Warypa se sentiu invadido de medo ao entrar em Itacoatiara, subindo o barranco e atraindo em sua direção muitos bravos, todos armados com clavas, alguns trazendo lembranças da batalha recente. Mas os muras não investiram contra ele, e sim o cercaram, intrigados pelo absurdo de apenas um homem intentar outro ataque à aldeia.
- Trago um recado ao vosso principal, disse Warypa ao grupo, usando a linguagem comum da região do Canaçari.
Um mura de grande formação física indicou a direção ao guanavena com a ponta do dedo em riste. Ele subiu as últimas ladeiras do barranco com as pernas trêmulas, e assim continuou até alcançar o alto do morro, onde realmente estava o maioral da aldeia, bem reconhecível por seus colares de dentes e chifres de animais. Warypa parou em sua frente e viu diante de si o guerreiro grandioso, com a cara ostentando muitas cicatrizes, indicando que aquele chefe havia lutado muitas guerras. Também possuía um báculo em cuja ponta estava um crânio encravado. O rastreador guanavena tentou reconhecer a cabeça, pois sabia tratar-se de inimigo recente, mas não encontrou nas feições devastadas do troféu os traços familiares de ninguém.
Warypa de imediato mostrou servilismo ao maioral dos muras, abaixando a cabeça em sinal de respeito e falando baixo, enquanto aguardava a ordem para aumentar a voz e assim poder ser ouvido. O cacique mura se mostrava impaciente e logo deu ordem de conduzirem o visitante até sua oca e esta determinação foi obedecida como um raio, com diversos bravos agarrando Warypa e o arrastando pela aldeia. O grupo seguia o maioral em marcha rápida, resoluto sobre o chão que estivera a ponto de perder.
O trajeto até a oca do maioral foi de total agonia ao guanavena, pois no primeiro momento pensou estar sendo conduzido direto aos currais onde os muras costumavam guardar aqueles a quem pretendiam devorar em seus rituais de bravura. Mas Warypa não era um troféu de guerra e tinha chegado à aldeia sozinho, armado apenas com seus utensílios de caça e pesca, tinha demonstrado submissão e deixara claro que trazia uma mensagem importante ao cacique dos muras.
Warypa foi jogado aos pés do cacique e junto dele estava outro prisioneiro, um caboquena, incubido de interpretar o recado à língua do muras. O guanavena demonstrou ter preferência de falar a um bravo de sua própria tribo e os muras concordaram. Eles trouxeram outro prisioneiro, desta vez um guanavena, mas deixaram ambos no interior da oca, como cautela para que o que um falasse não seria traduzido de outro modo. Então Warypa se apresentou ao maioral dos muras dando seu nome e a serviço de quem estava. Depois relatou sobre a vontade de Taobara em selar uma aliança entre os muras e seu povo para evitar um possível ataque das tribos da Mundurucânia, com quem lutara aliado recentemente, mas contra quem também voltava agora sua desconfiança.
Warypa disse que os termos da aliança deveriam ser tratados entre os dois grandes maiorais, antes de novas amizades serem seladas entre os mundurucus, saterês e caboquenas, pondo assim em risco a estabilidade de forças na região do Canaçari. O visitante falou que a guerra contra os muras teve início depois de os mundurucus e saterês estabelecerem um pacto com os caboquenas, sob o comando e articulação de Meyki, o seu maioral, e que os guanavenas só participaram do ataque por não poder se bater sozinhos contra as tropas fortificadas dos aliados.
O segundo intérprete traduziu com fidelidade as palavras do guanavena e então os muras se voltaram contra o caboquena e o mataram, dando fim a possibilidade de as palavras de Warypa serem repassadas aos ouvidos de Meyki. Em seguida, o maioral dos muras se levantou e começou a falar, e todos os bravos na oca se calaram para ouvir sua determinação.
- Eu sou Muruuaca, o principal da tribo muras, e deixo este bravo guanavena retornar com vida à sua aldeia e levar uma mensagem ao seu cacique, proclamou o maioral entre todos os guerreiros ali presentes.
Muruuaca permitiu a Warypa embarcar em sua canoa e voltar rio abaixo, rumo à ilha Saracá, levando uma mensagem a Taobara. Era um encontro marcado para a tarde seguinte da próxima noite de lua cheia, no lago Canaçari, em frente ao furo que o liga ao grande rio Amarelo. Os caciques poderiam levar seus bravos de maior confiança, mas seu número total não deveria superar a quantidade de dedos das mãos e apenas os maiorais estavam autorizados a portar suas armas de guerra. Muruuaca propôs também aos caciques se encontrarem sozinhos, cada um em sua canoa e afastados do restante das tropas uma distância de duas vezes o alcance das flechas.
Taobara ouvia as condições do cacique dos muras e ia concordando uma a uma com todas, com gestos afirmativos e sem demonstrar nenhuma hesitação em se encontrar com o inimigo tão afamado por seu espírito de vingança e de sempre retaliar uma ofensa cometida contra ele. O guanavena sabia da possibilidade de uma cilada, mas era preciso não demonstrar isso aos seus guerreiros, e quando Warypa terminou de enumerar as determinações de Muruuaca, Taobara se levantou decidido, ordenando os bravos a iniciar os preparativos da viagem. Mas antes também era recomendado enviar um grupo para espionar as ações dos muras nas proximidades do local determinado.
- Teremos ainda mais duas fases da lua até o encontro, então devemos nos preparar para este acontecimento, disse Taobara, e mandou Warypa retornar ao lago, agora na companhia de outros guerreiros também hábeis em se esgueirar no mato e acompanhar a movimentação na área.
O cacique guanavena passou todos os dias que antecederam ao encontro traçando a melhor política de trazer o maioral dos muras para seu lado. Ele sabia que esta aliança não seria bem aceita por Meyki, o caboquena, e também por Jauaraçu, da tribo dos bararurus, assim como seria difícil de impor sua aprovação ao conselho dos anciãos de sua própria gente. Por isso queria o encontro mantido em segredo, apenas do conhecimento de seus homens mais fiéis, com os quais se acompanharia quando fosse falar com Muruuaca.
Taobara não falou de seus planos nem com o pajé Nahpy, mas este, tendo nas veias o mesmo sangue do cacique e com um apurado sentido de premonição, foi alertado de que algo estava sendo tramado na escuridão da noite e, com tanto sigilo, que só poderia tratar-se de algo infame. O pajé sentiu no ar as intenções de Taobara e passou a procurá-lo com pedidos de explicações sobre o porquê de tanto Warypa seguir rumo ao grande rio Amarelo, tantas canoas sendo escondidas nos igapós do Marupá e as muitas reuniões na praia do Terceiro com seus homens de confiança, cujas conversas eles não contavam nem às suas mulheres.
O cacique tentou desconversar, mas as perguntas incisivas do pajé não permitiram a Taobara tergiversar sobre suas intenções, mas mesmo assim explicou entre meias verdades sua tentativa de marcar um encontro com o maioral dos muras, na qual pretendia selar um acordo de paz para seus povos deixarem de se matar em guerras que traziam sofrimento a todos. O pajé recomendou ao cacique levar sua intenção ao conselho dos anciãos, mas Taobara convenceu Nahpy com conversa ardilosa que era melhor apresentar a proposta quando algo estivesse concretizado.
- Estamos apenas tentando uma aproximação, oferecendo oportunidade de paz e quebrando a desconfiança mútua entre nós, explicou o cacique ao pajé.
- Tua intenção me parece sensata, meu irmão, espero não me arrepender por mais esta insanidade cometida por ti, disse Nahpy, partindo aos afazeres, mas agora ainda mais desconfiado das intenções de Taobara.
Poucos dias antes do encontro com o mura, Taobara foi informado de que Yepá fora caçar há dias e não retornara. Os boatos davam conta do caboquena ter sido visto seguindo rumo da Mundurucânia e levava consigo uma mensagem de Meyki aos maiorais daquelas terras. A serem verdade os rumores, isto indicava claramente que uma nova aliança estava prestes a ser formada, desta vez entre mundurucus, saterês e os caboquenas, excluindo aí a participação dos guanavenas.
Taobara refletiu sobre a possibilidade de mandar um grupo seguir Yepá e interceptar-lhe o caminho até a Munduracânia, mas conhecia a destreza do bravo em se esgueirar pela mata e pelos rios, tornando impossível uma perseguição aos seus rastros. A notícia convenceu mais ainda Taobara da necessidade de selar uma aliança com os muras. Seus antigos aliados poderiam se voltar contra eles e tomar-lhes o lago Canaçari, banindo os guanavenas aos confins da selva, onde obter comida era difícil e as condições de vida, péssimas.
O cacique chamou seu irmão e conversaram, pois queria ouvir os conselhos do pajé a respeito de Meyki preparar uma aliança, deixando de fora os guanavenas. O pajé disse ter sido alertado pelos espíritos dos ancestrais sobre a articulação de uma trama ardilosa, que traria vergonha ao povo da ilha Saracá, mas não ligava os fatos apresentados por Taobara aos seus vaticínios. No entanto, Nahpy sentia as pulsações de seu peito lhe revelar sobre novo período de guerra, engendrado pelas articulações dos caciques de todos os lados, o que incluía também Taobara.
- Tempos ruins se anunciam, mas não consigo perceber se será esta aliança de Meyki a desgraça de nossa gente, advertiu Nahpy ao irmão, um dia antes de Taobara se encontrar com Muruuaca, o cacique inimigo.
Toda sua vida Taobara aprendeu a odiar os muras e preparou-se desde criança para combater o inimigo ancestral de sua tribo. Ouvira muitas vezes seu pai contar as histórias dos massacres empreendidos por eles contra seu povo e dos sofrimentos impostos pelos muras aos aprisionados, não bastando comê-los em seus rituais, mas também dando-lhes severas surras para alquebrar os espíritos dos vencidos e mostrar que a vingança se perpassa também aos mortos. O cacique havia lutado duas guerras contra os inimigos mortais, mas nunca conhecera Muruuaca. O ódio contra este bravo se acumulava ainda mais quando lembrava a vergonhosa decisão de entregar aos muras muitas das mulheres de seu povo e das tribos aliadas, inclusive sua filha Mauri, agora recuperada, mas que gerara em seu ventre os filhos daquelas gentes.
Em sua última noite antes do encontro, Taobara se retirou sozinho até a praia do Terceiro, onde confabulou consigo mesmo sobre as razões de propor a aliança com os muras. Olhou a lua cheia surgir atrás dos barrancos da Demanda e iluminar as águas do lago Saracá, pensando no destino dos guanavenas sob seu comando. Era uma decisão difícil de tomar, mas o cacique sabia da justeza e inevitabilidade dela. Uma aliança de Meyki com os novos aliados era um insulto ao qual não estava poderia aceitar.
Taobara invocou a sabedoria dos ancestrais para lhe mostrar o melhor caminho a seguir nesta encruzilhada da vida, quando sua decisão poderia colocá-lo aos olhos do povo como traidor. A aliança com os muras equivalia a renegar a história e a cultura dos guanavenas nascidos odiando os índios do grande rio Amarelo. Eles cresciam se preparando para enfrentá-los, partiam para a guerra com a intenção e matá-los e morriam na batalha alimentando esta aversão ancestral aos inimigos dos guanavenas.
O cacique pesava todas as razões, contras e prós, buscando achar justificativa de validar sua decisão, sabendo ser muito difícil impor ao conselho dos anciãos a aliança com inimigos, com os quais os velhos da tribo lutaram toda a vida, perdendo amigos e parentes no conflito cujas origens se perdiam nas intricadas memórias das gentes. Taobara estava perdido em dúvidas cruéis, mas tinha de tomar a decisão rápido. Na manhã do dia seguinte estaria frente a frente com Muruuaca, tendo de tratá-lo com reverência destinada aos amigos, quando na realidade o espírito estaria determinado a matá-lo.
Em meio aos conflitos, Taobara ouve passos distantes caminhando na areia, seguiam em sua direção, se anunciando de longe com pisadas firmes na terra, arrastando folhas e raízes a fim de causar maior quantidade de barulho e não passarem despercebidos aos ouvidos atentos de quem estivesse à frente. O cacique divisou um vulto contrastando com a clareza da praia sob a luz do luar e não reconheceu de imediato o rastreador Warypa, que sempre caminhava furtivo, e só quando este se aproximou, o cacique tomou a decisão definitiva.
- Meu grande cacique, maioral dos guanavanas, disse Warypa a Taobara, saudando-o com referência incomum, mas justificável devido à pergunta que faria em seguida. O senhor não está enganado em propor aliança com nossos inimigos muras?
Taobara passara muitos dias refém desta questão, mas agora estava resoluto e lúcido quanto à decisão tomada. Ele ergueu-se com agilidade de onça demonstrada nos campos de batalha quando enfrentava seus adversários, olhou no rosto de Warypa através da luz espectral da lua, pousada no alto do horizonte, e soltou as palavras presas na garganta e há muito prontas a serem proferidas.
- Se é isto que devermos fazer, então, façamos.
Saiu empurrando Waripa pelo caminho até a taba dos guanavenas, falando a respeito dos peixes que se escondiam nas noites de lua cheia e dificultava a boa pescaria, assim como a caça fica mais atenta aos vultos da selva e se torna alvo difícil de ser acertado. Disse ainda a Warypa o quanto estava preocupado com o desaparecimento de Yepá, índio de grande sabedoria e profundo conhecedor dos mistérios da floresta, capaz de sobreviver às mais terríveis provações e encontrar sempre o caminho de volta para casa. Pararam no caminho da praia e ficaram contemplando o barranco iluminado pelo luar, como se estivessem à espera de uma revelação, depois seguiram até a taba em silêncio. Quando já podiam ser vistos pelos outros índios que comiam em volta da fogueira, o cacique voltou a palavra ao seu bravo mais fiel.
- Warypa, mande os homens se prepararem. Amanhã vamos cumprir nossa missão, ordenou o cacique, sem precisar explicar nada mais ao rastreador e nem acrescentar outras palavras porque não pairavam dúvidas na ordem e esta seria seguida à risca, sem contestação ou vacilo.
Taobara nesta noite levou Cayabi, a esposa predileta, à rede e dormiu com ela, procurando sentir o cheiro dos cabelos da mulher a quem dedicava os melhores momentos de sua vida e procurando agradá-la com presentes e mimos de marido devotado. Amou-a com intenso desejo, a despeito de esta lhe ter dado filhos para perpetuar sua descendência e não ter mais as mesmas formas de quando foi retirada da casa das mulheres e levada à cerimônia do casamento. Mas era nos braços de Cayabi onde o cacique encontrava sempre o repouso depois das difíceis decisões pertinentes aos comandos da aldeia.
Na manhã seguinte, antes do sol nascer, já estava de pé, pois a impaciência o despertou antes mesmo dos pássaros começaram a algazarra de saudação ao novo dia. Foi tomar seu banho na praia e lá não encontrou nenhum índio, pois todos ainda dormiam. Ele próprio atiçou a fogueira e preparou a primeira refeição, deitando um jaraqui dos grandes na grelha sobre o fogo. Assoprou com um canudo a base da chama e esta se agitou frenética, explodindo na crepitação da lenha e fazer o calor assar mais rápido o pescado. Depois foi até ao jirau onde estavam os bolos de mandioca, apanhou também dois carás cozidos depositados no peneiro e comeu tudo olhando a solidão das águas do lago Canaçari, contemplativo diante do espelho horizontal onde se encontravam o céu e as águas, separados pela linha tênue das árvores distantes.
Depois o cacique reuniu nove de seus bravos mais próximos, entre eles o filho Pikiwaha, mas não Aiauara, e seguiram em quatro canoas contornando a praia até sumir entre as árvores do Mucajatuba. Tomaram a direção do Marupá, atravessando o canal ainda livre dos banzeiros que assolavam esta área quando o sol começava a caminhar ao centro do céu. Eles sentiram as primeiras rajadas de vento, sob a proteção pelos igapós, remando entre os canais até o Puruzinho, onde reentraram nas águas atormentadas do Canaçari.
Teriam de atravessar o lago em navegação difícil de ser vencida sem a proteção dos arquipélagos formados no meio do leito, mas conseguiram chegar numa pequena ilha e lá descansaram de metade da viagem. O sol agora estava no alto, indicando que metade do dia havia se passado, mas mesmo assim encontraram tempo de comer alguma coisa sob a proteção da sombra de uma árvore. Dividiram os peixes, repartiram os beijus, comeram até a saciedade e descansaram deitadas nos conveses das canoas. Aguardaram com tranqüilidade o sol se inclinar até as bandas dos confins do lago e só então soltaram as amarras das embarcações e seguiram em remadas fortes ao encontro dos muras.
O sol já se escondia ao longo das florestas quando a tropa dos guanavenas se aproximou do furo do Canaçari, contornando as ilhas camufladas no caminho até o grande rio Amarelo, local conhecido apenas por índios experimentados na navegação por estas bandas. Taobara ficou de pé na proa da canoa e observou a paisagem até perceber as canoas dos muras atracadas nas margens da entrada das águas que corriam forte para dentro do lago. Eles também foram avistados e o cacique Muruuaca se pós de pé, na proa, imitando o gesto de seu oponente.
Taobara sentiu o sangue gelar diante do mura, mas controlou os nervos e seguiu sozinho, enquanto seus bravos aguardavam dispostos a tudo, observando de longe a movimentação das canoas aproximando os dois maiorais. O cacique guanavena foi remando em direção ao meio do lago, seguido por Muruuaca, afastando-se ambos dos demais guerreiros. As canoas estavam cada vez mais próximas e Taobara, em manobra rápida, ficou de frente ao oponente, que continuava a remar com mansidão, enfiando o remo nas águas mais sem tirar os olhos de cacique diante de si.
Eles ficaram em distância inferior ao tamanho das bordunas, mas o momento era de paz, com os maiorais ali tratando de assunto importante às duas nações e não poderiam deixar a desconfiança mútua estragar a ocasião solene. Muruuaca foi o primeiro a largar o remo e ficar de pé, deixando-se mostrar com seu arco de guerra, maior que a altura do guerreiro. Taobara também se ergueu, mas suas armas não impunham terror pelo tamanho, mas pela eficácia. Os dois maiorais agora eram separados pela distância dos remos, então as palavras sussurradas puderam ser ouvidas e entendidas por ambos.
- Agradeço tua boa vontade em atender meu pedido para este encontro, disse Taobara, rompendo o silêncio entre eles.
- Eu também precisava conversar contigo, para tratarmos de assuntos de paz, respondeu Muruuaca, o cacique tão temido dos muras, cuja fama de vingativo ultrapassava as vastas terras do grande rio Amarelo e infundia terror até mesmo nos habitantes das profundezas da selva.
- Eu me chamo Taobara, cacique dos guanavenas.
- Eu sou Muruuaca, maioral dos muras, venho em paz, embora trago comigo minha arma de guerra, mas meu povo quer trégua, porque já matamos e morremos demais. Nossas terras são vastas e ricas e nos oferecem caça em abundância, pesca com fartura e frutas o tempo todo.
- Meu povo é dono desse lago desde época remota, onde também pescamos e tiramos o sustento tranqüilo de nossa gente.
- Então não temos motivos para as guerras, porque nossos povos podem bem conviver em paz, cada um em seu território.
- Nós nunca procuramos a guerra, embora também não a evitemos. Sempre fomos atacados e nossa resposta foi a retaliação.
- As guerras não têm culpados, todos que delas participam não souberam conversar antes de buscar o entendimento.
O cacique Taobara se surpreendeu com a erudição do mura, a quem julgava incapaz de outro ato a não ser matar. Viu na cara do outro maioral a sinceridade das palavras e a convicção como as pronunciava, deixando-se enredar na conversa de Muruuaca e ficando muito tempo calado, apenas ouvindo-o. Depois retomou a palavra, falou das virtudes dos guanavenas, capazes de suportar por longos dias as fadigas das lutas, das habilidades nas caçadas e pescarias, da arte de fazer as armas tanto para bicho quanto para gente e comentou dissimulado que novas alianças estavam sendo arquitetadas a fim de rever o domínio antigo tanto em terras dos muras quanto nas dos guanavenas.
- A única chance de sobrevivência de nossas tribos é a união, enfatizou Taobara, porque os inimigos estão próximos de atacar estes territórios.
Muruuaca sabia do desejo de muitos inimigos em conquistar as terras dos muras, pois já havia combatido e expulsado tribos da região até as cabeceiras dos rios menores e repelido também incursões de índios que vagavam em busca de bons territórios. No entanto, o maioral dos muras jamais vira uma tropa aliada capaz de vencer seus guerreiros como a composta por guanavenas, caboquenas, bararurus, mundurucus e saterês, que chegou a invadir a aldeia de Itacoatiara e por pouco não logrou sucesso na empreitada de expulsar das margens do grande rio Amarelo seus habitantes primeiros. Muruuaca tinha consciência da fragilidade momentânea dos muras em defender o imenso território. Perderam muitos guerreiros nas últimas batalhas, estando enfraquecido para enfrentar nova luta contra inimigos numerosos e determinados.
- Então teremos de superar a desconfiança e o ódio entre nossos povos, comentou Muruuaca, mostrando também reservas morais em firmar o pacto com os guanavenas depois de muitas gerações se enfrentando em lutas acirradas.
Taobara explicou ser a situação diferente, pois as duas tribos tinham agora inimigos comuns que tramavam o fim deles, se preparando para trazer morte e destruição aos territórios onde, por muitos ciclos de águas, a paz reinara e a fartura trouxera saúde e vitalidade aos índios. O cacique guanavena falava com desenvoltura, no esforço de trazer os muras à sua causa.
A noite caíra completamente sobre o lago Canaçari, encobrindo os caciques na escuridão e deixando apreensivos os bravos de ambos os lados, mas quando a lua se elevou no alto do céu transpareceu na superfície a silhueta dos dois chefes tribais, confabulando sobre os destinos de seus povos. E continuaram acertando detalhes e impondo condições até a luz do luar incidir diretamente sobre suas cabeças, e foi quando eles se ergueram dos bancos das canoas e selaram a aliança. Toabara dera de presente ao mura sua borduna e este retribuiu oferecendo seu arco e as flechas ao cacique guanavena.
Taobara pegou o remo e o enfiou nas águas, com movimento forte a fim de dar meia volta na canoa, embicando apressado na direção onde o aguardavam os bravos. O cacique encontrou os guerreiros apreensivos, todos querendo saber como transcorrera a conversa, mas o maioral fez segredo, ordenando à tropa o retorno à ilha Saracá, e eles remaram com vontade durante a madrugada inteira.
O sol despontou quando os guerreiros cruzavam o canal entre o arquipélago do Murapá e a ilha e eles seguiram diretos até uma praia protegida entre os barrancos e a vegetação espessa das margens intocadas desde lado da terra dos guanavenas. Taobara e os guerreiros desembarcaram na areia, depois o cacique ofereceu uma refeição de peixes e frutas e quando todos estavam sentados em volta do fogo no qual assaram a comida, Taobara relatou a todos os resultados de sua reunião com o cacique dos muras.
- A paz agora está selada, disse o maioral aos bravos, mas não devemos esquecer que os muras são traidores por natureza e não merecem nossa confiança.
Os guerreiros vibraram, esperando que tempos de guerra demorariam a retornar, embora devessem estar sempre preparados a fim de enfrentar os inimigos a qualquer momento. Warypa se aproximou do cacique, querendo saber da impressão causada nele a figura assustadora de Muruuaca.
- O maldito trazia no pescoço um colar feito com os dentes dos guanavenas, comentou Taobara.
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