquenas, explicou a sagaz índia, comentando também que os guerreiros, embora prefiram esposa amadurecida dentro das cabanas, possuem descarado interesse por aquelas que abandonam a reclusão por acreditarem, eles, serem elas mais afeitas às carícias.
         Tawacã acrescentou ter ouvido o pai dizer durante uma conversa com os maiorais da tribo, a qual ela escutou por estar sempre por perto de Nahpy, que as evidências desmentiam o tabu de que a geração das mulheres raptadas ou fugitivas das cabanas era de espírito fraco, mas que pariam com o mesmo vigor das demais e seus filhos cresciam fortes e saudáveis, como se herdassem virtudes de diversos pais.
         Quando as mulheres trouxeram a última refeição do dia às meninas, os rumores sobre o paradeiro de Taoara haviam precedido a confirmação dos boatos das mães, sempre encarregadas de colocar as filhas a par das coisas do mundo. Então apenas deram como verdadeiras as notícias sobre Taoara não ter sido raptada, mas abandonado por vontade própria a cabana, aproveitando os estrondos da trovoada para romper as paredes e fugir da reclusão. Também se descobriu que a índia fugitiva entrou na mata até atingir a beira do lago, depois saiu nadando como louca em direção ao rio Sanabani, até encontrar a aldeia bararuru, aonde chegou em busca do esposo prometido. A aventura foi considerada um feito heróico, embora Taoara tivesse contado com a ajuda dos ventos a favor e pelo fato de até as feras estarem escondidas, se protegendo do temporal na madrugada.
         - Não é a toa que os tracajás esperam as noites de temporal para desovar nas praias, quando se sentem mais protegidos dos inimigos, comentou Nahpy ao conhecer a história da jovem trazida pela família por Maroh, índio bararuru, para ratificar a promessa de casamento aos pais de Taoara.
         Assim, ficou-se sabendo na cabana das mulheres que o jovem Maroh chegou acompanhado dos familiares, trazendo Taoara de novo aos parentes dela, mas determinado a levá-la de volata a sua aldeia como esposa. Ele fez o pedido aos familiares da índia fugitiva, reafirmando a promessa feita pelos pais de ambos, quando Warypa e o pai do bararuru, lutando na guerra contra os muras, garantiram que seus sangues seriam unificados pelo casamento de seus filhos.
         - Hoje meu pai está morto e seria uma traição ao desejo dele não selarmos o compromisso, disse Maroh para Warypa, na presença de Taobara, testemunha do acordo entre ambos. Além de ser também o meu desejo e o dela, confirmou o bararuru, olhando para a jovem.
         A atitude do guerreiro despertou nas meninas sentimentos confusos. Algumas choraram de emoção ao saber do destino de Taoara, nada difícil de suportar, e outras remoeram a inveja de saber que a fugitiva, ao demonstrar fraqueza na reclusão, foi aceita pelo prometido. Tawacã comentou com a prima sobre a sorte de Taoara ter sobrevivido à travessia da ilha até as terras dos bararurus, pois Cayabi conhecia a confusão daquelas águas em temporais fortes, morando em frente da fronteira entre as duas tribos.
         - É. Ela demonstrou coragem e força para atravessar a nado, comentou Cayabi. Era seu dia de sorte, mas de qualquer forma seu esposo será um bararuru, e não um guanavena, desclassificou a jovem índia do Estreito, cuja beleza superior lhe permitia sonhar com marido mais afortunado.
         As chuvas aos poucos foram cedendo de ímpeto e os dias passaram a ostentar o calor de quando as meninas foram colocadas em reclusão. As águas do lago iniciaram o retorno às praias e o dia de abandonar a casa das mulheres se aproximava, deixando um estado de euforia entre as moradoras da cabana. Elas já sonhavam com o momento de olhar novamente a claridade do dia. As meninas ostentavam diferenças em seus corpos que não deixavam transparecer em nada de quando foram trancadas na cabana, protegidas dos olhos dos homens e dos efeitos da natureza, para se tornarem mulheres prontas à lida do casamento. Todas apresentavam a pele mais clara, devido à ausência de luz, mas as linhas de seus corpos ganharam curvas, os seios se pronunciavam ao aleitamento e os quadris ao formato da maternidade. Deixaram nos dias de reclusão o perfil de meninas e agora eram mulheres, prontas à vida que lhes cobrava a aldeia.
         Um novo ritual começou a ser preparado pelas mães quando chegou o dia das meninas deixarem a cabana, se reintegrando à vida na aldeia, com seus casamentos arranjados. Muitas das famílias ainda não haviam escolhido os maridos de suas filhas. Tawacã era uma das que não tinham compromisso firmado, embora não lhe faltassem pretendentes. Nahpy imaginava para ela um futuro diferente, não querendo vê-la como tantas outras, que casavam e passavam a viver em função do marido e dos filhos. A filha do pajé tinha inteligência e beleza, era saudável e despontava como boa à concepção e ao parto, mas seu destino era ser a detentora do conhecimento e da cultura da tribo, como vinha sendo preparada desde pequena pelo pai. Quando Xirminja comentou com o marido sobre a falta de um prometido para Tawacã, o pajé foi direto em sua resposta.
         - Minha filha não será esposa de ninguém, porque seu compromisso é com todo o nosso povo.
         Xirminja tentou mostrar a Nahpy que a filha se sacrificara todo esse tempo, preparando-se para o casamento, e não seria justo ver todas as moças assumindo compromisso sem poder ter ao seu lado um marido. No entanto, o pajé sonhava em ter a filha como sucessora e estava ansioso por transmitir a ela todos os mistérios que aprendera com seu pai.
         - Nossa família tem sido guardiã dos mistérios dos guanavenas por gerações, afirmou Nahpy, e devemos honrar os ancestrais perpetuando em nosso sangue o conhecimento e a sabedoria, concluiu, pondo um fim na discussão com a esposa.
         Por fim chegou o dia das meninas deixarem a casa das mulheres e voltar às suas famílias. Xirminja não pode esperar os primeiros raios de sol e antes mesmo do amanhecer já estava preparando a primeira refeição da filha, uma cuia com pedaços de bolos de mandioca, frutas da temporada e peixe assado. Era preciso uma refeição forte. O impacto da liberdade costumava derrubar as meninas quando estas se sentiam livres e respiravam o ar aberto da natureza.
         Xirminja saiu de sua cabana e foi caminhando até a casa das mulheres, encontrando pelo caminho outras mães, também preocupadas em preparar as filhas para a liberdade. Algumas aguardavam na entrada da cabana e estavam felizes porque, enfim, poderiam dar início ao ritual de passagem, quando as meninas seriam oferecidas em casamentos aos seus prometidos. A esposa do pajé foi a primeira a entrar e encontrou o interior da casa ainda dominado na penumbra, mas a satisfação era tanta que todos os sorrisos iluminavam as paredes, como fogueiras acesas em grandes troncos.
         - Chegou o fim da reclusão, minha filha, disse Xirminja, abraçando Tawacã, que mostrara seu valor como mulher ao suportar o sacrifício da cabana.
         As duas choraram prantos contidos, assim como ao lado outras mulheres soluçavam cúmplices de suas filhas. As meninas mostraram desprendimento ao suportar os rigores da reclusão e agora estavam preparadas para sair da cabana e enfrentar a vida e seus compromissos. Algumas interrompiam o choro e imediatamente anunciavam em alegrias quando suas mães lhes contavam quem as estavam esperando. Outras não procuravam esconder o descontentamento ao ouvirem que o homem com quem casariam não era o mesmo que participava de seus sonhos. Só Tawacã não recebeu a notícia tão esperada e Xirminja apenas lhe comunicou que seu pai não providenciara um marido para ela.
         - Seu pai tem outros planos para ti, disse com melancolia, tentando convencer a filha de que a notícia não era assim tão cruel.
         Tawacã recebeu a comunicação sem espanto ou inveja das que tiveram o matrimônio arranjado, até porque não tinha nenhum pretendente e não havia demonstrado interesse por ninguém da aldeia. No entanto, questionou a mãe sobre a possibilidade de desposar um guerreiro qualquer, mas Xirminja foi incisiva e logo desfez os sonhos da filha.
         - Não tem marido nem pretendente, disse com os olhos banhados pelas lágrimas da mãe cujo sofrimento da filha lhe dói ainda mais. Teu pai já decidiu o teu destino e vai treiná-la para sucedê-lo no posto de pajé. O que eu considero um absurdo, confessou à filha.
         A jovem índia aceitou a decisão paterna e procurou se juntar à alegria das outras meninas. Foi abraçar sua prima Cayabi, que se mostrava radiante com a notícia trazida pela mãe. Sua beleza estava obscurecida pela palidez da pele, mas seus contornos anunciavam uma índia de porte e formosura impressionante, por isso Tawacã não ficou surpresa quando ouviu dos lábios da prima quem era o escolhido para desposá-la.
         - Vou me casar com Taobara, o maioral dos guanavenas, anunciou Cayabi quase em um sussurro no ouvido de Tawacã. Serei sua esposa e saberei honrar o grande chefe do nosso povo.
         Tawacã então compreendeu neste momento que a vida lhe reservava um lugar de destaque na tribo. Se sua prima iria casar com um chefe guerreiro, como sonhara durante todo o tempo no qual estiveram reclusas, ela seria a detentora do conhecimento, sem marido ou filho para tomar-lhe o vigor da vida. Seria livre, como poucas mulheres conseguiram sê-lo, e teria o poder real, porque sua força não estaria apoiada nas armas ou na confiança de outros guerreiros, mas sim no saber, só dela, a guardiã dos segredos. Era um poder emanado dela própria, sem conjunturas ou aliados. Não teria esposo, mas seu destino lhe sorria com possibilidades com as quais poucas mulheres sonharam.
         Depois as mulheres romperam a porta da cabana e, uma a uma, foram saindo da prisão onde ficaram durante uma cheia e uma vazante, um período no qual aprenderam a sobreviver e a suportar os sacrifícios da vida. Quando Tawacã recebeu os raios de sol em seu rosto sentiu uma tontura e quase desmaiou, mas o braço forte de Xirminja lhe serviu de suporte, então seus olhos viram a figura do pai acompanhado dos irmãos e percebeu o ventre protuberante de Tananta. Sorriu uma alegria pálida, mas seu contentamento foi enorme ao saber que Aiauara seria pai e que sua família, em breve, teria um novo membro.

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